Marx, 110 anos: clássico e… dramaticamente atual
O Registro dos 110 anos da morte de Marx ocorre em circunstâncias bastante distintas daquelas que marcaram o centenário comemorado há dez anos atrás. Em 1983, aproximadamente metade da humanidade vivia em regimes políticos que se proclamavam inspirados nas teorias elaboradas por Marx. Hoje, o desmoronamento dos referidos regimes tende a ser interpretado como indicador do equívoco, não apenas do marxismo, mas das próprias teorias de Marx. Essa situação merece ser analisada, pelo menos sob dois aspectos:
Em primeiro lugar, cabe observar que em razão de sua enorme influência, além das diferentes interpretações que ensejou no seio do próprio marxismo, o pensamento de Marx tendeu a dividir a humanidade em geral e, em especial, o mundo intelectual em dois campos opostos: aquele dos que aderiam a ele e aquele dos que a ele se opunham; ficando dificultada, em ambos os casos, a apreciação serena da força lógica da teoria e de seu poder explicativo da realidade objetiva. Nesse sentido pode-se dizer que, retirando-se da arena apaixonada das disputas políticas, torna-se possível uma avaliação mais objetiva da consistência do pensamento de Marx e de seu real significado para a história da humanidade. Assim, pode-se dizer que uma primeira reflexão sobre o desmoronamento dos regimes do Leste Europeu o toma não como uma tragédia, mas como um fato auspicioso para o nosso posicionamento diante do pensamento de Marx. Em lugar de jogá-lo na lata do lixo da História como sugere o triunfalismo apressado, tão fácil quanto falaz, de seus opositores, cabe considerá-lo serenamente como um clássico.
Com efeito, o clássico se distingue tanto do tradicional como do moderno. Se o pensamento tradicional se vincula a uma época que, uma vez ultrapassada, também o torna ultrapassado; e se o pensamento dito moderno se refere a uma época presente sendo frequentemente tão efêmero quanto o momento a que se vincula, o pensamento clássico é aquele que resiste ao tempo e, embora tendo surgido em uma época determinada, mantém-se como referência mesmo para as épocas ulteriores. E isso em razão da profundidade no trato dos problemas ou pela forma paradigmática com que os mesmos são enfrentados. Em consequência, um clássico é tal à medida que revela um traço irrecusável da vida humana ou fornece uma diretriz metodológica eficaz ao enfrentamento dos problemas fundamentais com os quais os homens de defrontam no transcurso de sua existência. Ora! Marx preenche, inegavelmente, ambos os requisitos. Com efeito, com ele o caráter radicalmente histórico da existência humana se tornou uma conquista definitiva da humanidade.
A partir da análise do capitalismo, forma histórica transitória e superável, revela-se um traço essencial cuja compreensão se projeta ao mesmo tempo sobre as épocas anteriores e posteriores àquela analisada. Por outro lado, também com Marx a razão dialética não apenas se torna consciente de si mesma (o que já havia ocorrido antes de Hegel), mas se constitui na via pela qual se pode compreender o movimento real da história humana em seu complexo desenvolvimento. Essas são conquistas e contribuições que nem o adversário mais renitente, se imbuído de um mínimo de isenção, ousará negar a Marx. Trata-se, pois, de um clássico com lugar assegurado ao lado de Aristóteles, Descartes, Kant e Hegel ou de Pitágoras, Euclides, Copérnico, Galileu, Newton e Einstein. Mas há um outro aspecto que importa destacar nessa conjuntura da comemoração dos 110 anos da morte de Marx. É que, além de um clássico, Marx continua sendo extremamente atual.
“O socialismo é apenas o nome dessa forma social que se gesta no próprio interior do capitalismo”.
A afirmação supra evidentemente vai contra a direção para onde os ventos estão soprando, ainda que por pouco tempo; direção esta que tende a considerar o pensamento de Marx como definitivamente ultrapassado. E se ousarmos perguntar: onde se baseia essa conclusão? A resposta virá rápida e fulminante: é só olhar para os últimos acontecimentos da ex-União Soviética e do Leste Europeu.
Entretanto, como escrevi na Apresentação ao livro Educação e questões da atualidade, (p. 12-13), se nos reportarmos ao próprio pensamento de Marx, iremos verificar que seu empenho se dirigiu no sentido de compreender cientificamente as leis da transformação e desenvolvimento do processo histórico, como assinala uma resenha crítica de O Capital publicada no Mensageiro Europeu em 1872 e transcrita no prefácio à segunda edição alemã de O Capital: “Quando Marx fixa, como seu propósito, pesquisar e esclarecer, desse ponto de vista, a ordem econômica capitalista, ele está apenas estabelecendo, com máximo rigor científico, o objetivo que deve ter qualquer investigação correta da vida econômica (…) O valor científico dessa pesquisa é patente: ela esclarece as leis especiais que regem o nascimento, a existência, o desenvolvimento, a morte de determinado organismo social, e sua substituição por outro de mais alto nível. É esse o mérito do livro de Marx”.
Na pesquisa levada a cabo por Marx, o “organismo social” referido se materializa na sociedade capitalista. É esta que Marx estuda e cujas leis de nascimento, existência, desenvolvimento, morte e substituição por outra de mais alto nível, ele revela. O socialismo é apenas o nome dessa forma social de mais alto nível que se gesta no interior do próprio capitalismo e a partir de suas contradições internas. Mas Marx não estudou a sociedade socialista e, como cientista, nem poderia fazê-lo; e isso pela simples razão de que esse novo tipo de sociedade não estava – e não está ainda – constituído.
Para Marx essa nova forma social só se constituiria após o esgotamento pleno de todas as possibilidades contidas no próprio capitalismo, como se patenteia nesta passagem do prefácio à Contribuição para a Crítica da Economia Política: “Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio da velha sociedade”.
Ora, se ainda hoje não se esgotam todas as possibilidades do capitalismo, compreende-se as dificuldades do chamado “socialismo real”, cuja origem data do início desse século. Por outro lado essa experiência, além de não se ancorar no desenvolvimento pleno das forças produtivas capitalistas, foi uma tentativa localizada, parcial e paralela à sociedade capitalista, tendo esta continuado a se desenvolver nas outras partes do mundo. No entanto, para Marx, a nova forma social só pode prevalecer quando se manifesta, se não de fato, pelo menos como tendência, enquanto forma dominante e global.
Assim é que o final do já citado prefácio da segunda edição alemã de O Capital, após referir-se ao caráter crítico e revolucionário da dialética, considera que para o burguês prático, as contradições do capitalismo são captadas de modo mais evidente nas crises mais periódicas que culminam na crise geral. E acrescenta que a crise geral “de novo se aproxima, embora ainda se encontre nos primeiros estágios; mas quando tiver o mundo por palco e produzir efeitos mais intensos, fará entrar a dialética mesmo na cabeça daqueles que o bambúrrio transformou em eminentes figuras do novo sacro império prussiano-alemão”.
OLHOS
“A era moderna entrará numa era das trevas ainda antes de terminar o século XX”.
A expressão “quando tiver o mundo por palco”, deixa evidente que a superação do capitalismo só pode se dar de forma global. Parece plausível, portanto, a conjectura de que se Marx tivesse acompanhado a experiência da União Soviética ele não teria ilusões a respeito e não estaria surpreso com os eventos que se sucedem hoje naquele país. Em verdade, o que se comprova com os acontecimentos do Leste Europeu é que a tentativa de implantar o socialismo “num só país”, ou em apenas uma parte do mundo, se revelou inviável. Fracassou, pois, o socialismo como solução parcial; mas não se pode dar como comprovada a inviabilidade do socialismo como solução global. Agora, após a queda dos regimes ditos comunistas, “o Rei está nu”. Não se pode mais alegar a existência de problemas do socialismo paralelamente, em contraponto aos problemas do capitalismo. Todos os problemas do mundo de hoje são problemas do capitalismo. E precisam ser resolvidos, isto é, superados, o que implica a superação do próprio capitalismo como totalidade.
Como constata Robert Kurz no recente livro O colapso da modernização, publicado em 1991 na Alemanha e traduzido no Brasil pela Paz e Terra em 1992, “a lógica da crise está avançando da periferia para os centros. Depois dos colapsos do Terceiro Mundo nos anos 1980 e dos socialismo real no começo dos anos 1990, chegou a hora do próprio ocidente” (p. 206). E, através de dados e documentos, mostra como a crise avança com toda força, instalando-se já no seu núcleo, isto é, o Ocidente, “a última ilha de normalidade aparente”. O diagnóstico resultante dessa análise que se desdobra da teoria econômica de Marx conduz à conclusão de que “a chamada Era moderna entrará já antes de terminar o século XX numa era das trevas, do caos e da decadência das estruturas sociais tal como jamais existiu na história do mundo. O caráter singular desse desastre da modernização que somente por último atingirá seu causador, o Ocidente, consiste, por um lado, em sua dimensão social mundial e, por outro, na enorme dinâmica desse sistema. Ninguém pode prever a duração dessa maior época da crise da história nem as formas que percorrerá” (p. 222). No entanto, “é possível que a era das trevas da crise do sistema produtor de mercadorias, com suas formas de percurso e acontecimentos catastróficos, abranja boa parte do século XXI” (p. 223).
É esse o quadro que se nos descortina no limiar do terceiro milênio: superação do capitalismo ou destruição da humanidade e do planeta; socialismo ou barbárie. Essa situação se reveste de particular dramaticidade porque não está em causa apenas a substituição de um regime econômico-político por outro, mas a própria sobrevivência da humanidade. E a responsabilidade das esquerdas, isto é, de todos aqueles que de algum modo reconhecem o mérito da contribuição de Marx, consiste em desencadear, desenvolver e organizar permanentemente a luta diuturna pela superação do capitalismo, luta essa que coincide com a defesa da humanidade em seu conjunto. Para tanto, a consciência da situação, embora não suficiente, é uma condição prévia, necessária e indispensável. Tal consciência é viabilizada pelo desenvolvimento da teoria cujas bases foram formuladas por Marx. Mas para que a teoria saia do estado propriamente teórico e se converta em verdade prática é necessário que ela seja assimilada por contingentes cada vez mais amplos de sujeitos sociais, emergindo como agentes efetivos da prática histórica. E isso pressupõe um trabalho educativo sem o qual resultará impossível a mobilização da população para a realização das transformações necessárias. A educação emerge, pois, como uma prioridade não apenas na esfera das chamadas políticas públicas, mas também no âmbito das organizações progressivas e, a fortiori, revolucionárias. Nesse contexto cabe concluir que, passados 110 anos de sua morte, Marx se tornou um clássico, mas continua atual, dramaticamente atual.
* Professor Titular do Departamento de Filosofia e História da Educação e diretor associado da Faculdade de Educação da UNICAMP.
EDIÇÃO 29, MAI/JUN/JUL, 1993, PÁGINAS 44, 45, 46