Vida de lutas populares
Demonstra, também, como este papel de propiciador da acumulação do capital, inicialmente destinado à burguesia nacional – e por isso hostilizado pelo capital imperialista – foi sendo, especialmente na década de 1970, também direcionado em proveito do capital multinacional. Esta modificação coincide, então, com a mudança de postura das multinacionais para com as estatais naquela década: “(…) a hostilidade daqueles em relação a este (o capital estatal) metamorfoseou-se, em parte e temporariamente, numa forma de convivência relativamente pacífica (…)”.
Este período de convivência foi melhor representado pela forma de associação conhecida, no governo Geisel, como o tripé capital transnacional, estatal e privado nacional.
Neste ponto, no entanto, a autor não se detém numa análise mais profunda do significado que esta mudança no processo de desenvolvimento, agora associado, representou no caráter da burguesia brasileira. E isto parece-me de importância fundamental no entendimento da fase de encruzilhada histórica em que vivemos.
Mas o livro prossegue sua análise, atribuindo a mudança de atitude do capital perante as estatais, expresso agora na campanha de privatização, ao “capital monopolista transnacional e brasileiro” por razões de “interesse em se apropriar dos setores produtivos estatais” ou de caráter “essencialmente ideológicos”.
Assinalando, en passant, que a posição da burguesia “considerada em seu conjunto” é, neste caso, “contraditória e de grande complexidade”.
Ora, é exatamente esta posição “contraditória” e “complexa” que precisa ser investigada, para que possamos esclarecer a que setores da burguesia interessam as estatais e em que condições. Sem uma análise objetiva desta situação da classe burguesa brasileira fica, a meu ver, difícil adotarmos uma estratégia consequente, tanto para enfrentarmos a questão das estatais como da própria questão nacional que lhe é subjacente.
Quanto à questão central, embora corolária, das razões do apoio às estatais, o autor advoga a tese de que o controle estatal de setores estratégicos concede governabilidade à economia nacional. Decorrendo disto o “fortalecimento das forças democráticas e progressistas” e o “desenvolvimento econômico-social” para as “massas trabalhadoras”.
Esta perda de governabilidade se daria porque se entregariam decisões econômicas estratégicas às leis de mercado, “diminuindo o poder regulatório da economia nacional”. O que ocasionaria, também, dificuldades na “suavização dos efeitos das crises cíclicas características da sociedade capitalista” (p. 54).
Embora se possa considerar intuitivamente corretos estes argumentos, para nós, marxistas, isto é insuficiente. Uma estratégia baseada em intuição pode levar a graves enganos. Ela necessita da análise de classe, já referida, para lhe servir de substrato, dando-nos certeza sobre o efetivo interesse das forças envolvidas.
Em resumo, o questionamento que se levanta diz respeito ao fato de que as substanciais mudanças sofridas pela burguesia brasileira – que alcançaram tanto a monopolista como a média burguesia, resultado do processo de desenvolvimento associado adotado desde a década de 1950 – possam vir a inviabilizar a continuidade da atividade das estatais, tal como se deu historicamente. Isto é, que as estatais continuem a desempenhar o papel de contribuir para um desenvolvimento autônomo da economia nacional em relação ao sistema capitalista mundial.
Explicando melhor o problema: é necessário investigar as condições de existência do capital estatal e da burguesia nacional para se entender e solucionar a questão nacional. Primeiro, é preciso fazer a afirmação tautológica de que não existe capital estatal sem a existência de uma burguesia a qual sirva.
Segundo, para avaliarmos o papel da burguesia nacional numa revolução nacional, seu conceito não pode ficar restrito apenas àquela que domicilia seu centro de decisões dentro das fronteiras de um país. Seu papel na questão nacional dependerá de sua inserção no sistema imperialista e de suas aspirações objetivas na repartição do mercado mundial (incluso aí, seu próprio mercado nacional) com as demais burguesias, seja na disputa da hegemonia seja como associação, igual ou subalterna.
Isto é o fundamental: se nossa burguesia escolheu definitivamente o caminho do desenvolvimento associado dentro do sistema capitalista mundial, nossa abordagem da questão nacional muda totalmente e, com ela, a própria estratégia da revolução.
O grau de associação do capital nacional e sua atuação em diversos fatos políticos recentes, como o fim da reserva da informática, eliminação das proteções alfandegárias, a mudança na legislação de patentes e perante a própria campanha de privatização, envolvendo não só o setor considerado monopolista, mas também setores médios e estratégicos, de tecnologia de ponta; só indicam a confirmação deste caminho de desenvolvimento associado.
E para investigar esta questão o livro do prof. Alcides nos é de pouca ajuda.
Lécio Morais
Vida de lutas populares
A vida de Irineu Luís de Moraes, combativo militante do PCdoB, com 81 anos, acaba de ganhar justo reconhecimento público. Com o título Lutas Camponesas no interior paulista – Memórias de Irineu Luís de Moraes, a Paz e Terra editou a obra de Cliff Welch (da Grand Valley State University) e Sebastião Geraldo (ex-operário metalúrgico da região de Ribeirão Preto, com pós-graduação na ECA-USP em jornalismo).
Num estilo despojado, inteiramente apoiado na prodigiosa memória de Irineu, o livro é uma biografia do velho “Índio”, como é conhecido até hoje, desde os primórdios de sua luta na década de 1930, quando ingressa no Partido Comunista do Brasil. Desfila pelas páginas do livro parte da história de lutas do interior paulista, onde Irineu joga papel de grande ativista, dirigindo greves, organizando sindicatos, ajudando nos primeiros passos do sindicalismo rural. Vida combativa que não prescindiu de momentos de heroísmo, como quando foi preso e torturado até praticamente a morte, nos fins da década de 1960.
O depoimento de Irineu chama a atenção pela força como despreza o reformismo, que tomou conta do PCB a partir de meados da década de 1950 e busca resistir no caminho revolucionário. O livro, cujo depoimento foi tomado até 1990, tem como último parágrafo a afirmação de Irineu de que enquanto viver será comunista: “Se eu encontrar um dia um partido revolucionário de fato, vou me engajar nele”.
Tendo ajudado na atuação da ALN de Marighela, na década de 1970, o “Índio” ingressa no PCdoB em 1991, integrando a direção municipal de Ribeirão Preto até hoje, sempre firme e coerente com a necessidade de um partido político da classe operária, revolucionário e marxista.
Walter Sorrentino
EDIÇÃO 29, MAI/JUN/JUL, 1993, PÁGINAS 82