O trabalho de ilustração de Elifas Andreato, 45 anos, compõe um universo muito particular no campo das artes gráficas. Tem início em 1967 como diagramador na Editora Abril, depois como capista da revista Veja, onde fica até 1969. Fez projetos gráficos para os fascículos da História da Música Popular Brasileira, para a coleção Bom Apetite e para a revista Placar. Na Editora Abril chega a Editor de arte da Seção de Fascículos, saindo em 1972.

Participou da equipe que fundou os jornais alternativos Opinião (1972) e Movimento (1975). Colaborou nas Revistas Argumento, Repórter, Extra-Realidade, Retratos do Brasil (onde também faz parte do Conselho Editorial ao lado de nomes como Mino Carta, Raimundo Pereira, Hélio Bicudo, Fernando Morais, entre outros). Fora da Abril, volta a colaborar algumas outras vezes, como capista de Veja. Fez capa ainda para a revista Imprensa, publicações de sindicatos e de partidos políticos (PCdoB e PT), revista Presença de Mulher e uma revista de música popular editada por japoneses – a Latina. Criou cerca de 150 pôsteres para peças teatrais e tem uma das maiores produções como capista de discos da MPB.

A marca de suas criações, longe de se tornar mera produção publicitária, tem preocupação com a realidade do país e registra os modos de vida de uma população sacrificada pelo desemprego, pela miséria, pela falta de rumos. História do homem comum que ama o futebol, a música na roda de amigos, o bar, a cachaça. Figurativa, a sua produção não se reduz ao retrato; a fotografia entra com outros elementos gráficos. A cena aparece como uma cena que tanto poderia ter saído de um filme, como de um sonho.

Essa leitura de imagens, num tempo não cristalizado pela memória, evocando um mundo cultural popular, um contexto sócio-político recente (a partir de 1969), é o tema da pesquisa.
A escolha, inspirada na fala indignada de Herbert de Souza (1990), exorta a todos os que produzem cultura – entre eles, os artistas gráficos – a resgatar a voz, a consciência, a visão, a cidadania perdida. Betinho diz que a consciência é exatamente o campo privilegiado da cultura onde a criação, o grito, a fala, o gesto, o som, a imagem e a palavra compõem o verbo com o qual se constrói o novo mundo.
Esta pesquisa apresenta este lado: o do resgate cultural através das produções artísticas de um artista brasileiro.

O que é preciso ressaltar, não em primeiro plano, mas num nível tão importante quanto a experiência profissional do artista em questão, é a sua origem social. Filho de camponeses do interior do Paraná, a família emigra para São Paulo, onde Elifas inicia, aos 14 anos, sua formação como operário na Fiat Lux. Nesta época, ele aprende a ler junto com outros companheiros da fábrica. Não é intenção deste trabalho transformar Elifas num herói ou gênio, muito menos ater-se a uma biografia do artista. Cabe, aqui, explicar a época em que Elifas entra no mercado profissional, seus ganhos e renúncias e, indo mais além, como sua visão política interfere na linguagem visual, transformando um espaço onde poucos – da sua origem social – ousaram ou puderam fazê-lo. Imagem 01

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Cartaz para o Festival de Inverno. 1991. Imagem 03
Prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo

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Prêmio Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo A questão-chave da pesquisa busca uma das possíveis leituras do Brasil através da análise de um conjunto de obras artísticas deste autor, produzidas numa determinada época, a partir de 1969 até hoje, num espaço que privilegia o eixo Rio/São Paulo. Precisava para isso, rever o panorama das artes gráficas e seu crescente prestígio social dentro do campo artístico em geral, tanto no país como no âmbito internacional, as relações entre a indústria editorial e a arte, as novas técnicas e tecnologia, assim como as construções do imaginário social em voga entre os paulistas e cariocas que de uma certa maneira inspiravam o resto do país.

“Nos anos 1970 recursos das multinacionais afirmam no Brasil a indústria cultural”.

Embora parta de uma delimitação cronológica que compreende o final da década de 1960 e toda a década seguinte (anos 1970), a análise da produção de Elifas se estende até nossos dias. A primeira fase da pesquisa compreende os antecedentes históricos-sociais e o início da carreira do artista que coincide com fatos e dados que explicam a trajetória e as inevitáveis implicações daqueles acontecimentos na sua produção visual. A segunda fase, que passa pela análise do conjunto de sua produção impressa até recentemente, permite-nos o levantamento de suas marcas e distinções, a evolução e transformações visuais nos seus trabalhos de ilustração.

A Editora Abril, além de ser seu primeiro emprego na área, funciona duplamente como escola: com seus intelectuais (jornalistas) e seus técnicos (gráficos), é nesse meio que Elifas inicia a sua produção, o que lhe traz o primeiro reconhecimento como profissional.

Os motivos que me levaram a esse tema foram, além do meu interesse pela produção deste artista como estudo de caso, a época do início de sua carreira, tão rica no âmbito da cultura, especialmente no campo artístico.

Muitos talentos foram gerados entre as equipes de jornalistas e intelectuais, criadores da imprensa alternativa daqueles anos de 1960-1970.

No campo específico da arte, vamos encontrar alguns antecedentes importantes na revisão dos movimentos de vanguarda que sobreviveram por curto período com consequências fundamentais na discussão entre arte consagrada, arte popular e arte engajada. Os campos de atuação de cada uma delas, com a valorização da arte popular como arma política, trazem à tona antigos e novos significados para palavras como Cultura, Consenso e Hegemonia, que hoje são vistas como relativas a grupos ou classes sociais onde circulam. A significação de qualquer produção cultural e artística não depende apenas do momento de sua criação nem das intenções de seu criador ou criadores, mas de sua circulação e consumo, que nunca será feita de forma homogênea. Isso nos remete à noção de Obra aberta de Eco (1968), como também à noção de luta de classes e das distinções culturais – as diversas culturas brasileiras, num sentido mais amplo e pluralístico.

“Um operário artista com experiência camponesa firma-se no campo das artes gráficas”.

Os anos 1960 trouxeram com muita força o debate do nacional popular, ligado a um projeto de uma cultura mais homogênea que levaria a uma transformação política radical através da arte popular. Houve o golpe militar e uma consequente intervenção na política cultural. Nos anos 1980, vários foram os estudos e debates sobre os equívocos e acertos dos anos 1960.

Os anos 1970 se caracterizariam se não como início da indústria cultural, pela sua consagração, diante dos recursos trazidos pelo capital das multinacionais, interessadas no promissor mercado brasileiro. Alguns dados importantes atestam esse cenário, tais como: o predomínio da Rede Globo de televisão; a modernização de Editoras (Abril e Bloch); o crescimento da indústria fonográfica nacional; com o lançamento e consagração de jovens compositores e intérpretes, como também de uma geração de artistas gráficos, com o consequente aperfeiçoamento da produção gráfica das capas de discos.

Quero registrar aqui um outro motivo ou inspiração para esta dissertação. O primeiro, já colocado, foi um artigo de Herbert de Souza. A outra leitura, um livro da socióloga Simone Weil (1909-1943), organizado e apresentado por Ecléa Bosi em 1979. Weil, socióloga francesa, se colocou no lugar do operário para viver suas principais questões, suas necessidades e perspectivas. Sua principal meta era a de ajudar o operariado francês a pensar, ou melhor, a repensar o seu sentido humano, sua relação com a produção. Um dos caminhos escolhidos por ela foi o da arte.

No Brasil, quem melhor do que um operário artista, com experiência na luta pela sobrevivência no campo (interior do Paraná), e que entra e sobrevive muito bem à alta competição no campo das artes gráficas? Como, a partir de uma situação concreta, um artista de origem humilde, sem nenhum capital social (formação acadêmica) rompe o cerco de um mercado altamente competitivo conseguindo um lugar de reconhecimento entre os artistas e intelectuais brasileiros, numa época em que estas questões estavam em efervescência no país? Uma delas é a questão do intelectual orgânico (idéia gramsciana), que, tal como na Itália, muitas vezes viria do campo para o cenário urbano. São duas ou mais culturas se relacionando, num processo de resistência, apropriação e transformações. Mais um motivo para refletir sobre o significado dessas relações.

O problema central da dissertação está na observação de uma leitura do Brasil construída pela produção visual de um artista gráfico, produção esta que se intercruza com a sua biografia. É preciso delinear dois momentos desta leitura. Um primeiro, que tem início em 1969 e atravessa a década de 1970, explica o surgimento e a evolução de um profissional como Elifas Andreato, identifica seu lugar social, suas crenças e suas relações com os meios jornalístico, artístico e político, assim como a sua inserção nas relações de produção, que envolvem a indústria de informação e de cultura do país no eixo Rio/São Paulo. Num segundo momento, privilegia o ilustrador, entrando no campo da cultura e da arte contemporânea.

O trabalho de Elifas tem uma riqueza que une o mundo das linguagens: a escritura, a fala, o gesto, a imagem, a cena. Constitui a representação dos símbolos da cultura e história de uma época. É mercadoria porque é um produto. Mas uma mercadoria cultural, onde o imaginário e a experiência são revividas, recriadas, no objeto analisado, que pode ser uma capa de revista, a capa de um disco ou poster.

Outro objetivo do trabalho consiste em situar como a marca ou estilo do artista aparece em produtos com finalidades tão diferentes – informar, cultivar hábitos, reviver mitos, formar através da experiência estética, como todos esses dados traduzem os gostos de um grupo de pessoas de um determinado tempo. De um lado, temos a análise da técnica e de seus objetivos; de outro, a força de suas inspirações e seu reflexo no social.

Penetrar nas significações sugeridas pela imagem: compor, decompor, recompor uma mesma cena, com seu movimento interno. Sua ilustração é montagem com foto e desenho, ou então, só foto, ou só desenho. Alguns elementos surrealistas, outros inspirados na pop arte, onde a intensidade maior recai sobre os signos e símbolos familiares à nossa cultura, apresentados de uma forma tão pessoal e tão poética. A experiência humana é revivida no momento captado pela ilustração. Memória.
Bosi (1987) nos fala da espessura social e política da memória, que funciona como oposição ao fetichismo do moderno, como oposição à desqualificação e ao esvaziamento da experiência. E é a mesma autora que nos introduz nos textos de Simone Weil, quando fala da importância do enraizamento que age como um fio tecendo a história de cada homem, através do tempo e da memória. Weil (1979) trabalhou os campos conceituais da palavra enraizamento que vem do lugar, do nascimento, da profissão, do ambiente, “Cada ser humano tem muitas raízes”, na reflexão de Simone Weil.

Se investigarmos as relações de poder e de força no campo artístico brasileiro em que Elifas trabalha, especialmente ele – sem formação escolar regular – encontraremos resistência até mesmo para defini-lo como artista gráfico.

Na verdade, a partir da criação da Escola Superior de Desenho Industrial, em 1960, no Rio de Janeiro, a palavra designer passou a ser uma espécie de marco divisor das funções e dos campos de atuação artística. Ser designer é diferente de ser artista plástico e artista plástico é diferente de ser artista gráfico. Mesmo para ser reconhecido como artista gráfico é necessário um reconhecimento público por parte de um grupo de pessoas, também com reconhecido prestígio social (público culto, a crítica especializada, outros artistas).

A aceitação e convocação para trabalhos na área é igualmente importante neste circuito que engloba os produtores de bens culturais, como os artistas de outras áreas (teatro, música, cinema, literatura), os intelectuais (na direção de empresas editoriais), os diretores de arte de agências de publicidade, os produtores de discos etc.

Verificar como Elifas rompe este bloqueio faz parte da minha investigação.

* Professora do Departamento de Jornalismo da UnB, Universidade de Brasília.
** Fragmento da introdução da dissertação de mestrado em comunicação de sua autoria, apresentada à UnB.

EDIÇÃO 30, AGO/SET/OUT, 1993, PÁGINAS 57, 58, 59, 60, 61