Desemprego permanente é o futuro capitalista
Um leitor desavisado poderia pensar que a avaliação que se segue, da situação atual da oferta de empregos no mundo, foi feita por algum marxista interessado em denunciar o caráter excludente do moderno desenvolvimento capitalista. Ledo engano. Ela foi extraída de uma reportagem especial publicada na tradicional revista norte-americana Newsweek, na edição de 14 de junho de 1993. Foram 15 páginas de reportagens feitas por jornalistas espalhados por vários países, em torno de um único tema: Empregos.
Embora escrita sem o propósito de denunciar as mazelas do sistema social vigente, trata-se de vivo testemunho de uma das características centrais do capitalismo que aparentemente sai vitorioso, temporariamente, do embate com as alternativas socialistas, sistema cuja lógica, hoje, leva à eliminação de empregos permanentes e à criação de subempregos.
O desenvolvimento acelerado do capitalismo depois da Segunda Guerra Mundial começou a perder fôlego na década de 1970. Muita gente havia pensado – mesmo entre setores progressistas – que o crescimento rápido e o aumento da produtividade sem precedentes daquelas décadas seriam eternos – ou, pelo menos, duradouros. Sonhava-se, inclusive, com o avanço para o socialismo por uma via não revolucionária, gradualista, sem rupturas, decorrente da própria dinâmica do capitalismo.
Esse sonho começou a esboroar-se já no começo dos anos 1970, quando as dificuldades econômicas começaram a se avolumar nos principais países capitalistas. A tentativa neoliberal de sair do impasse, que marcou os anos 1980, apenas aprofundou as tendências que, de forma acentuada, estavam agindo na economia, aumentando o fosso entre ricos e pobres, intensificando o uso de máquinas cada vez mais modernas e automáticas nas empresas, e erodindo de forma cada vez mais profunda a oferta de empregos.
Assim, a recessão e as dificuldades econômicas são responsáveis apenas em parte pelo desemprego, gerado, fundamentalmente, pelo emprego de novas tecnologias e equipamentos sofisticados os quais, cada vez mais, tornam muitas profissões obsoletas, ao mesmo tempo em que as máquinas, dirigidas muitas vezes por um único operador, substituem o trabalho de equipes inteiras.
No vale do Ruhr, por exemplo, região carbonífera e siderúrgica da Alemanha, desde os anos 1950, a força de trabalho empregada caiu, na indústria de carvão, de 530 mil trabalhadores para cerca de 100 mil hoje; na siderurgia, o número de empregos encolheu de 220 mil para 120 mil, no mesmo período.
“Se dá para viver com 10% de desempregados, por que não 25%? ou 40, ou 50%?”.
Este é apenas um exemplo da realidade vivida por cerca de 20 milhões de trabalhadores na Europa Ocidental, não encontram trabalho e alimentam o índice de 11% de desempregados naquele continente que, para muitos, é uma espécie de paraíso do desenvolvimento e do bem-estar social.
Perto da metade dos desempregados da Europa tem estado sem emprego por mais de um ano, e as perspectivas são sombrias pois esta é uma situação que já dura uma década! As nações ricas do Ocidente têm conseguido suportar taxas de desemprego de dois dígitos, “(…) sem um sério colapso na ordem social”, diz a revista. “Se 10%, por que não 25%?, ou 40, ou 50%?” Há mesmo alguns estudiosos europeus que trabalham “(…) com cenários onde níveis de desemprego, até aqui impensáveis, tornam-se permanentes”.
O interesse da reportagem da Newsweek decorre do reconhecimento sem rodeios dessa realidade. A tecnologia aumenta a produtividade, tornando possível obter maior produção com menos trabalho, aumentando os lucros das empresas.
“Os trabalhadores na produção continuam vendo seus empregos desaparecerem”.
Para os trabalhadores, essa realidade é trágica. Para alguns, abrem-se oportunidades de crescimento profissional, mas, para a maioria, a transição – diz Newsweek – trará tempos difíceis: reaprendizados frequentes, carreiras mais curtas, insegurança. Milhões perderam o emprego porque o trabalho que faziam deixou de ser necessário, em vários setores – siderurgia, mineração, bancos, governo etc.
“Esses empregos desapareceram para sempre”. A tendência para a criação de empregos na área administrativa ou técnica é demonstrada pela situação nos EUA onde, de 1982 a 1990, cerca de 800 mil empregos foram criados na indústria, quase todos de gerentes ou administradores.
As carreiras, antes, duravam a vida inteira, hoje ficam obsoletas rapidamente, acompanhando o ritmo de implementação de novas tecnologias. Prevê-se que, em dez anos, a experiência necessária para um trabalhador desempenhar seu atual emprego provavelmente estará obsoleta.
Além disso, muitos empregos industriais foram transplantados dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento, em busca de salários mais baixos e, muitas vezes, de legislação mais tolerante a respeito de agressões ao meio ambiente.
Para corrigir esta situação, europeus e norte-americanos têm mesmo recorrido a soluções que, aos olhos de muita gente, podem parecer retrógradas: procuram intensificar a oferta de empregos de trabalho intensivo (isto é, onde o uso da mão-de-obra é abundante em relação ao uso de máquinas e ferramentas). Trata-se de empregos menos produtivos e de salários mais baixos. Apesar disso, pensam, é algum trabalho, e atende ao desejo desesperado de encontrar algum trabalho para as classes inferiores de desqualificados e de desempregados.
Há um leque de consequências negativas decorrentes da situação atual, e que se agravarão se ela for mantida. O alto nível de desemprego aumenta as despesas dos programas sociais dos governos, mas diminui as receitas capazes de atendê-los já que reduz também os impostos pagos, diz a revista. Por outro lado, desperdiça os talentos dos trabalhadores (o capital humano dos economistas), aumenta a disparidade de renda, diminui o senso de autovalor do povo e cria ressentimentos que explodem no racismo contra os imigrantes, além de ser fonte de instabilidade social. Uma tendência já antiga é o crescimento do setor de serviços, paralelamente ao decréscimo na oferta de empregos primário e secundário (isto é, na agricultura e na indústria). Hoje, dois terços ou mais dos empregos nos EUA, Europa e Japão estão no setor de serviços, e seu número aumenta. Ao mesmo tempo, crescem como nunca os empregos de meio período, ou o número de pessoas que trabalham por conta própria. Esta situação é a de milhões de trabalhadores que, além do emprego precário, ficam também sem os benefícios de saúde e seguridade social oferecidos aos que têm empregos de tempo integral.
“Nos países ricos, o terciário fica cada vez mais parecido com o dos países pobres”.
Hoje, a categoria serviços dos países ricos se assemelha, cada vez mais, ao terciário inchado que, há décadas, caracteriza os países pobres, com a mesma diferenciação entre os serviços altamente remunerados, englobados na mesma categoria onde está o subemprego. Muitos dos empregados neste setor, criado nos últimos 20 anos, foram para trabalhadores da baixa habilitação e de baixos salários, como os chamados mac-jobs: vendedores de bugigangas, empregos na área de alimentos, porteiros ou zeladores. Esse tipo de trabalho não pode ser confundido com a faixa nobre da categoria serviços, os altos executivos das instituições financeiras, os programadores de computadores etc – profissionais altamente qualificados, com salários muitas vezes astronômicos. Abrar Hasan, analista de mercado de trabalho da OCDE, diz que essa tendência vai se acentuar nas próximas décadas: “(…) as habilidades de Terceiro Mundo receberão salários de Terceiro Mundo, ainda que em países de Primeiro Mundo”.
Os tremores sentidos são um sinal, diz a revista, de uma profunda transformação nas economias industrializadas, “(…) algo que não se via há mais de 100 anos”. Essa transformação parece real, da mesma forma como as dificuldades atuais parecem incontornáveis se for mantida a produção capitalista em sua forma atual.
A necessidade objetiva da concorrência capitalista empurra as empresas para o uso de tecnologias cada vez mais sofisticadas. A realidade atual parece seguir como um roteiro a dinâmica que Marx descreveu em O Capital: a necessidade do capital de poupar força de trabalho (capital variável), diminuindo sua participação no conjunto do investimento (aquilo que Marx chamou de composição orgânica do capital), cria enormes parcelas de trabalhadores cuja força de trabalho não é necessária para a valorização do capital. Estes trabalhadores, assim, são postos à margem do processo produtivo, não encontrando lugar nem mesmo no exército industrial de reserva que caracterizou as fases anteriores do capitalismo e que permitia a regulação da oferta da força de trabalho em condições favoráveis ao capital. Hoje, como nenhum modo de produção anterior, o capitalismo gera cada vez mais párias sociais.
* Jornalista, pertence ao conselho editorial de Princípios.
** Professor da Universidade Federal da Bahia e editor de Princípios.
Colaborou Marina S. T. Americano.
EDIÇÃO 30, AGO/SET/OUT, 1993, PÁGINAS 62, 63, 64