Idéias não ocupam lugar no espaço
Balanços globais da cultura brasileira já existem vários. Eles surgem de tempos em tempos, e os principais entre eles têm o mérito de, olhando para trás com os olhos do presente, ser a expressão cristalizada das preocupações da época em que foram produzidos. Podemos citar, nesta lista, livros como O Caráter Nacional Brasileiro, de Dante Moreira Leite, escrito nos anos 1960, ou A Ideologia da Cultura Brasileira, de Carlos Guilherme Motta, publicado nos anos 1970. O livro de Alfredo Bosi, Dialética da Colonização, pertence a essa linhagem, e coloca num novo patamar o debate sobre cultura produzida em nosso país e suas relações com as idéias de origem estrangeira. A origem geográfica ou cronológica das idéias não determina para todo sempre seu destino e seu valor, pensa Alfredo Bosi, polemizando contra aqueles que pensam que podem haver idéias fora do lugar. Professor do Departamento de Letras da USP, e vice-diretor do Instituto de Estudos Avançados daquela universidade, Alfredo Bosi respondeu a algumas questões que lhe foram colocadas por Princípios.
1. A questão do nacional: Esta questão deveria (para não se perder no labirinto das paixões ideológicas) ser tratada analiticamente. Para tanto, o bom caminho é desdobrá-la em várias instâncias. Vou deter-me apenas em duas.
Em primeiro lugar, há o nacional no sentido clássico, político-jurídico. As nações são, por esse critério, nações-Estado. Tais sistemas estão geralmente associados à história de uma classe ou de um grupo que exerceu eficazmente o poder político em uma determinada formação social. É comum ler, em livros convencionais de História, a luta pela construção de um Estado como síntese da vida do seu respectivo povo. Este nacional, vinculado estritamente à ocupação política de um território, tende a agudizar-se em situações de guerra: o seu subproduto cultural mais funesto é precisamente o nacionalismo belicoso, ainda uma das lepras da nossa história contemporânea.
Em segundo lugar, há a tentativa (provavelmente de fundo romântico) de amalgamar os conceitos de nação e de povo. Procura-se detectar, na dinâmica dos costumes, das representações e dos valores de uma população, um ethos comum a todos. Haveria, então, um caráter nacional que permitiria falar em ethos brasileiro, ethos peruano, ethos húngaro etc. Esse conceito fica no meio do caminho entre a psicologia, a sociologia e a antropologia cultural.
“O que importa é saber qual grupo social vai assumir determinada visão do mundo”.
Um livro pioneiro, O Caráter Nacional Brasileiro, de Dante Moreira Leite, procurou desmistificar a idéia mesma de caráter nacional submetendo-a ao crivo da teoria marxista das ideologias. O caráter nacional seria uma ideologia, quer em sua versão pessimista (o brasileiro mau selvagem, maltratado pelos preconceitos dos colonizadores), quer em sua visão otimista: o bom selvagem, o antropófago malicioso e inteligente. Essa última versão sobrevive na imagem do país do carnaval sustentada por um antropólogo renomado como é Roberto da Matta. Para quem crê em psicologia coletiva existiria, sim, um modo de ser nacional difuso por toda a formação social. Esta hipótese subestima ou mesmo descarta o argumento das diferenças de classe que separariam a população em segmentos distintos.
Todos entrariam no samba, eis a sua tese central. Recentemente o belo livro de Maria Isaura Pereira de Queiroz sobre o carnaval brasileiro procura refutar, com argumentos sociológicos, a visão psico-antropológica de Roberto da Matta. O assunto, portanto, não morreu.
2. As idéias são processos que se difundem, as idéias não são coisas que ocupam um lugar no espaço: As idéias são forças que se irradiam. Assim como a luz se difunde em ondas, as idéias podem espalhar-se e manter-se vivas em diferentes lugares e diferentes tempos.
Esta difusão (de que a história da cultura e da ciência dá mil exemplos) depende da existência de grupos sociais e culturais capazes de acolher determinadas idéias, ou na sua inteireza, ou de forma adaptada. Foi o que denominei filtragem ideológica em Dialética da Colonização.
Um exemplo macro-histórico: o cristianismo nasceu em um meio paupérrimo, de pescadores, na Palestina subjugada pelos romanos; em poucos séculos tornou-se uma religião de forte tendência universalizante. Isto porque a origem geográfica ou cronológica de uma idéia ou de um valor não determina para todo sempre o destino dessa idéia e desse valor.
O que importa é saber quais grupos sociais e culturais vão escolher, assumir e trabalhar uma determinada visão do mundo. São as transformações que interessam ao historiador, não o lugar de nascimento. Passo ao exemplo que estudei mais de perto: o liberalismo econômico do século XIX; foi uma ideologia importada da Inglaterra e que se revelou muito útil aos escravistas brasileiros que queriam agir livremente, sem peias (laissez-faire), sem um Estado que fiscalizasse ou impedisse o trabalho forçado. Eram liberais e coerentemente eram senhores de cativos. O mesmo liberalismo funcionou muito bem quando esta classe em ascensão defendeu e praticou o parlamentarismo monárquico, pois era necessário aos fazendeiros ter uma representação política nas câmaras e no senado, de onde, por seu turno, nasciam os ministérios. Logo: o liberalismo econômico se acoplou harmoniosamente com o escravismo (situação evidente nos anos 1940, 1950 e 1960 do Segundo Império); e o liberalismo político funcionou como uma luva para a mão de ferro das oligarquias. Não há, pois, contra-senso entre liberalismo e escravidão, no plano da realidade empírica; no plano abstrato de um evolucionismo linear, sim: liberalismo e escravidão são contraditórios e um impede que o outro se desenvolva. Mas faz parte das ideologias dominantes mascarar as contradições…
3. Pós-modernidade e cultura de resistência: O adjetivo pós-moderno apareceu, se não me engano, na década de 1970. Vinha então com uma carga polêmica forte contra o conceito de moderno. Se me derem licença de politizar a questão, diria que há um pós-moderno de direita e um pós-moderno de esquerda. O pós-moderno direitista se finge de anárquico, é contra toda a tradição intelectual que vem da Renascença e das Luzes (a modernidade clássica por excelência), mas, na verdade, o que ele cultiva freneticamente é a religião do consumo, a apoteose da imagem-mercadoria que a cultura para massas, aparentemente sofisticada, mas visceralmente bárbara, produz às mancheias onde quer que haja mídia para transmiti-la. Imagens em vez de idéias e de conceitos; sensações em vez de percepções críticas; deglutição indiscriminada em vez de critérios de escolha; colagens brutas em vez de construções inteligentes; confusão de tempos em vez de consciência histórica; vale-tudo em vez de valor… Tudo isso leva não à revolução pela linguagem, mas ao conformismo de mil e uma máscaras. O pós-moderno é ultraliberal, não por amor à democracia, mas porque já desistiu de trabalhar por uma sociedade justa.
“A direita pós-moderna posa de sofisticada, mas é visceralmente bárbara”.
Mas há um pós-moderno de esquerda. É o que se pode chamar também de cultura de resistência à modernização violenta e predadora que está arrasando todos os países do chamado Terceiro Mundo. Contra o mito de que toda a industrialização representa progresso, a ecologia ensina a respeitar a nossa casa, que é a natureza (e isto é uma superação da modernidade burguesa pura); contra a razão de Estado que levou ao fascismo e ao stalinismo, formas modernas de poder autoritário, a cultura de resistência respeita a democracia e procura enraizá-la em comunidades menores do que a metrópole, a usina, o latifúndio. Mas o nome importa menos do que a atitude. Prefiro chamar cultura de resistência a esse desejo de fraternidade e de beleza que espera extrair da modernidade tudo quanto de valor ela produziu (e poderá ainda produzir, se é verdadeira a hipótese de Habermas, segundo a qual a modernidade é um projeto ainda inacabado, em aberto); e, ao mesmo tempo, rejeita os subprodutos, os dejetos de uma modernização capitalista cega e iníqua. Há tanto o que fazer: deixemos a discussão dos rótulos para os suplementos literários à cata de assunto.
“Cabe à crítica separar o que é valor do que é pseudo-valor. Tarefa difícil, arriscada…”.
4. O crítico desrespeitoso? Eu não diria assim, cruamente, que o crítico literário deva ser desrespeitoso, mesmo porque a atitude de respeito é o centro de qualquer ética democrática, e essa atitude íntima deve estender-se aos nossos semelhantes que já morreram. O nó da questão é outro: o que merece o respeito do crítico? O que significa valor em uma obra? A crítica deverá descobrir esse valor que permanece vivo até a sua leitura de hoje. O que significa, também, libertar a memória do autor dos pseudo-valores que uma leitura confusa lhe atribuiu. O caso Gregório de Matos é exemplar. Foi um artista brilhante que tocou o nível do virtuosismo maneirista. Foi um observador fino das mazelas da Bahia seiscentista que nele conheceu o seu melhor sátiro. Sentiu e exprimiu com vigor as contradições morais do seu tempo dividido entre o deboche individual e o rigor da Contra-Reforma. Acho que essas qualidades são mais do que suficientes para justificar a sua glória e o lugar de primeiro plano que ocupa na história das letras coloniais.
Mas a confusão começa quando o leitor quer atribuir a Gregório valores ideológicos que não lhe eram peculiares: um nacionalismo (ou baianismo) avant la lettre, por exemplo, que, a rigor, nem poderia vigorar na consciência do letrado colonial àquela altura da nossa história política. Gregório não exalta o Brasil em detrimento da Metrópole: a sua sátira é a do fidalgo decaído que não tolera nem o imigrante enriquecido nem o fidalgo caramuru. Será uma sátira antimercantil, mas não nacionalista. Tampouco a sua linguagem desbocada podia representar liberação sexual: Gregório só emprega termos chulos quando se refere ao corpo de mulheres então desqualificadas, sobretudo as prostitutas negras e mulatas que aparecem nos seus versos como objetos de cobiça. Com as amadas brancas, de alto status, as falas são bem outras… Em suma, cabe à crítica fazer a triagem, separando o que é valor do que é pseudo-valor. Tarefa difícil, arriscada, mas certamente respeitosa…
5. A cultura das instituições informais: Eis uma pergunta provocante e difícil. E que merece uma resposta matizada, tecida de não e de sim. Quando penso em culturas no plural, estou pensando em complexos bem diferenciados de signos: cultura universitária, cultura para massas, cultura popular, cultura dos criadores. Esses conjuntos, embora possam imbricar-se uns nos outros, guardam certos caracteres próprios. Ninguém dirá, por exemplo, que uma pesquisa de laboratório no Departamento de Química da USP siga o mesmo ritual e tenha o mesmo significado que uma procissão do Divino em Tietê. Há estruturas semânticas, há climas espirituais próprios de cada sistema cultural dentro de uma sociedade de classes, estamentos e grupos bastante divididos como é o nosso. Nessa ordem de idéias, os partidos políticos e as igrejas seriam instituições paraculturais que buscam, sobretudo, intervir na vida social e mental do povo (daí, o seu caráter militante), utilizando às vezes recursos intelectuais que provieram da cultura universitária ou da cultura popular ou mesmo da indústria cultural.
“Partidos e igrejas são instituições paraculturais que intervêm na vida social e mental”.
Um agrupamento político, por exemplo, pode alimentar-se de valores próprios, que são as suas grandes bandeiras de luta (e que o singularizam no interior da sociedade), mas precisa lançar-mão de noções que foram elaboradas pela cultura universitária (no momento das análises gerais). Ou então, o partido vale-se de procedimentos típicos dos meios de comunicação: o tratamento da imagem, a encenação dos conteúdos ideológicos… Ou, finalmente, recorre às manifestações da cultura popular: a conversa de botequim, a festa, o convívio de bairro etc.
A Igreja foi durante séculos uma instituição capaz de fazer a ponte entre a cultura erudita dos teólogos (que, por sua vez, se abeberavam de Platão e de Aristóteles) e a prática devocional do povo iletrado. Gramsci estudou a fundo essa flexibilidade do antigo catolicismo.
Vejo, portanto, as instituições militantes como organizações cuja finalidade é meta-cultural (a re-modelagem da sociedade e do Estado como um todo), mas que não podem comunicar-se e crescer sem uma base cultural bem determinada. E aqui, mais uma vez, a escolha se impõe: o partido e a igreja optarão por um ideário cultural conformista ou um ideário de resistência? É uma escolha grávida de consequências.
* Professor do Departamento de Letras da USP e vice-diretor do Instituto de Estudos Avançados da mesma.
EDIÇÃO 30, AGO/SET/OUT, 1993, PÁGINAS 14, 15, 16