A teoria de Karl Marx e o processo de renovação socialista no Vietnã
Depois da crise e do colapso da União Soviética e de outros países socialistas da Europa Oriental, a questão da avaliação do legado de Marx tem sido novamente discutida.
Diferentemente das crises que ocorreram no início do século XX, entre as forças contrárias a Marx, a atual crise afeta muitos antigos marxistas que, por diferentes razões, voltaram-se contra os ideais comunistas opondo-se a Marx da forma mais vil.
Porém, a análise da situação atual, junto com a avaliação da teoria científica e revolucionária de Marx, para que se possa tirar as lições necessárias para os movimentos revolucionários dos vários países, e a criação de linhas de orientação para a evolução histórica são assuntos de grande importância.
1. Pode-se dizer que nunca houve um colapso de um sistema político com tamanha rapidez e em tão grande escala. Teria a história chegado ao fim? Foi a luta histórica entre capitalismo e socialismo finalizada com o colapso dos Estados Socialistas na União Soviética e Europa do Leste?
Não teria sido tão fácil negar a vitalidade do marxismo e a teoria do socialismo científico fundados por Karl Marx, se o processo de percepção da história pelas pessoas não tivesse sido manipulado e se as pessoas não tivessem sentido o choque psicológico e político.
A teoria do socialismo científico, parte integral do Marxismo – uma teoria sobre a libertação da espécie humana de quaisquer formas de degeneração e opressão – é ainda uma das grandes idéias da humanidade.
Não negamos que a teoria de Marx, assim como as outras teorias científicas, não está livre de limitações ou imperfeições em virtude da falta de experiências históricas ou acuradas previsões sobre o futuro. Entretanto, os fundamentos de sua teoria, baseados na cristalização da quinta-essência dos pensamentos da humanidade, a dialética materialista, a lei do movimento da natureza, da sociedade do pensamento, os pontos de vista históricos que ressaltam que o modo de produção da riqueza material da humanidade é o fundamento de toda mudança na vida social, assim como a teoria da mais-valia – que explica a existência e o desenvolvimento das leis do capitalismo – têm sido confirmados pela própria vida.
O socialismo real, com todos os seus erros e acertos, tem certa relação com a teoria de Marx, especialmente no período da época do leninismo. Apesar de ser um modelo que desviou-se da ideologia marxista em certa extensão, o chamado socialismo real contribuiu muito para o desenvolvimento da humanidade. A face do mundo neste século XX mudou muito em comparação com o século XIX. Sob a luz ideológica do marxismo, aproveitando o encorajamento da Revolução de Outubro e o apoio dos países socialistas, quando centenas de nações com milhares de milhões de pessoas levantaram-se em favor da independência nacional e conseguiram, em diferentes níveis, obter o direito à vida e à democracia.
Foi o socialismo real que resgatou nossa humanidade da catástrofe fascista na Segunda Guerra Mundial, impediu uma guerra nuclear e salvaguardou a paz mundial. Não foram poucos os cientistas ocidentais que admitiram que uma das razões para a readaptação do capitalismo moderno acerca da relação entre capital e trabalho, Estado e sociedade, e sobre o papel regulador econômico do governo, foi, em parte, causada pela existência de um contraponto representado pelo bloco do Leste, assim como as experiências do socialismo real.
Hoje em dia, quando falamos sobre socialismo e revolução proletária, não falamos da mesma forma como falávamos da Comuna de Paris, mas de uma grande força atual, tanto material quanto espiritual. Apesar de grande parte do socialismo real já ter ruído, ainda existem milhões de pessoas buscando consistentemente objetivos e caminhos socialistas. Agora, nos antigos países socialistas, a presença de conflitos étnicos e nacionais, a desintegração da economia e a crise do sistema político – com suas sérias consequências recaindo sobre os trabalhadores – têm ajudado o povo a reconhecer a necessidade de escolher o caminho apropriado para o seu desenvolvimento. Desta forma, uma nova luta por ideais comunistas foi anunciada.
Como podemos então analisar o recente colapso da antiga União Soviética e de outros países socialistas da Europa Ocidental? A resposta está no fato de que o acima referido colapso teve suas raízes profundas na compreensão errônea da teoria, juntamente com o dogmatismo de esquerda na determinação das políticas, formas medidas e passos no processo da construção socialista. A razão direta está na estratégia de voluntarismo da perestroika e no oportunismo de direita, que representam traição ideológica e política. O ritmo do colapso foi apressado pelos atos das forças hostis opostas ao socialismo.
O que aconteceu no passado está caracterizado pelo fato de os prolongados defeitos e imperfeições do socialismo real terem resultado em estagnação e crise em muitas áreas. Um número de elementos oportunistas, que traíram os ideais comunistas, nasceu através da burocracia do socialismo real, e uma parte das massas vivendo sob o modelo de governo do socialismo real (em palavras de Marx) foi alienada. Enquanto isso, a revolução científica e tecnológica moderna, assim como as mudanças políticas e sociais desde a Segunda Guerra Mundial, criaram profundas mudanças na vida social da humanidade; e isso requer novas abordagens e soluções para os novos problemas.
O dogmatismo foi um ponto inicial para as deformações e desvios do modelo que levou ao burocratismo e ao afastamento gradual dos objetivos comunistas. Na nova situação, em face ao duro confronto com as forças anticomunistas, e sob a pressão de um grupo minoritário no poder, o burocratismo por sua vez transformou-se rapidamente em oportunismo e traição resultando em catástrofes para o socialismo.
2. Por muito tempo, Karl Marx e Engels salientaram que sua teoria não era um dogma, e que eles não tinham intenção de fornecer um plano detalhado para a sociedade do futuro; ao invés disso, suas teorias somente forneciam orientações fundamentais e temas de significância metodológica de modo que seus seguidores pudessem estudar e posteriormente desenvolver suas teorias de acordo com as condições históricas posteriores.
Infelizmente, estes importantes ensinamentos foram postos de lado ou negligenciados. Muitas questões teóricas de Marx, mesmo suas previsões inacabadas ou notas pessoais, que não foram escritas com o propósito de ser publicadas, tornarem-se credos e verdades absolutas. Tudo isso transformou uma teoria viva em esclerosada. Uma teoria guia que se tornou uma força que impediu qualquer pesquisa criativa.
De acordo com Marx, o nascimento do socialismo não era algo que ocorresse fora das leis gerais da humanidade. Não era uma negação da metafísica do capitalismo, mas sim uma negação dialética. Ainda assim, isto não significa que os esforços subjetivos dos seres humanos foram apenas jogos do destino. De acordo com V. I. Lênin, os pontos de vista dialéticos revolucionários constituíram a teoria de Marx, e capacitaram a classe operária e trabalhadora, assim com as nações oprimidas, a prepararem-se para um caminho de desenvolvimento mais breve e menos doloroso que aquele do capitalismo.
A interpretação simplista desta lei geral levou a um modelo socialista com muitos desvios na teoria, e muitos defeitos em realidade, logo depois dos êxitos da Revolução de Outubro.
Lênin cedo revelou estas falhas e desvios, e estabeleceu a Nova Política Econômica na tentativa de solucioná-los. Infelizmente seus herdeiros não souberam manter e desenvolver as valiosas idéias na Nova Política Econômica; ao contrário, forçaram a construção do socialismo com o modelo de um governo socialista. Não puseram em prática as instruções de Marx sobre a existência paralela de duas estruturas econômicas, o papel da jurisdição burguesa no período de transição ao comunismo – e experiências valiosas sobre a utilização do capitalismo de Estado, e também sobre a restauração do desenvolvimento da economia mercantil. Os erros cometidos na percepção do modelo socialista resultaram em um sistema de decisões e políticas subjetivas e voluntárias sobre, por exemplo, abolição de economia mercantil e do mecanismo de mercado a imposição de apenas duas formas de propriedades: a propriedade do Estado e as coletivas. Tudo isso fez com que o socialismo decaísse gradualmente até atingir a estagnação, e crescentes e graves crises se sucederam.
3. No momento, é necessário que comunistas e marxistas esforcem-se mais para defender os frutos da revolução e os resultados da luta dos trabalhadores, a fim de que a teoria de Marx possa ser desenvolvida de acordo com as novas condições desta era.
A era histórica em que os clássicos criaram suas teorias era bem diferente de nossa época com relação ao conteúdo e natureza dos problemas enfrentados pela humanidade. As lutas para libertar a classe trabalhadora, as massas laboriosas e nações oprimidas transformaram-se, assumindo novas formas. Mais do que nunca, os ensinamentos de Marx e Lênin sobre a diversificação das formas de luta revolucionária que o povo pode utilizar, e sobre a possibilidade de escolher caminhos diferentes para alcançar os objetivos comunistas para as nações, tornaram-se muito valiosas para nós. Marx havia mencionado “o modo de produção asiático” como um modo de produção típico; também, V. I. Lênin referia-se a traços distintivos, uma vez que a revolução proletária futura poderia ser diferente da
Revolução de Outubro. Essas sugestões devem ser estudadas de maneira profunda.
A moderna revolução científica e tecnológica promoveu mudanças radicais em nosso planeta, que vão das relações sociais às questões ambientais. O surgimento de problemas globais, como o perigo de uma guerra nuclear de extermínio, a deterioração ambiental, o crescimento populacional, doenças perigosas são fenômenos que exigem esforços conjuntos da humanidade para lidar com eles. Entretanto, os marxistas não deveriam esquecer-se que a opressão das classes e nações ainda é uma realidade nos diferentes continentes; com respeito a isso, devemos entender claramente que não existe uma solução geral para as questões específicas.
4. O companheiro Ho Chi Minh, filho proeminente de nossa nação, descobriu no marxismo-leninismo o caminho para libertar nossa nação e o povo trabalhador. Ele fundou o Partido Comunista do Vietnã e lançou os fundamentos da plataforma de nosso partido. Depois de um terço de século de desenvolvimento da revolução pela libertação nacional, o povo vietnamita conseguiu alcançar muitas vitórias, e iniciar sua construção socialista. Assim como muitos outros países socialistas, e por razões diferentes, o Vietnã também foi influenciado pelo antigo modelo socialista, e se encontrou em meio a uma crise.
Nosso partido reconheceu rapidamente os erros e desvios do modelo socialista de velho estilo e tentou encontrar formas de superá-los gradualmente. O VI
A situação mundial e a atualidade do marxismo
Realizou-se em Calcutá, na Índia, no mês de maio, o Seminário Internacional sobre a situação contemporânea mundial e a atualidade do marxismo, organizado por iniciativa do Partido Comunista da Índia (marxista). Com base nos critérios de manutenção da identidade comunista e existência de expressão política em seus respectivos países foram convidados 31 partidos, dos quais 21 participaram do seminário apresentando trabalhos e os outros enviaram suas contribuições e mensagens por escrito.
O objetivo do seminário foi criar oportunidade para uma troca de idéias entre os partidos convidados, sem nenhuma pretensão de já chegar a documentos conclusivos ou resoluções. No desenrolar do evento destacou-se o debate em torno do quadro mundial atual e de suas tendências, bem como a análise da experiência do socialismo da URSS e no Leste europeu e as causas da derrota do socialismo, a problemática da transição do capitalismo ao socialismo, a validade do marxismo-leninismo para os dias atuais, as formas de rearticulação do movimento comunista mundial e a fase atual do desenvolvimento capitalista e suas peculiaridades.
As polêmicas surgidas giraram em torno das seguintes questões: período em que começa o retrocesso ao capitalismo na experiência da URSS, o pluripartidarismo nas condições do socialismo, papel das estatais, e do planejamento econômico na transição do capitalismo ao socialismo, relação entre dogmatismo e revisionismo e formas atuais de organização do movimento comunista. Houve, por outro lado, uma convergência de opiniões em relação a diversas questões importantes e atuais como: a Nova Ordem Mundial com o fim da bipolaridade, o agravamento da situação econômica mundial e a crise atual do capitalismo, a política neoliberal para o terceiro mundo, a transição do capitalismo para o socialismo como um processo mais prolongado, a idéia de que não existem modelos únicos de socialismo e a necessidade de levar em conta a situação de cada país, o marxismo-leninismo como a única referência teórica para a ação política revolucionária e o partido comunista como instrumento de direção da classe operária e seus aliados. Considero, portanto, este seminário um passo na reorganização de importantes forças revolucionárias e comunistas, num quadro de conjunto ainda adverso e de acumulação de força.
O Partido Comunista do Brasil esteve representado neste evento por Luís Fernandes e Renato Rabelo, membros de seu Comitê Central, e apresentou a tese sobre o papel do capitalismo de Estado nas condições de regimes populares sob a direção da classe operária. Para o desenvolvimento destas teses parte-se do resgate das idéias de Lênin sobre esta questão. Esta tese já havia sido divulgada no Brasil no artigo de João Amazonas, intitulado “Capitalismo de Estado na transição ao socialismo”, publicado na Princípios n. 29.
A revista Princípios publica nesta edição a contribuição do partido do Vietnã e publicará outras nas próximas edições. A tradução é de responsabilidade da revista e o conjunto dos textos foram publicados em Contemporany World Situation And Validity of Marxism – Proceedings of International Seminar of Communist Parties Marking The 175th Birth Anniversary of Karl Marx, Delhi, India, June 1993.
Renato Rabelo Congresso de nosso partido (dezembro de 1988) mapeou a política de renovação social multilateral. O VII Congresso (junho de 1991) adotou oficialmente a Plataforma Política do Partido, determinando os objetivos e o caminho da transição para o socialismo. Esta Plataforma Política refletiu em um novo desenvolvimento no pensamento teórico dos comunistas vietnamitas.
Pode-se dizer que o espírito filosófico do processo de renovação no Vietnã é a restauração e o desenvolvimento do pensamento marxista; ou seja, libertação, criação e desenvolvimento. Renovação, o aspecto primordial, é a libertação das forças produtivas. Com esta finalidade, há necessidade de promoção de uma economia mercantil multi-setorial, que funcione pelo mecanismo de mercado com o controle do governo socialista. Lênin mostrou que a economia mercantil ainda tem potencialidades a desenvolver na nova sociedade. A questão aqui é de quem regula quem nesta economia? Se para o interesse da maioria ou apenas para um pequeno setor da sociedade?
Nosso processo de renovação coloca o homem no foco das políticas sociais. É o homem – liberto em todas as esferas – que irá gerar recursos para gerar outros recursos. O poder da comunidade, da grande unidade nacional, e o poder de cada vietnamita será a mais poderosa força dirigente e de potencialidade ilimitada para o desenvolvimento do socialismo. Esta idéia nos leva de volta à Declaração do Partido Comunista, esta ressalta que o livre desenvolvimento de cada pessoa é a condição para o livre desenvolvimento de todas as pessoas. O motivo para todas as atividades criativas é a resposta efetiva para os interesses materiais e espirituais do homem. É por isso que em cada estágio da revolução, os comunistas deveriam almejar não apenas os objetivos finais, mas, também, atender aos interesses vitais do povo, para que estes possam continuadamente melhorar e elevar suas condições de vida material e cultural.
Depois de ter-se tornado um partido no poder, a responsabilidade dos comunistas aumentou multilateralmente. O partido passou a ser responsável pelo desenvolvimento geral de toda a nação. A unidade de interesses da nação e das classes exige que o partido transforme-se em uma força que lidere toda a sociedade. O caminho para o socialismo deve ser aquele onde participam todas as classes e todos os estratos da classe trabalhadora, cujo núcleo central é a aliança entre os trabalhadores, lavradores e intelectuais; esta jornada se empenha na abolição de toda forma de opressão, exploração e injustiça, para o bem-estar do povo e da nação, por uma sociedade civilizada e para a felicidade do homem.
O presidente Ho Chi Minh foi quem aplicou criativamente e desenvolveu a teoria científica e revolucionária utilizada por Marx e Lênin para a libertação dos povos das colônias, unindo a revolução de libertação nacional à revolução socialista, e ligando a independência nacional ao socialismo.
De acordo com Ho Chi Minh, a construção do socialismo deve passar por fases de transição política e econômica de acordo com as condições históricas de cada nação, cada Estado. Deve-se construir um partido limpo e forte, que possa ser um valoroso líder e servo fiel do povo; e um governo realmente do povo, pelo povo e para o povo. A grande unidade nacional deve ser implementada, o novo homem socialista deve ser construído. É essencial recapitular lições da história, testadas pela vida, para cristalizar os valores de nossa civilização humana para manter nosso caráter nacional.
As conquistas iniciais obtidas pelo povo Vietnamita durante os últimos seis anos afirmaram a correção da política de renovação do nosso partido. A partir de nossas próprias experiências nosso partido determinou que devem existir princípios nos processos de renovação, e o mais importante deles é a manutenção da orientação socialista e o papel de liderança do partido. A estratégia de renovação visa a superar os erros cometidos no passado, obtendo conquistas e tirando o país da crise sócio-econômica. Os processos estabelecidos com precisão nesta estratégia são os seguintes: manter a estabilidade política, mudança para uma economia mercantil multi-setorial operada por um mecanismo de mercado administrado pelo governo, democratizar a vida social de maneira geral, construir um
governo socialista governado pela lei e implementar uma estratégia externa onde fique claro que “o
Vietnã quer estabelecer uma relação de amizade com todos os Estados pela paz, independência e desenvolvimento”. Temos certeza de que seremos vitoriosos construindo um Vietnã próspero, forte e civilizado.
Nossas experiências em todo o movimento revolucionário da classe trabalhadora e massa laboriosa de vários países provaram que qualquer empolgação com as vitórias alcançadas pode transformar-se em um perigo para a revolução, pois a humanidade está testemunhando uma disputa histórica entre o socialismo e o capitalismo.
Dentro do atual contexto internacional, mais do que antes, o lema de Marx e Lênin sobre a unidade das forças revolucionárias torna-se imperativo. O Partido Comunista do Vietnã e o povo fiel ao internacionalismo da classe trabalhadora contribuíram e irão certamente contribuir para a causa comum da classe proletária internacional, empenhando-se incansavelmente pelos ideais comunistas.
Marx disse uma vez que sua teoria era uma teoria de desenvolvimento, e tudo que se desenvolve é sempre imperfeito. Certamente, a plataforma e a política de renovação no espírito do marxismo-leninismo e os pensamentos de Ho Chi Minh estão sendo e serão aperfeiçoadas com o movimento da vida nacional e internacional do nosso tempo.
* Professor e Membro do Comitê Central do PC do Vietnã, diretor do Instituto de Pesquisa para o Marxismo-Leninismo e o pensamento de Ho Chi Minh.
EDIÇÃO 31, NOV/DEZ/JAN, 1993-1994, PÁGINAS 48, 49, 50, 51