Canudos: Do elogio dos vencidos à denúncia do genocídio
O centenário de Canudos, há pouco comemorado nos meados de 1993, refere-se à fundação do arraial do Belo Monte, conhecido como Canudos. A guerra, que destruiu e notabilizou Canudos, começou em 1896. Seu centenário aproxima-se. As comemorações, recém-efetuadas, podem ser vistas como um ensaio do centenário que virá.
Sobretudo em Salvador e em São Paulo, os eventos realizados em homenagem aos cem anos do Belo Monte envolveram centenas de publicações, mais de 30 palestras e debates só em Salvador, mesa redonda no Museu de Arte de São Paulo, produção de filmes-documentários, peças de teatro, edição de livros, encartes de jornais como A Tarde, da Bahia e O Estado de S. Paulo, de São Paulo. No nível plástico, merecem realce as 350 extraordinárias gravuras da exposição Canudos Rediviva, onde o artista baiano T. Gaudenzi reconta a história de Canudos, podendo ainda elencar-se, como fatos ocorridos quando já lá se vão cem anos de Canudos, a edição toda versificada de Os Sertões, do poeta J. Guilherme, a primeira tradução para o francês de Os Sertões, (somente agora em 1993) e – por que não? – a 17ª edição em português do livro de Vargas Llosa, A Guerra do Fim do Mundo, sobre a saga de Canudos, editada pela primeira vez em 1981 e já traduzida em 15 idiomas (1).
O sentido geral que tomaram essas comemorações acentuou uma tendência em curso na historiografia brasileira, a de tratar de forma mais analítica e crítica os acontecimentos de Canudos.
A primeira linha de abordagem do tema Canudos, além de descritiva, investigava, discutia, analisava e ressaltava exageradamente aspectos procedentes, mas não centrais, da grande luta sertaneja, como o misticismo de Antônio Conselheiro, por exemplo, que supostamente excluiria o aspecto social e político da contenda camponesa. Esta linha de tratamento não discernia com nitidez e ênfase – em meio ao extenso envoltório das formas ideológicas de uma época anterior, de uma região isolada e de uma comunidade atrasada – o traço essencial do qual Canudos foi expressão: o de movimento por libertação social. Esse traço era por vezes até negado, ou reduzido no seu significado e importância (2).
Essa maneira de tratar Canudos foi, e é, de qualquer sorte, condicionada pela força comovedora e dramática dos fatos, e terminou se caracterizando como uma descrição empolgada de uma resistência heróica, sem nítida marca de conflito social. Uma exaltação dos vencidos (3). A própria obra clássica de Euclides da Cunha, Os Sertões, situa-se dentro desse parâmetro geral. Aliás, é o seu ponto culminante, já pelo extenso e minucioso registro histórico que faz, já pelo realce que dá à coragem e ao heroísmo dos camponeses, já pelo brilhantismo literário.
Entretanto, esses camponeses corajosos e heróicos foram aniquilados, trucidados! Contra eles, desarmados até certa altura da luta, mobilizou-se a República, montaram-se operações de guerra, com armas modernas, metralhadoras e canhões. Nas barrancas do Vasa Barris, crestadas pelo sol inclemente do semi-árido nordestino, ali, onde estava Canudos, foi escrita a página mais violenta e pavorosa da história brasileira. Foi uma pugna imensa, para usar a força expressionista de Castro Alves (4).
Os números da contabilidade bélica dão a idéia da magnitude do desigual conflito. Foram quatro campanhas de cerco e aniquilamento, a última das quais sob o comando de três generais do Exército e com a participação final, no próprio campo de batalha, da maior autoridade militar do País, o ministro da Guerra da República. Este último esforço do Exército começou com 5 mil homens, depois reforçados por outros 4 mil. Canudos era, à época, o maior aglomerado humano do interior da Bahia. Tinha mais de 30 mil habitantes! O seu momento final, descrito por Euclides, é lancinante: “Canudos não se rendeu (…) resistiu até o esmagamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5 ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, à frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”.
Assim, a pugna imensa massacrou 30 mil camponeses. Não há dúvida. Foi um genocídio! O maior da História do Brasil!
No momento em que surge Canudos estão em presença no sertão importantes componentes econômicos e políticos. Acabara a Guerra de Secessão nos Estados Unidos e o mercado europeu que, durante toda a guerra, fora abastecido pela produção nordestina de algodão, voltou a normalizar suas relações com os Estados Unidos. A economia sertaneja sofreu rude golpe. Cresceu a massa de desempregados. No mesmo período, dois outros fatores repercutem na região, no mesmo sentido: o surto do café, em São Paulo, e da borracha, no Amazonas. Levas de retirantes buscam essas alternativas, carregando consigo boa parte da força de trabalho do Nordeste. A região é atingida, ademais, por uma longa estiagem, um ciclo de seca que, entre altos e baixos, durou 38 anos. A estrutura social nordestina, fundada no latifúndio exportador e no coronelismo, que explorava e mantinha sua clientela, desorganizou-se.
As clientelas rompidas, e a queda geral da produção, fizeram surgir grandes movimentos migratórios, para a borracha do Norte e para o café do Sul. Cerca de 300 mil pessoas deixaram o Ceará nesse período, quando a população da antiga província era de um milhão de habitantes (5). Também em torno de líderes carismáticos, os beatos, agrupavam-se numerosas pessoas, na expectativa das melhorias prometidas por aqueles homens iluminados. No quadro nordestino das alternativas viáveis de busca de uma vida melhor também existia a saída para o cangaço, para a existência aventureira daqueles que, corajosos e sem desprezar a proteção de Deus, preferiam fazer justiça, e cavar o futuro, com suas próprias mãos, em armas.
Antônio Conselheiro já fazia suas andanças e suas pregações, tidas como subversivas, desde pelo menos 1874, 15 anos antes da proclamação da República. Fora preso duas vezes, em plena Monarquia. O advento da República trouxe-lhe, entretanto, algumas novidades.
Em consequência da separação entre a Igreja e o Estado, medida corretamente tomada pela República, sobreveio o primado do casamento civil sobre o religioso e jurisdição também civil sobre os cemitérios. Conselheiro, como de resto o clero da época, reagiu a essas posições, entendidas como afrontosas à religião. Acertos entre a República e a cúpula da Igreja levaram o clero a moderar suas reações, mas Conselheiro não moderou as suas.
“Protesto contra os impostos dá a Antônio Conselheiro o estigma de anti-republicano”.
Em 1896, o governo republicano permite a cobrança de impostos no interior. Tábuas com os editais dos novos tributos são afixadas nas paredes das Câmaras. Na localidade de Bom Conselho, em um dia de feira, o Conselheiro faz quebrar as tábuas e queimá-las em uma fogueira. E, então, após escapar a uma tentativa de prisão, localiza-se definitivamente em Canudos, ao tempo em que espalha-se a notícia de seu gesto contrário aos impostos. Foi provavelmente este fato o principal motivo para o estigma de anti-republicano e monarquista que Conselheiro passou a ter daí por diante, alardeado pelo governo central.
Canudos surge, assim, e se desenvolve, na esteira de problemas econômicos, políticos e sociais que levam o povo a buscar, no seu universo político, cultural e organizativo, uma saída para os seus tormentos.
A saída era a organização da comunidade na atividade produtiva, religiosa e de auto-defesa, dentro dos parâmetros e das concepções que uniam aquela gente à liderança messiânica e moralista do seu chefe, Antônio Conselheiro. O pessoal que chegava, às levas, entregava metade do que possuía ao Conselheiro, que também recebia esmolas até de outros estados (6). O crescimento do lugar levou ao aparecimento de funções como comandante de rua, encarregado da segurança e da guerra, responsável por assuntos civis, administrador de patrimônio etc. Antes da guerra, chegou a ser intensa a atividade comercial de Canudos com os municípios vizinhos. Não há notícias de pretensão de igualitarismo absoluto. Havia casas melhores e ranchos, comerciantes prósperos e o povo em geral.
Sobretudo depois de começada a guerra estruturou-se o que Rui Facó observou ser uma espécie de comunismo primitivo que, pelo menos na fase de luta armada, foi assim descrito por Euclides da Cunha: “(…) apropriação pessoal de objetos, móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos produtos das culturas (…)” (7).
Existe um fator a mais a explicar “(…) o aluvião de famílias que subiram para Canudos (…)”, como escreveu o Barão de Geremoabo (8). É que a Lei Áurea, libertando os escravos, havia sido assinada havia cerca de cinco anos. E o ex-escravo, desprotegido e vítima de preconceitos, em um mercado de trabalho esvaziado, inacessível sobretudo para ele, preferia abandonar o lugar onde fora escravo para tentar a sorte por aí. Muitos foram para o Sul, mas também Canudos foi uma alternativa procurada pelos negros recém-libertos. E o significado da presença negra em Canudos, em geral mitigado na historiografia estabelecida, pode ser avaliado pela seguinte referência feita em carta ao Barão de Geremoabo por José Américo Camello de Souza Velho, proprietário de terras em Massacará: “(…) quase tudo ali é gente do 13 de maio (…)” (9). A gente do 13 de maio era a população negra, ex-escrava. Sua presença era tão expressiva no meio da gente de Antônio Conselheiro que o Prof. José Calasans, especialista na matéria, considera Canudos o último quilombo.
Por tudo isso, a simples existência de Canudos já era um fator perturbador do precário equilíbrio político e econômico daquela região em crise. A liderança de Antônio Conselheiro crescia sem parar. Sua influência repercutia em paragens remotas, atraindo muita gente em busca de proteção, paz, trabalho, comida. Mas Antônio Conselheiro já fora preso duas vezes, uma em 1876, em Itapicuru, na Bahia, e outra, após 1878, no Recife. As razões de suas prisões, nos dois casos, foram falsas, mas o homem era um ex-presidiário…
A Igreja Católica via com desagrado a força crescente das pregações do beato. Sua segunda prisão decorreu de providências requeridas pelo arcebispo da Bahia contra aquele que estava no sertão pregando doutrinas subversivas, no dizer do bispo (10).
Conselheiro também, em Canudos, parecia já não estar disposto a se deixar prender novamente, sem resistência. Assim, entende-se a existência em Canudos, de corpo especial armado, com 800 homens e 200 mulheres. “Conselheiro justificava os homens armados que mantinha à sua volta por necessidade de sua defesa” (11).
Finalmente, Canudos, enquanto centro de atração de massas em busca de uma alternativa de vida, terminava contribuindo para o agravamento da crise de mão-de-obra que assolava a região. Só que, enquanto o norte e o sul, que levavam mão-de-obra, pairavam como coisas distantes do horizonte do latifúndio nordestino, Canudos estava ali próximo, com mão-de-obra farta e barata, como que num desafio às estruturas de poder locais.
O desenvolvimento de Canudos, nessas condições, era o desenvolvimento de uma contestação, o prevalecimento de uma insubmissão: ao governo, à Igreja, às estruturas locais. Não era uma contestação teoricamente formulada, não se traduzia em programas explícitos, mas era objetiva. O relatório dos dois frades capuchinhos, que foram para lá depois da República investigar o que estava acontecendo afirmava: “(…) pode-se dizer que aquilo é um estado no Estado (…)” (12).
“Guerra começa em 1896. O exército mobiliza 12 mil homens contra os sertanejos de Canudos”.
Estabelecida a contradição, o mais era esperar um pretexto para a repressão. E este apareceu no episódio da compra de um lote de madeira em Juazeiro da Bahia, feita pelo Conselheiro, e cuja entrega foi embargada por um Juiz que houvera sido expulso de Bom Conselho pelos canudenses, quando lá também esteve à frente do Juizado. Divulgou-se que Canudos iria atacar Juazeiro. Reforços foram pedidos ao governo estadual de Luís Viana, que resistiu de início e depois cedeu (13).
Em novembro de 1896 começa a guerra de Canudos. Guerra? Sim. Afora a primeira campanha formada por tropas estaduais – cerca de 100 homens desbaratados em Uauá – as demais três campanhas foram feitas com mobilização nacional do Exército, de suas forças de infantaria, artilharia e cavalaria, além de polícia, com tropas oriundas de quase todos os estados, do Amazonas a São Paulo, “(…) em um total superior a 12 mil homens” (14), com navios de guerra fundeados em Salvador, com metralhadoras e canhões, os mais modernos do Brasil da época.
Contra quem essa guerra? Contra um grupo numeroso de brasileiros pobres, camponeses, atribulados na dura luta pela vida, sem qualquer apoio; sofrendo as consequências dramáticas de fenômenos econômicos, políticos e climáticos que transcendiam em muito a sua compreensão; com suas crenças ecléticas e primitivas; com sua moral exacerbada sob alguns aspectos, mas que não coibia eventuais saques em fazendas de latifundiários em ocasiões de fome; com seus líderes toscos, embora pujantes; com suas opiniões políticas sobre sistemas de governo – Monarquia ou República – inteiramente desprovidas de conteúdo, formadas a partir das impressões que se constituíam sobre as primeiras ações de um governo republicano em comparação com as ações do governo anterior. E é bom ver que a organização social dessa comunidade estava dando certo – nos marcos de suas expectativas – e não só do ponto de vista da produção e do comércio. Cesar Zama, político e intelectual baiano, contemporâneo dos fatos, assim retratou o quadro de Canudos: “Nesse vasto recinto de sertanejos ignorantes e rudes não havia uma só casa de mulher pública. Em nosso clima e com os nossos costumes é um fato quase inacreditável. Havia ali escola pública e tal ou qual policiamento. Os delitos correcionais Antônio Conselheiro os punia lá a seu modo. Os crimes graves ele os entregava às autoridades da comarca” (15).
E por que essa guerra? Não há resposta plausível. Canudos não representava, nem podia, qualquer ameaça ao Estado brasileiro, ou à República, ainda que Conselheiro fosse um monarquista convicto e militante, que não era. Inexistia qualquer questão nacional. A entrada do Exército para fazer a Guerra de Canudos não tem justificativa alguma, foi um erro político claro, e grave. Decorre dessa nefanda compreensão que as elites brasileiras professam há tempos sobre o papel das Forças Armadas, segundo a qual, a força de guerra, montada pela Nação e pelo Estado para enfrentar eventual inimigo externo do País, também pode ser usada contra os brasileiros que, de uma forma ou de outra, estejam em desacordo com as classes dominantes do País. Canudos deveria ser tratada para ser incorporada à sociedade em geral, respeitando sua organização, seus costumes e seus líderes, através de paciente relacionamento e investimento político, cultural e econômico, pelo qual os canudenses iriam sendo ajudados e não perseguidos. E, na hipótese de Canudos estar abrigando desordeiros, criminosos ou saqueadores, caberia à força estadual capturá-los e julgá-los, com a Polícia e a Justiça, nunca com o Exército.
Ao entrar o Exército nesse conflito social, lamentavelmente interpretou o capítulo de guerra civil mais cruel e repelente da História do Brasil. O espírito que norteou sua postura pode ser sintetizado na orientação que o presidente da República, Prudente de Moraes, deu quando se despedia, no Rio de Janeiro, do corpo expedicionário que embarcava para a Bahia: “(…) não fique pedra sobre pedra!” (16).
E, de fato, foram tratados com desumanidade absoluta, premeditada e demorada, os sertanejos em luta. Não que se imaginasse ingenuamente possível tratamento cordial entre dois lados em guerra. Mas instituiu-se a gravata vermelha, degola repugnante de todos aqueles em que se conseguia pôr as mãos, numa extensão tal que não se encontra paralelo em outra luta civil no Brasil.
O episódio do Beatinho é doloroso. Na última campanha, já antevendo a derrota total, saiu sozinho e propôs um entendimento com o general Artur Oscar. Tinha um grupo que propunha se entregar em troca da vida. O general deu-lhe a palavra: a vida será garantida. E deixemos Cesar Zama contar o resto: “Beatinho voltou ao arraial; reuniu um grupo superior a mil indivíduos, composto de mulheres, crianças, velhos, feridos, enfermos e, horas depois, com toda essa gente, que até às pedras inspirava compaixão, foi ter ao quartel general. Estavam todos profundamente convencidos de que o compromisso de honra de um general brasileiro seria satisfeito. O que se passou depois não se qualifica (…) Beatinho e todos os infelizes que o acompanharam, sem exceção de um só, foram friamente degolados. Atrocidades tais não se descrevem, nem se comentam” (17).
“Resistência revelou camponeses com capacidade tática e sentido estratégico incomuns”.
A contenda brutal, prolongada, que demonstrou uma capacidade extraordinária da resistência camponesa, produziu comandantes guerrilheiros de grande expressão tática e sentido estratégico e temperou o povo em luta para enfrentar com heroísmo a dureza da guerra.
Figura admirável que despontou nessa convulsão social como o homem acima dos prognósticos foi Pajeú. Pajeú era negro. E mostrou ser a pessoa afeita às façanhas que requeriam inteligência fulminante, audácia acima da coragem, liderança incontestada e golpe de vista tático instantâneo.
Quando a quarta expedição aproximava-se de Canudos num cerco mortal, Pajeú, que aprendera a guerrear guerreando e vencendo as três primeiras expedições, procura levar as forças do governo para um lugar mais favorável ao ataque guerrilheiro, para uma armadilha. Tinha que dar a entender que estava sendo perseguido e fazer com que o Exército o perseguisse até onde ele queria. Euclides descreve esse episódio em cores vivas: “O inimigo (os homens de Canudos) aparece outra vez. Mas célebre, fugitivo (…). Dirigia-o Pajeú. O guerrilheiro famoso visava, à primeira vista, a um reconhecimento. Mas de fato (…) tinha objetivo mais inteligente: provoca um delírio de descargas e um marche-marche doido (…) Desapareceu. Surgiu logo depois adiante (…) Passou, num relance, acompanhado de poucos atiradores, por diante, na estrada. Não foi possível distingui-los bem.
Trocadas algumas balas desapareceram (…). Duas horas depois, ao transpor o general o têso de uma colina, o ataque recrudesceu de súbito (…) O tiroteio frouxo (…) transmudou-se numa fuzilaria furiosa (…) Não se via o inimigo (…) metido dentro das trincheiras-abrigos (…) e encoberto nas primeiras sombras da noite que descia. A situação era desesperadora. Triunfara-lhes o ardil. Os expedicionários (…) haviam imprudentemente enveredado (…) pela paragem desconhecida, acompanhando, sem o saberem, um guia ardiloso e terrível, com que não contavam – Pajeú” (18).
Pajeú é inquestionavelmente o grande vulto da Guerra de Canudos, tendo suplantado, no curso da guerra e no talento revelado, o seu chefe inicial, Antônio Conselheiro. Morreu como morrem os heróis, em meio a uma empreitada intrépida. A última expedição fechava o cerco sobre Canudos. Pajeú, que sempre emboscara o adversário bem antes de Canudos, agora estava ali, vendo seu reduto ser emboscado. De pronto localizou o ponto mais fraco de seu inimigo e lançou sobre ele fulminante ataque. A surpresa e impetuosidade foram tais que o cerco ficou em perigo e, em decorrência, a própria quarta expedição. Os três generais tiveram que fazer grande concentração de força para repelir o golpe de Pajeú. Conseguiram. Era 24 de julho de 1897. Pajeú morreu. Um herói. Foram precisos três generais para abatê-lo…
Fora do teatro das operações, a repercussão e a reação que Canudos despertou merecem análise melhor. Especialmente dois aspectos despertam atenção: a divulgação das notícias do que ocorria e a posição da intelectualidade da época.
A opinião pública em nosso país sempre foi, e até hoje o é, formada a partir das versões noticiadas dos fatos, que muitas vezes nada tem a ver com os fatos mais importantes, ou com a realidade sucedida. É a chamada imprensa livre, sobretudo quando em conluio com o poder imperante, quem se incumbe de deformar totalmente os acontecimentos para amoldar a opinião do povo.
Foi espantoso como se criou no Brasil uma opinião pública, às vezes aguerridamente contrária a Canudos. As notas de oficiais do Exército, a propaganda republicana e militarista não tinham o menor escrúpulo na veiculação das notícias mais absurdas, como a caracterização de ser Canudos uma ponta de lança para a restauração monarquista, que estava articulada com o exterior recebendo armas e dinheiro e que era uma ameaça à Pátria e à República! Notadamente quando chegaram ao Rio de Janeiro, capital e centro político do País, as notícias da fragorosa derrota da terceira campanha, comandada pelo coronel Moreira Cesar, que carregava a fama de grande debelador de revoltas (19), foi uma comoção muito grande. A massa depredou e empastelou as redações e as tipografias dos jornais monarquistas Gazeta da Tarde, Liberdade e Apóstolo (20). Gentil de Castro, um monarquista, foi assassinado em meio a um clima frenético de artificial patriotada. Escreve Euclides: “(…) um ditado único, monótono (…) persistiu como aspiração exclusiva, o esmagamento dos inimigos da República, armados pela caudilhagem monárquica”. A manipulação da opinião pública através dos meios de comunicação – a imprensa escrita, na época – já era muito grande…
“Intelectuais tomam, aos poucos, consciência do massacre do exército contra o povo de Canudos”.
“Ressalta nesse quadro o papel da intelectualidade. Precisaria ser melhor pesquisado, na diversidade das opiniões de seus porta-vozes e no desenvolvimento do tempo da luta. Grosso modo, entretanto, a intelectualidade ficou quase toda contra Canudos durante a guerra, observa José Calasans (21). Ou omissa. Vargas Llosa, a propósito, faz um comentário cáustico. No caso de Canudos, diz ele: “(…) os intelectuais tiveram uma grande responsabilidade, pois os jagunços eram gente muito primitiva (…) e, ao menos, explica que confundissem a República com o diabo. Mas, que os republicanos, gente que representava o Brasil mais ocidentalizado, confundisse um movimento campesino de tipo religioso com uma conspiração anti-republicana dos monárquicos, dos latifundiários, ou da Inglaterra, foi muito mais grave (…)” (22).
Indicações parecem mostrar que antes da guerra propriamente dita houve espaço, na intelectualidade, para a defesa do não-engajamento nela. No curso da guerra, e até a terceira campanha, predominou a posição contrária a Canudos. E, depois que foi revelada a prática sanguinária das gravatas vermelhas, a crítica passou a ser ao Exército.
Na Bahia o poeta Pithion de Villar escreveu belo soneto homenageando o governador Rodrigues Lima por ter resistido a pressões e não ter enviado tropas contra Canudos. Foi em maio de 1896, antes do início da guerra (23). Depois da guerra, e mesmo ainda no curso da quarta campanha, reveladas as atrocidades cometidas pelas forças regulares, as manifestações da intelectualidade aparecem. Machado de Assis, a guerra ainda em curso, fez uma defesa, moderada sem dúvida, de Antônio Conselheiro, na Gazeta de Notícias do Rio (24). José Calasans comenta que não foi uma valorização à altura do fenômeno. Afonso Arinos de Melo Franco, que vivia em São Paulo no tempo de guerra defendeu os sertanejos, depois da guerra (25). Cesar Zama fez, dois anos após a guerra, talvez a primeira denúncia vigorosa do absurdo da contenda e das atrocidades cometidas. Com seu estilo apaixonado e vibrante, nega razão para se ter feito a guerra e assevera: “A Guerra de Canudos foi o requinte da perversidade humana” (26). Quando Rui Barbosa faleceu, descobriu-se junto a seus papéis um texto de defesa de Canudos e de crítica à guerra (27). Luis Viana Filho, biógrafo de Rui, não conseguiu explicar por que Rui não pronunciou esse discurso.
Finalmente dois registros importantes: alunos da Escola Militar do Rio recusaram-se a entregar munições para a quarta campanha, sendo reprimidos então por numerosa tropa. Isso mostrava que no próprio meio militar havia ressentimento contra a atuação do Exército na frente de combate. E, quando o general Artur Oscar, comandante supremo da quarta expedição, recém-chegado da frente de batalha logo após a guerra, passou por Salvador, na predisposição de receber as homenagens do vencedor, foi surpreendido com um Manifesto que lhe foi entregue pelos estudantes da Faculdade de Direito da Bahia, verberando forte contra o cruel massacre que acabara de acontecer no sertão baiano. A mocidade estudantil, que houvera ficado anestesiada e confundida durante a guerra com a propaganda do governo e da imprensa, agora despertava e se indignava com o massacre cometido em nome da Pátria e da República.
* Deputado federal pelo PCdoB-BA.
Notas
(1) Registros feitos nos encartes de O Estado de S. Paulo (25-05-1993) e de A Tarde (05-10-1991 e 26-06-1993).
(2) No penúltimo número da revista Princípios Clóvis Moura trata dessa questão em artigo sobre Canudos.
(3) Expressão empregada por Júlio Cesar Lobo, em artigo “Vencidos”, A Tarde 26-05-1993.
(4) Expressão usada por Castro Alves referindo-se às lutas de 2 de julho, na Bahia.
(5) JR., Antonio & MARANHÃO, Ricardo. Brasil História, vol. 3, Brasiliense, 1979, p. 168, Antonio Jr e Ricardo Maranhão.
(6) Citado em Brasil Memória, p. 172.
(7) CUNHA, Euclides da. Os Sertões, 13ª edição, p. 191, citado por FACÓ, Rui, em Cangaceiros e Fanáticos, 2ª edição, Civilização, p. 97.
(8) FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos, p. 172.
(9) Depoimento anotado por mim de conversa havida com o Prof. José Calasans em 19-09-1993 em Salvador.
(10) Brasil História, op. cit., p. 171.
(11) Idem, p. 173.
(12) Idem, p. 173.
(13) Idem, p. 173.
(14) Cangaceiros e Fanáticos, op. cit, p. 121.
(15) Libelo Republicano, acompanhado de Comentários Sobre a Guerra de Canudos, Publicação da UFBA, número 139, p. 53.
(16) Idem, p. 31.
(17) Idem, p. 38.
(18) Os Sertões, op. cit, p. 396-397.
(19) Brasil História, op. cit, p. 175.
(20) Idem, p. 176.
(21) Conversa referida com o Prof. Calasans.
(22) O Estado de S. Paulo, caderno especial, 23-05-1993, p. 8.
(23) O original do dito soneto encontra-se em poder do autor deste artigo.
(24) A Tarde, 26-06-1993, p. 9.
(25) Da conversa citada com o Prof. Calasans.
(26) ZAMA, Cesar, op. cit, p. 22.
(27) A revista Princípios, pelo penúltimo número, traz trechos desse escrito de Rui Barbosa, em artigo de Clóvis Moura.
EDIÇÃO 31, NOV/DEZ/JAN, 1993-1994, PÁGINAS 73, 74, 75, 76, 77, 78