Feudalismo, capitalismo e escravismo
O estudo do desenvolvimento econômico brasileiro, inserindo-se aí o aspecto político-social, não nos fornece, a rigor, um consenso de como isso ocorre. Interpretações marxistas, weberianas, frankfurtianas – e, dentro delas, as opiniões divergentes – opõem-se e polemizam a respeito do tema. Feudalismo ou capitalismo? Colonialismo ou subdesenvolvimento? Teóricos de conceituada formação intelectual – de direita ou de esquerda – analisam os aspectos essenciais da formação econômica brasileira, e todos eles apresentam fundamentos importantes em suas análises, mais ou menos convincentes.
É claro que o momento histórico determinado, em que cada um deles elabora suas análises, sem dúvidas, exerceu uma influência considerável no processo de pesquisa e na conclusão obtida, uma vez que por trás de cada interpretação da realidade brasileira situava-se uma concepção político-ideológica e uma referência mais ampla, que extrapolava as fronteiras do nosso País.
À luz das transformações políticas ocorridas no mundo, podemos, atualmente, estabelecer um parâmetro entre determinados períodos históricos – e as análises sobre a formação econômica brasileira – de forma crítica, e a perceber, até mesmo, interpretações contraditórias (no meu entender) a respeito de qual sistema econômico vigorou no Brasil desde os seus primórdios e, com base em estratégias do movimento comunista internacional, as alternativas mais viáveis para garantir transformações estruturais na base econômica de nosso País. Algumas dessas alternativas, alicerçadas em concepções dogmáticas e na transplantação de modelos oriundos de realidades econômico-sociais completamente diferentes da nossa.
Devemos reconhecer, entretanto, que tal profusão de pensamentos, advindos de setores respeitados e de pesquisadores de renome internacional, tem sua razão de ser. E isso é possível de compreender se levarmos em conta – e nos ativermos a essa questão – a complexidade em que se deu a dominação e exploração do território brasileiro, e o surgimento de uma base econômica cujo encaixe nas relações de produção internacional se dava com o único intuito de fortalecer as formações econômicas européias. Acrescente-se a isso o fato de que historicamente a Europa – berço dos nossos colonizadores – vivia momentos cruciais da transição do feudalismo para o capitalismo.
Temos no marxismo a nossa referência teórica para abordar esse assunto. Pois, cremos, é no materialismo histórico que podemos melhor avaliar as condições históricas e o desenvolvimento econômico e social brasileiro. A rigor poder-se-ia argumentar ser também essa a referência que sustentou várias das teses que aqui abordaremos. É bem verdade, reconhecemos, que o marxismo tem servido para justificar as mais variadas concepções. Ou talvez fosse melhor dizer que essas concepções têm buscado no marxismo a credibilidade necessária para suas justificativas. Por outro lado, o mecanicismo que guiou algumas interpretações marxistas – consequência do dogmatismo – completamente antidialéticas, porque não distinguia as diferenciações existentes em realidades distintas e transpunham modelos, levou a conclusões que destoam completamente de sua fonte inspiradora. E o tempo serviu para comprovar o equívoco dessas interpretações. Procuraremos aqui abordar vários aspectos dessa discussão, a saber: 1) as várias opiniões a respeito de como se forma a base econômica brasileira, ou seja, qual a formação econômica que predominou no Brasil a partir da dominação colonial – feudalismo, escravismo colonial ou capitalismo – e como se desenvolve o Estado burguês no Brasil; e 2) com base nas formulações das diversas correntes teóricas quais os caminhos propostos para que se estabelecessem mudanças no sistema econômico-social vigente e a viabilidade de sua realização.
Evidentemente, não é objetivo deste trabalho realizar um estudo minucioso de um tema tão complexo, e que atravessou décadas sem que se chegasse a um consenso dentre as diversas formulações teóricas, apesar de motivar trabalhos de pesquisa de grandes profundidades e de referência indispensáveis em qualquer estudo da história econômica, política e social de nosso País. Mas é possível analisarmos criticamente, principalmente a partir das concepções, ou seja, das bases teóricas que fundamentaram algumas conclusões.
“O VI Congresso da IC elaborou as linhas-mestras para a caracterização dos países coloniais”.
Bases teóricas: A matriz de praticamente todas as importantes correntes teóricas que, principalmente a partir da década de 1940, polemizam sobre a forma de dominação, o modo de produção e o desenvolvimento econômico no Brasil, é a teoria marxista. Interpretado de diferentes formas, claro, pois que se não não chegariam tais teóricos a resultados tão díspares, o marxismo fundamentou essas análises não somente, ou simplesmente, a partir da teoria. Houve aí um outro aspecto importante – o ideológico – que apesar da verossimilhança diferencia-se da teoria.
“Partindo do pressuposto de que é o ser social do homem que determina sua consciência e não a consciência que determina o ser social – e distinguindo, na sociedade, a infra-estrutura, constituída pelo processo produtivo, modo e relações de produção, da superestrutura, formas ou modos de consciência – Marx inclui na superestrutura, com a designação geral de ideologias, a religião, a filosofia, o direito, a arte, a ciência econômica, a ética etc. Ao fazer tal distinção admite, implicitamente, a diferença entre o conhecimento ideológico e o conhecimento verdadeiro ou científico da realidade (…)” (1) (grifo do autor).
É, portanto, no aspecto ideológico que devemos buscar entender a complexidade das interpretações acerca da realidade brasileira. O referencial teórico-ideológico para tanto originava-se na Internacional Comunista. Mais explicitamente no 6º Congresso da Internacional Comunista, quando se elabora a linha-mestra para as interpretações sobre a caracterização econômico-social dos países coloniais, semicoloniais e dependentes (voltaremos a essa questão mais à frente).
A partir de então deu-se mais importância ao seguidismo ideológico, caracterizado pelo dogmatismo, do que ao rigor científico do próprio marxismo: o materialismo histórico. Buscava-se encaixar as análises oriundas da Internacional, de forma mecânica evidentemente, numa realidade brasileira que carecia de um amplo trabalho de pesquisa, e de um estudo detalhado sobre as relações econômicas e sociais existentes desde a época colonial.
Por isso, antes de entrarmos diretamente na abordagem de cada uma das diversas concepções, sobre qual modo de produção vigorou em nosso País, é importante situar, dentro de um contexto histórico e político-ideológico, alguns dos mais importantes e destacados intelectuais que contribuíram, de uma forma ou de outra, com essa que, sem dúvida se constitui numa das mais importantes polêmicas que envolveu conhecidos cientistas sociais brasileiros.
Esse quadro, que situa os teóricos envolvidos nessa discussão, está bem detalhado por Guido Mantega, que busca, inclusive em concepções anteriores a Marx – escola clássica (Smith, Ricardo e Malthus) – a fonte inspiradora de tais formulações (2). Não abordaremos, entretanto, os intelectuais oriundos do neoclassicismo econômico, ideólogos das formulações econômicas que vigoraram durante o período militar (Roberto Campos, M. H. Simonsen, Delfim Neto – discípulos de R. Simonsen e Gudim) por situarem-se fora da polêmica que nos propomos aqui analisar.
Vejamos, então, quais as principais correntes que nos interessam para tal objetivo, e que sintetizam o pensamento econômico brasileiro mais especificamente a partir da década de 1950, segundo a denominação dada por Mantega: “(…) o exame do pensamento econômico brasileiro do período em questão revelou o predomínio de três correntes de pensamento que permitiram construir três modelos analíticos. O primeiro, que chamei de Modelo de Substituição de Importações, oriundos das obras de Celso Furtado, Ignácio Rangel e Maria da Conceição Tavares, e herdeiro em sucessão direta da idéias da Cepal (…); o segundo, que chamei de Modelo Democrático-Burguês, elaborado pelos teóricos do Partido Comunista Brasileiro (sic) e sistematizado por Nelson Werneck Sodré e Alberto Passos Guimarães, fortemente inspirados na análise da Rússia czarista feita por Lênin em 1905 e na sua proposta de revolução democrático-burguesa, retomada nas teses da III Internacional para os países atrasados (3); o terceiro, que denominei de Modelo de Subdesenvolvimento Capitalista, originário dos trabalhos de André Gunder Frank, Caio Prado Jr. e Rui Mauro Marini, baseados nas idéias da vertente marxista norte-americana, cujos expoentes são Paul Baran e Paul Sweezy, e sofrendo uma certa influência da Teoria da Revolução Permanente de Trotsky e das teses da IV Internacional” (4).
A essas correntes, citadas por Mantega, incluo uma outra, na qual estão presentes como referências mais importantes, Ciro Flamarion Cardoso, Décio Saes e Jacob Gorender, que ampliam essa discussão, em tempos mais recentes, acrescentando uma nova teorização sobre a formação econômica brasileira a partir de existência no Brasil de um “Modo de Produção escravista colonial” com obras que se tornaram-se clássicas no estudo dessa questão, como é o caso de A Formação do Estado Burguês no Brasil de Saes, e O escravismo colonial de Gorender.
“A teoria da dependência não levou em conta as forças produtivas, as relações de produção e o modo de produção”.
Embora considerando de grande relevância para o estudo da nossa formação econômica as idéias contidas nas obras dos teóricos que compõem o modelo de Substituição de Importações (na denominação dada por Mantega), principalmente através de Celso Furtado, vou me ater às demais correntes que polemizaram mais quanto à existência de um determinado modo de produção específico para o Brasil (ou América Latina). Isso porque, dentro do objeto de estudo aqui proposto, interessa mais buscar aquelas concepções forjadas dentro do campo marxista. A rigor, não podemos incluir Celso Furtado nesse campo, embora a ele sejam feitas referências por vários teóricos marxistas. No entanto, vê-se em algumas de suas obras uma certa contraposição aos conceitos emitidos por Marx sobre algumas questões, como, por exemplo, à Teoria do Valor, preferindo “retomar à indefinição dos clássicos” (5) e opor-se a ela. Em relação à luta de classes, afirma Furtado em seu livro Dialética do Desenvolvimento, que nas modernas democracias capitalistas ela assume “(…) um caráter extremamente positivo, pois incentiva o desenvolvimento econômico de toda a Nação” (6). Ao analisar desta forma ele procura explicar as causas do desenvolvimento e subdesenvolvimento, ou seja, da denominação econômica, a partir da acumulação do excedente dos países pobres pelos países ricos.
Aí estaria a contradição essencial. Com isso ele foge ao que consideramos o fundamento da acumulação de riquezas, qual seja as relações de dominação de uma determinada classe sobre outra. O excedente não é acumulado por um determinado país senão com o objetivo de fortalecer e garantir a riqueza a uma determinada classe social que detém o poder econômico e consequentemente o poder político. A luta de classes não se dá apenas dentro das fronteiras dos países, mas ela se reflete também em nível internacional, com a própria expansão do capitalismo, com o controle da produção de um país sobre outro.
O equívoco principal, que podemos observar ao analisar, a grosso modo, as concepções que situam-se nessa corrente – também citada como Teoria da Dependência – está em não levar em conta as forças produtivas e as relações de produção, e em não considerar o modo de produção, “(…) como elementos necessários à análise do desenvolvimento e do subdesenvolvimento” (7). Poderíamos, assim, caracterizá-las como uma teoria circulacionista, na qual se dá ênfase às relações de troca – e daí os países ricos extraem o excedente, a mais-valia – sem contudo fazer uma análise da produção e das condições concretas em que ela ocorre, bem como das relações sociais existentes. Podemos resumir isso, em Marx, da seguinte forma: “1º) não há troca sem divisão do trabalho, quer esta seja natural, quer já um resultado histórico; 2º) a troca privada supõe a produção privada; 3º) a intensidade da troca, tal como a sua extensão e o seu modo, é determinada pelo desenvolvimento e pela estrutura da produção (…) Em todos estes momentos, a troca aparece, portanto, como diretamente compreendida na produção ou por ela determinada” (8).
Obviamente, essas referências carecem de uma melhor sistematização e de uma análise mais aguda das idéias expostas por essa corrente. No entanto, mesmo correndo o risco de ter feito citações que requerem uma profundidade maior em suas análises, não prosseguiremos nelas. Penso que para nós está claro suficientemente todo o processo de dependência de exploração das nossas riquezas pelas grandes potências que se revezaram no saque ao que aqui era produzido, ou encontrado, a depender das condições históricas de cada momento. E o que, até hoje, propicia discussões sem que se chegue a um consenso é a respeito de qual modo de produção vigorou em nosso País, desde os seus primórdios.
As divergências que surgem nessa polêmica não podem ser menosprezadas, pois são divergências de fundo, elas representam concepções diferentes de uma mesma fonte teórica. Muitos dos estudos feitos, além do caráter científico, tinham também o objetivo de subsidiar conteúdos programáticos-partidários, de início do PCB, mas depois de vários outros partidos que se guiavam pelo marxismo e surgiram exatamente devido a essas divergências. Na verdade, tais análises visavam a estabelecer uma estratégia que possibilitasse o desenvolvimento de uma situação revolucionária que garantisse transformações estruturais em nosso País, e a conquista do socialismo. Nós vamos perceber isso mais claramente quando nos embasarmos nas análises da Internacional Comunista.
O 20º Congresso do PCUS vai estabelecer diferenciações extremamente opostas em relação às questões ideológicas. Marcado pelo golpe de Kruschev e pelas críticas a Stalin, significou um marco divisor entre concepções antagônicas a respeito dos fundamentos do marxismo, principalmente no tocante aos seus aspectos revolucionários. No entanto, não trouxe maiores influências nas análises que se faziam sobre a formação econômica brasileira, referentes ao Brasil. Nem por parte daqueles que destoavam dos princípios fundamentais do marxismo, e seguiam por um caminho reformista, de conciliação de classes, nem por parte dos que se opunham às teses surgidas no referido Congresso e reafirmavam a convicção na luta armada como única maneira de se chegar ao socialismo. Mesmo entre alguns teóricos do PCB permaneciam como referencial as idéias expostas no 6º Congresso da Internacional Comunista. Mas, com tudo isso, surgiram interpretações destoantes do referencial (a resolução da Internacional sobre os países coloniais). Mas não de imediato. O livro de Caio Prado Jr., A Revolução Brasileira, que primeiro vai acender a discussão, teve a sua primeira edição em 1966.
A base teórica, portanto, que fundamentou os diversos estudos sobre qual modo de produção vigorou em nosso País desde a época colonial, e que aqui é nosso objeto de estudo, serviu a partir de então para levar a conclusões opostas sobre uma mesma realidade histórica, ou talvez seja melhor dizer, sobre uma determinada formação econômica-social.
Mas, será que só aqui no Brasil o marxismo vai se deparar com essa contradição? Ou seja, a partir dele chegar a interpretações diferentes sobre formações econômicas, ou de como se deram as transformações econômicas em determinadas épocas? Claro que não. Não é uma peculiaridade brasileira. Uma das polêmicas mais marcantes no campo marxista refere-se à existência ou não de um modo de produção asiático (9). Outra, inclusive de maior dimensão, envolveu historiadores marxistas conhecidos internacionalmente (Hobsbawn, Dobb, Sweezy, C. Hill, dentre outros) a respeito das transformações econômicas no período de transição do feudalismo para o capitalismo (10).
“A espoliação das colônias acelerou a acumulação de capital e o desenvolvimento capitalista nas metrópoles”.
A acumulação primitiva do capital (Gênese do capitalismo industrial): Não vamos nos aprofundar aqui sobre formações econômicas pré-capitalistas, ou sobre todas as formas de acumulação primitiva do capital. O nosso interesse é especificamente no tocante aos sistemas coloniais, mas acredito ser fundamental buscar na fonte, ou seja, no próprio Marx, algumas referências essenciais para a compreensão do nosso estudo, antes de fazermos análises mais precisas sobre as concepções acima citadas.
Historicamente, o processo de acumulação de riquezas, notadamente ouro e prata, retrata o momento crucial para o desenvolvimento do capitalismo. Esse acúmulo de ouro e prata não seria possível sem a exploração desenfreada às colônias. Que vinham a ser terras recém-descobertas, cujas populações foram rapidamente submetidas à sanha do dominador de além-mar. O interesse era meramente mercantil: matérias-primas, minerais, e depois produtos agrícolas de subsistência e, só mais tarde, mercado consumidor dos produtos fabricados nas metrópoles.
O mercantilismo, esse interregno que separa o feudalismo do capitalismo, é responsável por estabelecer a política expansionista e protecionista necessária para a pilhagem que se seguiu. Toda a estrutura colonial foi montada com o único objetivo de garantir às grandes potências econômicas as riquezas necessárias ao seu entesouramento. E isso, na política metalista que vigorava, era a condição essencial para estabelecer o poderio econômico de um país. Acumular, acumular, acumular. Esse era o verbo mais pronunciado então, e para tanto, os saques às riquezas das colônias não tinham limites, e o esgotamento de um produto levava, de imediato, à sua substituição por outro.
“As descobertas de ouro e de prata na América, o extermínio, a escravização das populações indígenas, forçadas a trabalhar no interior das minas, o início da conquista e pilhagem das Índias Orientais e a transformação da África num vasto campo de caçada lucrativa são os acontecimentos que marcam os albores da era da produção capitalista (…) são fatores fundamentais da acumulação primitiva”.
“O sistema colonial fez prosperar o comércio e a navegação. As sociedades dotadas de monopólio, de que já falava Lutero, eram poderosas alavancas de concentração do capital. As colônias asseguravam mercado às manufaturas em expansão e, graças ao monopólio, uma acumulação acelerada. As riquezas apresadas fora da Europa pela pilhagem, escravização e massacre refluíam para a metrópole onde se transformavam em capital” (11).
São considerações feitas por Marx em O Capital, e mostram que as colônias nada mais eram do que instrumentos de acumulação de riquezas. E que, sem elas, a concentração de capitais necessária para o desenvolvimento do capitalismo não chegaria aos níveis alcançados. Claro que isso não impediria o surgimento do capitalismo, mas sem dúvida, as colônias foram fator de aceleração da expansão capitalista e de sua constituição enquanto modo de produção dominante.
Mas, e qual o modo de produção existente nas colônias? Ou prevaleceu nelas apenas formas econômicas mercantis? Vamos primeiramente generalizar, para posteriormente nos atermos especificamente ao Brasil.
Ora, os séculos XV e XVI se caracterizaram pela decadência do feudalismo e pela expansão marítimo-comercial tendo à frente a burguesia mercantil. Ou seja, de um lado ainda tínhamos – estamos nos referindo à Europa – uma estrutura feudal, embora decadente, e, de outro, se desenvolviam formações econômicas pré-capitalistas. No meio disso tudo, os novos continentes descobertos, transformados em colônias, cuja empreitada foi fruto de alianças entre a nobreza real, absolutista, e a burguesia comercial. Um sistema econômico decadente, outro ascendente. Uma nova classe social que surge, enquanto a velha classe dominante tenta se reciclar para escapar da sua destruição. E as colônias a servir tanto a um quanto a outro.
Diante disso, nos interessa saber sobre qual base econômica ocorreu o desenvolvimento das colônias. Se elas se desenvolvem a partir de uma estrutura feudal, referenciando-se nas formações econômicas de suas matrizes metropolitanas, ou se prevalecem formas capitalistas de produção decorrentes da distribuição de produtos e fortalecimento da economia mercantil. Ao dar respostas aos questionamentos que surgem das análises a esse respeito, estaremos nos situando num dos campos teóricos que polemizaram em torno dessa questão.
Sendo assim, vamos examinar cada uma dessas concepções: feudalismo, capitalismo ou um modo de produção específico, e em seguida analisar as consequências de cada uma dessas interpretações, a respeito de nossa formação econômica, na formulação de estratégias revolucionárias no campo marxista.
“A tese do feudalismo colonial é baseada em interpretação equívoca das resoluções da Internacional”.
O feudalismo colonial, a estratégia da Internacional Comunista: Embora Guido Mantega, em seu livro citado, se refira a um modelo democrático-burguês para caracterizar essa corrente, de fato influenciada pela Internacional Comunista já desde o seu 2º Congresso, em 1920, vale dizer que neste Congresso, na comissão sobre as questões nacional e colonial, rediscutiu-se a estratégia a ser adotada em relação aos países atrasados; como resultado dessa discussão chegou-se “(…) à decisão unânime de que deve falar-se de movimento revolucionário nacional em vez de movimento democrático-burguês” (12).
Neste relatório, o próprio Lênin reconhece que qualquer movimento nacional só pode ser democrático-burguês, devido principalmente à condição do campesinato, que representa as relações capitalistas burguesas. Mas essa caracterização era necessária, justamente porque percebia-se que a burguesia dos países oprimidos, apesar de apoiar os movimentos de libertação nacionais, situava-se ao mesmo tempo ao lado da burguesia imperialista, a fim de exercer o controle, a seu modo, sobre todos os movimentos revolucionários, e sufocar a influência dos partidos e camadas revolucionárias. Com isso estabelecia-se uma tática que levava em conta o caráter dos movimentos nacionais e diferenciava-se dos movimentos reformistas, alguns deles incentivados pela própria burguesia internacional.
“O sentido desta mudança consiste em que nós, como comunistas, só devemos e só apoiaremos os movimentos libertadores burgueses nos países coloniais nos casos em que esses movimentos sejam verdadeiramente revolucionários, em que os seus representantes não nos impeçam de educar e organizar num espírito revolucionário o campesinato e as amplas massas de explorados. Mas se não existirem essas condições, os comunistas devem lutar nestes países contra a burguesia reformista (…) A distinção mencionada foi aplicada a todas as teses, e penso que, graças a isto, o nosso ponto de vista está agora formulado de um modo mais preso” (13).
Pelo exposto, vemos que o apoio incondicional aos movimentos democrático-burgueses não foi uma orientação da Internacional Comunista. A distinção conforme o mencionado, era clara e estabelecia-se o limite para esse apoio e as formas de como deveria se dar esse apoio seriam definidas, para cada país, pelo próprio Partido Comunista, caso ali ele existisse (14). Portanto, não podemos nos referir a um modelo democrático-burguês, como tendo sido elaborado a partir da II Internacional. Bem como, não se pode, a partir das leituras das teses ali aprovadas, se chegar à conclusão de que estabeleceu-se para os países latino-americanos a análise de que possuíam formações feudais. As considerações feitas aos países atrasados deu-se em função de que o referencial maior era para com os países asiáticos, tanto assim que parte das teses aprovadas sobre os países coloniais foi redigida por Roy Manabendra Nath, da Índia (15). De qualquer forma não há, nas teses aprovadas, nenhuma citação específica aos países coloniais latino-americanos.
O 6º Congresso, embora incorporando as teses elaboradas por Lênin e Roy, sobre a questão colonial, principalmente no que se refere à tática a ser adotada em relação à revolução democrático-burguesa, avança em direção à formulação de qual base econômica vigorou nos países coloniais, aí sim com referência explícita aos países latino-americanos, inclusive o Brasil. Contudo, não podemos deduzir, a partir das referências feitas no Programa Internacional Comunista, que este organismo acreditava existir na América Latina “(…) restos de formações econômicas feudais”. Essa formulação, ao que tudo indica, era de responsabilidade dos teóricos e dirigentes do PCB (Partido Comunista do Brasil) cujos documentos, invariavelmente, referiam-se à existência desses restos feudais, e pregavam a necessidade de uma revolução anti-imperialista e antifeudal (16).
Talvez o erro da formulação contida no Programa da Internacional Comunista, e adotado pelo 6º Congresso Mundial reunido em Moscou em 1928, estivesse na não-separação de forma bem definida entre países coloniais, semicoloniais e dependentes.
Em que pese o texto a que nos referimos fazer uma certa diferenciação, o não-aprofundamento nas distinções existentes deu margem a que o dogmatismo transfigurasse o seu alcance, dando uma dimensão bem maior à referência feita pelo programa citado. Mas não se pode também esquecer que do próprio Congresso saíram recomendações que orientavam a cada Partido Comunista nos países coloniais a levarem em conta as diversidades de seus países, e com base nas peculiaridades existentes adaptar as teses à situação específica. Sem dúvida, essa ressalva, livra a Internacional Comunista da responsabilidade pela generalização, duramente criticada por Caio Prado Júnior (17).
Mesmo porque não era objetivo tecer estudos aprofundados sobre modos de produção existentes em todos os continentes e países dominados e dominadores. Essa era uma necessidade a ser implementada pelos partidos comunistas em seus países. Ocorre que isso foi feito de forma dogmática, o que levou a equívocos inevitáveis, apesar de muitos deles serem bem fundamentados.
Vejamos o texto da Internacional Comunista sobre o assunto: “Países coloniais e semicoloniais (China, Índia etc) e países dependentes (Argentina, Brasil e outros) que possuem um embrião de indústria, às vezes mesmo uma indústria desenvolvida, insuficiente, na maioria dos casos, para a edificação independente do socialismo; países onde predominam relações sociais da Idade Média Feudal ou o modo asiático de produção tanto na vida econômica, como na sua superestrutura política; países enfim onde as principais empresas industriais, comerciais, bancárias, os principais meios de transportes, as maiores propriedades, as maiores plantações etc., se acham nas mãos de grupos imperialistas estrangeiros. A luta contra o feudalismo e contra as formas pré-capitalistas de exploração e a revolução agrária promovida com espírito de continuidade, de um lado; a luta contra o imperialismo estrangeiro, pela independência nacional, do outro, têm aqui uma importância primordial. A passagem à ditadura do proletariado não é possível nesses países, em regra geral, senão através de uma série de etapas preparatórias, por todo um período de desenvolvimento da revolução democrático-burguesa em revolução socialista é, na maioria dos casos, condicionado pelo apoio direto dos países de ditadura proletária” (18).
Por outro lado, percebemos no trecho citado a referência às etapas preparatórias pelas quais todos os países necessariamente teriam de passar, para alcançar o socialismo. Com isso ampliava-se a margem de confusões a respeito das formações econômicas, vez que firmou-se assim a noção de que os caminhos a se trilhar para o socialismo seriam idênticos para todos esses países coloniais, obedecendo-se às etapas do desenvolvimento, quiçá de acordo com o que ocorreu na Europa. Era uma transposição absurda, vista dessa forma, e um mecanicismo que não levava em conta as peculiaridades de cada país. De países cujo processo histórico era único, dadas as características com que se deu a dominação colonial.
Isso foi fundamental para que inúmeras pesquisas pecassem pelo anticientificismo, pela negação do concreto, e do real, e pelo positivismo disfarçado nas teorizações feitas. Os estudos elaborados tinham mais em conta chegar às conclusões e formulações contidas no programa da Internacional Comunista do que propriamente determinar como se deu o processo de desenvolvimento sócio-econômico em nosso país.
Capitalismo colonial: Um dos maiores críticos da tese sobre a existência do feudalismo no Brasil foi Caio Prado Júnior. E, ao criticá-la, ele vai defender a idéia de que nossa estrutura econômica nada mais foi do que senão parte do sistema capitalista mundial, desde o momento em que o mercantilismo expande o comércio em todo o mundo até o imperialismo das grandes potências. Semelhante às suas opiniões são as idéias defendidas por André Gunder Frank. Para eles a economias brasileira assume desde o início características mercantis, e a produção aqui extraída era gerada pelo capitalismo comercial europeu e destinada ao mercado metropolitano. O imperialismo não somente teria participado na implantação da estrutura colonial brasileira como também participara ativamente da vida econômica, social e política do País (19).
Dessa forma, toda a estrutura colonial brasileira fora montada com o intuito de servir ao sistema capitalista mundial, tendo como base a exportação de produtos primários de onde o imperialismo extraiu os recursos necessários para sua acumulação e fator essencial para sua existência. Engrenada no sistema internacional como fornecedor de matéria-prima, a economia brasileira vai proporcionar imensos lucros aos trustes que dominavam o comércio colonial.
Sobre as relações de produção vigentes na agricultura brasileira, Caio Prado Jr. caracteriza-as como capitalistas, cujos camponeses, “meros vendedores de força de trabalho”, tinham como principal reivindicação a melhoria de sua remuneração, das condições de trabalho e de emprego. Em relação a determinadas formas de trabalho, específicas da formação colonial, e muitas vezes citadas como exemplos da existência de relações feudais de produção – a parceria, o barracão, o cambão etc. –, são vistas por ele como formas de trabalho capitalista, diferindo das convencionais apenas em como se procede o pagamento do salário.
Dentro dessa visão de uma formação capitalista colonial, o trabalho escravo não é visto como contraditório. Prova disso é que a abolição do trabalho escravo, e a transformação deste em trabalho assalariado não trouxe mudanças significativas na estrutura econômica, baseada na grande propriedade agrária, mantendo o ritmo produtivo sem modificações essenciais. Para Caio Prado Jr., o impulso das forças produtivas, tão logo se deu a abolição do trabalho servil, é prova de que o capitalismo encontrou no Brasil o terreno franqueado para elas. Como exemplo ele cita o caso da lavoura e produção cafeeira que, apesar da confusão momentânea devido à mudança brusca do regime, vai se expandir consideravelmente.
Portanto, ao refutar com veemência a tese da existência de formas feudais de produção, Prado Jr. coloca-se no outro extremo, sem procurar aprofundar o estudo no rumo de uma nova abordagem histórica. Ou por ter plena convicção da veracidade de suas idéias, pautada na oposição ao feudalismo brasileiro, ou porque também ele não conseguia fugir das avaliações comuns aos intelectuais da esquerda marxista da época, marcadas pelo esquematismo dogmático que impedia que se pudesse perceber a existência de formações sociais diferentes daquela sequência exaustivamente comum nos compêndios e manuais marxistas, e que, mecanicamente, caracterizava o materialismo histórico e dialético – escravismo, feudalismo, capitalismo, socialismo.
“Será que podemos chamar a classe dos senhores de engenho, dos grandes donos de terra, de burguesia?”.
A convicção que ele poderia ter, e é evidente que tinha, dado à firmeza de seus argumentos, esbarra em contradições, ou até mesmo em indagações que sua teoria não responde. Um dos aspectos refere-se à classe social dominante. A existência de relações de produção capitalistas pressupõe que existe uma classe social dominante, que se apropria daquela produção. Mesmo no período em que vigorou o capitalismo mercantil, o lucro gerado das relações comerciais era apropriado por uma classe específica: A burguesia mercantil. Se partirmos do pressuposto de que as relações existentes no Brasil, desde o período colonial, eram capitalistas, temos também de admitir que existia uma classe burguesa, e era essa a classe social dominante. Será que podemos caracterizar como burguesa a classe dos senhores de engenho, dos grandes proprietários de terras? E até que ponto pode-se dizer que uma estrutura econômica é capitalista se o desenvolvimento do comércio é prejudicado pela inexistência do trabalho assalariado e fundamentalmente do capital circulante. Sim, porque esse existia em pequena escala, por uma reduzida camada de proprietários, cujos rendimentos não eram investidos aqui, mas sim na aquisição de produtos comprados diretamente das metrópoles.
Uma outra questão, levantada por Guido Mantega, é a da não-existência de mais-valia, uma vez que Prado Jr. generaliza ao se referir às formas de trabalho, e considerá-las como sendo assalariadas, “(…) não distinguindo entre as relações de parceria e outras modalidades de trabalho que não são tipicamente capitalistas, encontráveis na agricultura brasileira e as relações de produção especificamente capitalistas” (20).
“No modo de produção capitalista, o capital valoriza-se por meio da mais-valia. Assim, a mais-valia é a forma específica de exploração do capitalismo e um dos seus principais traços distintivos das demais formas de exploração exercidas nas outras sociedades de classe. Evidentemente, em todas as sociedades de classe ocorre a exploração, porém o que distingue uma sociedade da outra é justamente a forma específica como se dá essa exploração.
A mais-valia, assim, qualifica uma forma de exploração bastante diferente da renda fundiária, que é a forma de exploração praticada na parceria” (21).
O modo de produção escravista colonial: Fruto de estudos mais recentes, nos deparamos com uma nova caracterização para a análise da formação econômica e social brasileira. Diferente dos esquematismos tradicionais, uma nova corrente se insere na discussão sobre qual modo de produção vigorou no Brasil, defendendo a tese de que prevaleceu em nosso país um modo de produção escravista colonial, em nada parecido com o escravismo que vigorou na antiguidade. Como principais defensores dessa concepção citamos Jacob Gorender, Décio Saes e Ciro Flamarion Cardoso.
Entretanto, em que pese a aproximação conceitual entre eles, um aspecto deve ser ressaltado. E é o que diferencia mais substancialmente a teorização exposta por Saes, de Gorender e Flamarion Cardoso. Diz respeito à conceituação de modo de produção. Para Décio Saes modo de produção não pode ser definido levando-se em conta meramente a infra-estrutura (relações de produção, forças produtivas), colocando-se o aspecto econômico como determinante, e desprezando-se os fatores superestruturais, ou simplesmente situando-os como dependentes daquele. Segundo ele, é nas particularidades das estruturas jurídico-políticas que se podem estabelecer as diferenças entre o modo de produção escravista antigo e o moderno (22). Essa necessidade de vinculação entre infra-estrutura e superestrutura é um traço marcante na obra de Saes, e um aspecto interessante, uma vez que os teóricos marxistas, invariavelmente, utilizam para conceitualizar modo de produção algumas citações de Marx que afirmam ser um fator econômico (infra-estrutura), em última instância, o determinante. Mas, determinante, em última instância, não quer dizer que os demais não exerçam influência e possam determinar transformações na própria base. Sobre essa questão, Engels se pronuncia numa carta feita a H. Starkengurg: “O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico etc. baseia-se no desenvolvimento econômico. Mas todos aqueles reagem entre si e sobre a base econômica. Não é que situação econômica seja, sozinha, causa ativa e que todo o resto seja apenas efeito passivo. Há, porém, interação à base da necessidade econômica que, em última instância, sempre se impõe” (23).
Sem dúvida, o estudo feito por Gorender, e que resultou numa obra volumosa e importante fonte de pesquisa, leva mais em conta a estrutura econômica, sem uma abordagem mais precisa dos aspectos jurídicos e políticos. Estes subordinam-se às relações de produção determinadas pela base econômica, o escravismo colonial, e por vinculação necessária com o mercado mundial – via metrópole e sujeitos às transformações do comércio mercantil.
Situando o Modo de Produção Escravista Colonial, como “historicamente novo”, Jacob Gorender refuta as concepções que supunham ter transposto as mesmas estruturas econômicas dos conquistadores portugueses. Ao mesmo tempo em que discorda da realização de uma síntese entre aqueles e as formações econômicas que existiam anteriormente à conquista. Para ele “criou-se” aqui no Brasil um “modo de produção de características novas, antes desconhecidas na história humana” (24).
Dependente do mercado metropolitano, o escravismo colonial possuía uma economia natural e a intensificação do comércio não refletiu em desagregação da sua estrutura. Isso se explica pela existência de um mercado externo apropriado, e por ser ele compatível com a finalidade mercantil.
“O significado econômico de colonial, próprio à era iniciada com o mercantilismo, explicita-se, a meu ver, nos seguintes traços principais: 1) economia voltada principalmente para o mercado exterior, dependendo deste o estímulo originário ao crescimento das forças produtivas; 2) troca de gêneros agropecuários e/ou matérias-primas minerais por produtos manufaturados estrangeiros, com uma forte participação de bens de consumo na pauta de importações; 3) fraco ou nenhum controle sobre a comercialização no mercado externo” (25).
Nesse aspecto, portanto, caracteriza-se mais claramente a diversidade de opiniões entre Gorender e Saes. Ao se referir ao Estado escravista moderno, como um Estado colonial, Saes ressalta, diferentemente de Gorender, que o qualificativo colonial é por ele empregado não para estabelecer certos traços peculiares da infra-estrutura, mas “certas características do próprio aparelho de Estado”. Dando, portanto, a ênfase do colonial num sentido superestrutural (26).
Ao conceituar o Estado escravista colonial, Saes afirma tratar-se de um Estado escravista em que estava sujeito ao controle de duas classes dominantes, cujas formações sociais eram bastante distintas. Isso porque o seu aparelho burocrático-militar tanto era constituído pela classe dominante da colônia quanto a da metrópole. Constituindo assim duas formações sociais, uma escravista moderna, que prevalecia nas colônias, e uma feudal onde se desenvolvia o comércio, oriunda da metrópole. “O Estado escravista colonial é, simultaneamente, o Estado das Classes dominantes locais e o Estado das classes dominantes portuguesas” (27). Mas em que pese essa teorização diferenciada, ele deixa claro que o modo de produção escravista moderno foi o dominante no Brasil entre os séculos XVI e XIX.
Bem como a estrutura jurídica do período colonial era, dominantemente, escravista.
Percebe-se, mesmo que num estudo superficial, que, apesar da concordância sobre qual modo de produção foi o dominante no Brasil no período colonial, existem diferenciações entre as análises feitas pelos intelectuais que compõem essa corrente – na qual, além de Flamarion Cardoso, a que aqui nos referimos sem entrar na discussão de suas idéias, podemos incluir Fernando Novais – que precisam ser melhor estudadas. É visível que em alguns aspectos elas se completam, mas há divergências de fundo em nível da própria teorização, tanto sobre o Modo de Produção Escravista Colonial, especificamente, como em nível mais geral, a respeito da conceituação de Modo de Produção. E também a respeito das relações econômico-sociais dominantes.
O mérito maior dessa corrente foi o de fugir, como já me referi, do esquematismo tradicional, e avançar no estudo da formação econômica brasileira, apresentando uma formulação nova, sobre a qual é preciso se debruçar com maior profundidade para um estudo mais detalhado.
Conclusão: Este estudo carece ainda de uma análise mais aprofundada das diferentes concepções sobre nossa formação econômica. Penso que isso está faltando para que possamos chegar mais perto de nossas raízes. É evidente que não se pode querer uma unanimidade de interpretação, seria utópico por demais. Mas já podemos ver nesses últimos trabalhos feitos, e eu enfatizaria o de Décio Saes, algumas questões novas, ou pelo menos abordadas de forma diferente.
É notório que a conotação que procurei dar às observações referentes a cada uma delas foi menos com um rigor científico e mais com um caráter político-ideológico. Porque essa discussão também demarcou campo nesse aspecto, uma vez que por várias décadas se discutiu na esquerda marxista – da qual faziam parte vários dos intelectuais acima citados – o caráter de nossa formação econômica, a fim de estabelecer um programa para a revolução socialista aqui no Brasil. A inexistência de estudos mais profundos sobre essa questão levou a que o referencial utilizado fosse as teses elaboradas pelos congressos da Internacional Comunista, cujas interpretações deram margem a equívocos já referidos, e a transposição de modelos que nada tinham a ver com nossa realidade específica, com o processo histórico que viveu a sociedade brasileira.
De tal forma, que teses como a da existência de restos feudais (28), em nosso País, prevaleceu por muito tempo, exercendo, inclusive, influência na elaboração de documentos recentes, em que, mesmo sem uma referência explícita, isso fica claro na confusão que se faz até hoje ao se destacar o problema da estrutura agrária brasileira. O dogmatismo impedia que se pudesse sair do esquematismo proposto por obras oriundas da União Soviética, optando-se por uma análise mecanicista, embora se insistisse em caracterizá-la como materialismo histórico e dialético. Muitas das formulações surgidas então não escapariam, a partir de uma interpretação rigorosa, da denominação de marxismo-positivista.
Ao que parece, nesse campo marxista, fugia-se da referência mais explícita às obras de Marx e Engels, e optava-se por um estilo escolástico. Aí, não podia ser de outra forma, prevaleciam as análises oficiais. Ao aceitá-la, sem objeções, e o que é mais grave, com transposições de conceitos gerais para realidades distintas, quebrava-se, contraditoriamente, um dos princípios fundamentais do marxismo: a dialética.
“O instrumento de produção é diretamente roubado na pessoa do escravo. Mas neste caso a produção do país, em proveito do qual ele é roubado, deve ser organizada de modo a permitir o trabalho escravo, ou (como na América do Sul etc) é necessário criar um modo de produção de acordo com a escravatura” (29).
Penso que a partir dessa citação de Marx, contida na Introdução de A Crítica da Economia Política, pode-se perfeitamente escapar da rigidez com que se colocava a discussão sobre Modo de Produção num referencial pretensamente, ou equivocadamente, marxista. Não há segredos: a dialética materialista, que fundamenta as análises também na história dos homens, jamais abstrai as diferenciações existentes em cada país ou região. Sobre essa questão Engels é bastante claro quando diz: “A teoria histórica de Marx é, em minha opinião, a condição básica de qualquer tática revolucionária coesa e consequente; para encontrar essa tática, basta aplicar a teoria às condições econômicas e políticas do país em questão (…).
Mas para isso, é preciso conhecer essas condições (…)” (30).
E foi exatamente para combater as concepções mecanicistas, que Marx vai criticar aqueles que transpunham dessa forma suas análises contidas em O Capital, especificamente no que se refere ao capítulo sobre a acumulação primitiva (op. cit.). Diz ele: “(…) eventos de chocante analogia, mas se passando em meios diferentes, levaram a resultados bem diferentes. Estudando à parte cada uma dessas evoluções, encontrar-se-á facilmente a chave desse fenômeno, mas nunca se chegará aí com a chave-mestra de uma teoria histórico-filosófica geral, cuja virtude suprema consiste em ser supra-histórica” (31).
* Pós-graduando em História das Sociedades Agrárias na Universidade Federal de Goiás.
Notas:
(1) CORBISIER, Roland. Enciclopédia Filosófica. Civilização Brasileira, 2ª edição, p. 145.
(2) MANTEGA, Guido. A Economia Política Brasileira. Polis/Vozes, 3ª edição, p. 20-21.
(3) É importante ressaltar que, embora Mantega faça referência ao Partido Comunista Brasileiro, em 1954, época do V Congresso do PCB, quando as referidas teses começam a ser esboçadas não existia ainda essa denominação, ou essa agremiação partidária. O PCB tinha o seu registro como Partido Comunista do Brasil. Após 1960 é que surge o Partido Comunista Brasileiro, sendo o Partido Comunista do Brasil reorganizado em 1962 com a sigla PCdoB.
(4) MANTEGA, Guido. A Economia Política Brasileira, p. 20.
(5) Op. cit., p. 88.
(6) Op. cit., p. 89.
(7) BOTTOMORE, Tom (org.). Dicionário do Pensamento Marxista. Jorge Zahar, p. 373.
(8) MARX, Karl. Introdução à Crítica da Economia Política. Editorial Estampa, Lisboa, 1977, p. 226.
(9) ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. Brasiliense, 2ª edição, 1989, p. 461.
(10) SWEEZY, Paul e outros. A Transição do Feudalismo para o Capitalismo. Paz e Terra, 1978.
(11) MARX, Karl. O Capital. Livro I, Vol. II, Civilização Brasileira, 6ª edição, p. 868-871.
(12) LÊNIN, V. I. Obras Escolhidas. Vol. 3, Alfa-Ômega, 1980, p. 382-384 (II Congresso da Internacional Comunista).
(13) LÊNIN, V. I., op. cit., p. 384.
(14) Documentos. Os Quatro Primeiros Congressos da Internacional Comunista. Vol. I, Maria da Fonte, Lisboa, p. 171.
(15) MANTEGA, Guido. A Economia Política Brasileira. Op. cit., p. 145-147.
(16) “Nestas condições, as principais contradições que, no momento atual, se verificam no Brasil são as que contrapõem os imperialistas norte-americanos à maioria esmagadora da Nação e, simultaneamente, os restos feudais ao povo brasileiro”. Luis Carlos Prestes, Informe do “Balanço do Comitê Central – IV Congresso do PCB”, publicado em Problemas, dezembro de 1954 a fevereiro de 1955, p. 60 (citado por MANTEGA, op. cit., p. 162).
(17) PRADO JR., Caio. A Revolução Brasileira, op. cit., p. 66.
(18) Programa da Internacional Comunista e Estatutos. Maria da Fonte, Lisboa, p. 78.
(19) PRADO JR., Caio. A Revolução Brasileira, op. cit.
(20) MANTEGA, Guido. A Economia Política Brasileira. Op. cit.
(21) MANTEGA, Guido. Op. cit., p. 252-253.
(22) SAES, Décio; A Formação do Estado Burguês no Brasil. Paz e Terra, 2ª edição, p. 68-69.
(23) Carta de Engels a H. Stakenburg, 1894, in Florestan Fernandes (org.) Marx/Engels – História. Ática, p. 469.
(24) GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. Ática, 5ª edição, p. 40-41.
(25) GORENDER, Jacob. Op. cit., p. 163.
(26) SAES, Décio. A Formação do Estado Burguês. Op. cit., p. 89.
(27) SAES, Décio. Op. cit., p. 92-93.
(28) Vide a respeito, as obras de: GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro Séculos de Latifúndio. Paz e Terra, 4ª edição, e SODRÉ, Nelson W. História da Burguesia Brasileira. Civilização Brasileira, 1976.
(29) MARX, Karl. “Introdução à Crítica da economia Política”, in Contribuição para a Crítica da Economia Política, 5ª edição, Editorial Estampa, p. 227.
(30) ENGELS, F. “Carta a V. I. Zassulitch”, in FLORESTAN, Fernandes. Marx/Engels – Textos, op. cit.
(31) ENGELS, F. “Carta a redação da Otetschestwennyje Sapiski” in: FLORESTAN, Fernandes. Marx/Engels – Textos, op. cit.
Bibliografia
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. Brasiliense, São Paulo, 2ª. ed. 1989.
BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2ª. ed.
CARDOSO, Ciro Flamarion e BRIGNOLI, Héctor P. Os Métodos da História. Graal Ltda., Rio de Janeiro, 4ª ed.
CORBISIER, Roland. Enciclopédia Filosófica. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2ª. ed., 1987.
Documentos. Os Quatro Primeiros Congressos da Internacional Comunista. I vol. Maria da Fonte, Lisboa.
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Guanabara, Rio de Janeiro, 3ª ed., 1987.
FURTADO, Celso. Marx/Engels – História. Ática, São Paulo, 1983.
_______________. Formação Econômica do Brasil. Cia Editora Nacional, São Paulo, 17ª ed., 1980.
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. Ática, São Paulo, 5ª. ed., 1980.
GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro Séculos de Latifúndio. Paz e Terra, Rio de Janeiro, Polis/Vozes, 3ª ed., 1985.
LÊNIN, V. I. Obras Escolhida, vol. 3. Alfa-Omega, São Paulo, 1980.
MANTEGA, Guido. A Economia Política Brasileira. São Paulo/Rio de Janeiro, Polis/Vozes, 3ª ed., 1985.
MARX, Karl. Contribuição para a Crítica da Economia Política. Editorial Estampa, Lisboa, 5ª ed., 1977.
___________. O Capital, Livro I, vol. II. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 6ª ed., 1980.
MAZZEO, Antonio Carlos. Estado e Burguesia no Brasil. Oficina de Livros, Belo Horizonte, 1989.
NOVAES, Fernando A. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). Hucitec, São Paulo. 2ª ed., 1983.
PRADO JÚNIOR, Caio. A Revolução Brasileira. Editora Brasiliense, São Paulo. 7ª ed., 1977.
SWEEZY, Paul e outros. A Transição do Feudalismo para o Capitalismo. Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1978.
EDIÇÃO 31, NOV/DEZ/JAN, 1993-1994, PÁGINAS 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41