Ao que tudo indicava a batalha da Revisão Constitucional estava inapelavelmente perdida e as forças conservadoras não conseguiriam iniciá-la em 1993. A resistência interposta pelos partidos progressistas e a ampla denúncia formulada por OAB, CNBB, CUT, UNE, CGTs e SBPC parecia ter contido a ofensiva pró-revisão.

Imobilizado pela pressão da sociedade e de suas bases, o centro (PMDB e PSDB) dividia-se. A bancada federal do PMDB de São Paulo chegou a votar uma posição anti-revisão e era tida como verdadeira a informação de que entre os deputados tucanos a maioria era contrária às teses revisionistas.

Perdida a batalha na sociedade e nas ruas, com a Igreja, os sindicatos, os advogados, os estudantes, a esquerda e boa parte do centro contra, os revisionistas chegaram a dar a disputa como encerrada.
Depois da fatídica sessão de 22 de setembro, quando o presidente do Congresso, senador Humberto Lucena, pulou de regimento em regimento para forçar a leitura do Projeto de Resolução que marcava a data do início da Revisão, numa sessão sem quorum, tudo fazia crer que a direita ia bater em retirada.
Próceres do empresariado anunciaram a desarticulação dos poderosos e caríssimos lobbies e o mascote sindical da revisão, o arqui-pelego Luiz Antônio de Medeiros chegou a confessar numa reunião com metalúrgicos que, apesar de seus esforços, a revisão que modernizaria o País estava definitivamente comprometida.

A batalha parecia perdida para a direita, mas não estava. A impressão que se tem, confirmada por vários acontecimentos, é de que, aos primeiros sinais de fraqueza e desânimo em suas fileiras, entrou em operação um centro de comando capaz de reorganizar, unificar e pôr novamente em combate as forças revisionistas.

O presidente do PSDB, empresário Tasso Jereissati, chega do exterior diretamente para Brasília e chantageia com ameaças de renúncia por parte do ministro Fernando Henrique Cardoso. Os dissidentes do PSDB silenciaram e a bancada marcha em ordem unida a favor da Revisão.
No PMDB o ex-presidente José Sarney esmurra a mesa e encara o próprio líder do governo na câmara alta, senador Pedro Simon, destaque entre os céticos da Revisão. De São Paulo o governador Fleury lança seus mísseis e faz cessar a resistência dos anti-revisionistas do partido.

Ao mesmo tempo, o deputado Luis Eduardo Magalhães, líder do PFL, renuncia à relatoria da Revisão, para a qual tinha sido ungido em acordo prévio, e aceita para a tarefa o nome do deputado Nelson Jobim, do PMDB do Rio Grande do Sul, festejado nas hostes conservadoras por um suposto talento do qual a direita lança-mão já que não conta no momento com nenhum Rui Barbosa.

De Brasília, a Rede Globo derrama sobre o País uma tempestade de mentiras e desinformações. Seus correspondentes atacam covardemente a OAB, ao dizer que seu presidente invadiu o plenário da Câmara para agredir de dedo em riste o presidente dos trabalhos, senador Humberto Lucena, na sessão do dia 22, quando na verdade a ele se dirigiu, convidado pelo próprio, para intermediar a insatisfação das galerias. Dos Estados Unidos, o ministro Fernando Henrique acompanhava tudo. Fosse um dos nossos, a melhor imagem seria a de um refém. Mas não era. Estava nos Estados Unidos para defender as mesmas mudanças na Constituição apregoadas por aquele diretor do FMI, José Fajgenbaum, que Collor mandara sair do País por tanto atrevimento.

Para completar o clima de vale-tudo e intimidação, o presidente da Câmara, deputado Inocêncio Oliveira, ordena o fechamento das galerias e orienta a segurança para retirar qualquer manifestante das dependências da casa, usando a força, inclusive contra deputados que tentem impedir a retirada dos populares.

“Regimento apresentado por Jobim praticamente exclui entidades e partidos de esquerda”.

Era a chegada da cavalaria prussiana. Foi assim também em Waterloo. Napoleão já divisava a vitória nos campos encharcados nas cercanias de Bruxelas quando surge a cavalaria do marechal Blucher e define a batalha em favor do Duque de Wellington. Finalmente o Projeto de Resolução é aprovado na noite do dia 29. Os revisionistas ganham o primeiro round de uma luta que se anuncia cruente e prolongada.

Aprovado o início da Revisão, os revisionistas apresentam seu projeto de Regimento Interno para os trabalhos. E surge da pena do deputado Nelson Jobim uma pérola de regimento fascista, autoritário e centralizador, capaz de fazer inveja aos juristas do Terceiro Reich.

Pela proposta de Regimento as minorias são praticamente excluídas do processo de decisão. Para se ter uma idéia do que isso representa, basta dizer que, juntos, PT, PDT, e PCdoB não somam os votos exigidos – 117 – para pedir uma singela verificação nominal de votação.

No período destinado ao debate em torno dos temas da Revisão – 20 dias corridos – cada congressista terá direito de usar a palavra uma única vez pelo prazo de quinze minutos. Descontados os sábados e domingos, teremos no máximo 15 sessões de quatro horas. Isto significa que no máximo 240 parlamentares terão direito de dizer alguma coisa durante os debates da Revisão.

Tais idéias são da lavra de um advogado gaúcho, Nelson Jobim, projetado pela direita como seu jurista de plantão. Contra ele circularam informações dando conta de que advoga contra a União, o que é proibido pelo estatuto da Ordem dos Advogados para quem exerce a função de deputado federal.
O escritório que Jobim mantém em Brasília, junto com dois sócios, tem como clientes, entre outros, a Confederação Nacional da Indústria. Ao ler notícias sobre suas atividades privadas publicadas pelo Jornal do Brasil, Jobim enviou cartas à OAB e ao escritório se licenciando das funções de advogado e sócio. Mas há quem julgue que sua atividade como relator já estaria contaminada pelas relações perigosas de sua banca de advocacia.

Para melhor entender a Revisão, e mais decididamente lutar contra ela, as forças progressistas precisam compreender as razões mais profundas que movem as correntes revisionistas, e os seus objetivos estratégicos em escala internacional e nacional.

Em feliz comparação, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, José Roberto Batocchio, apontou a semelhança entre a Revisão e um pé-de-cabra com o qual se pretende arrombar a Constituição.

A escalada revisionista constitui a terceira onda de ofensiva conservadora no sentido de remover os obstáculos para que aqui floresça o neoliberalismo, uma planta cultivada no terceiro mundo para dar frutos no primeiro.

A primeira tentativa começou com a ascensão de Collor ao poder e fracassou quando o presidente corrupto foi definitivamente afastado do comando do País e da política pelo Congresso e pela pressão popular.

A segunda arremetida ocorre sob a capa de um parlamentarismo com voto distrital e hegemonia conservadora amplamente derrotado no plebiscito de abril.

As duas derrotas seguidas levaram os neoliberais e seus aliados a enxergar na Revisão da Constituição a terceira chance de emplacar seu projeto e liquidar as resistências contra a demolição do Estado e o assalto aos direitos sociais assegurados pela Constituição.

“A Constituição não serve para o projeto que as elites pretendem implantar no Brasil”.

E essa história não é recente no Brasil. Sempre que as normas jurídicas impõem limites ou riscos ao desenvolvimento dos propósitos da reação, ela não vacila em passar por cima daquilo que escreveu ou ajudou a escrever, rompendo o pacto que momentos antes jurou respeitar.

Foi assim em 1823, quando D. Pedro I pisoteou a primeira Carta brasileira outorgando outra no ano seguinte. Em 1937 Getúlio rasgou a Constituição que ajudara a fazer em 1934 e impôs a Polaca, copiada do modelo de Constituição fascista do ditador polonês Pilzudski. Em 1967 os generais rasgaram a Constituição liberal de 1946 e promulgaram a Lei Magna da Ditadura. Um ano depois a ela incorporaram o AI-5 e implantaram a Constituição do Terror, pela qual o general de plantão podia fechar o Congresso e legislar sem as restrições da própria Constituição. É na esteira dessa tradição autoritária e golpista que a direita ameaça romper unilateralmente o pacto constitucional de 1988.

Diante de um mundo unipolar, dominado por uma potência militar única que exige a rendição econômica das nações, a Constituição impõe um limite que é a presença do Estado na economia em áreas como petróleo, telecomunicações, energia elétrica e subsolo.

Os revisionistas se traem pelas próprias verdades que proclamam. Dizem que o Brasil é ingovernável sob a atual Constituição, o que em si é verdadeiro, pois enquanto as elites desejam transformar o País em simples extensão do mercado das grandes nações industrializadas, a Constituição afirma que o mercado interno é patrimônio nacional.

Quando os revisionistas investem contra o patrimônio público e os monopólios da União batem de frente com o texto Constitucional, daí a necessidade de destroçá-lo para que afinal triunfe a vontade das grandes corporações internacionais e seus sócios menores internos.

É preciso alertar, ainda, para a atmosfera de animosidade no ambiente revisionista contra os direitos democráticos assegurados pela Constituição de 1988. Os neoliberais e seus aliados sonham com o fim do voto proporcional, a adoção do voto distrital, a restrição ao direito de greve e à livre organização dos trabalhadores.

Como se não bastasse, a Fiesp propõe uma revisão a cada cinco anos como se a Constituição do País fosse massa de moldar disponível para confeccionar leis a qualquer momento a serviço do capital.
Mas não é sem dificuldades e resistências que a Revisão abre seu caminho. A subordinação da ordem jurídica nacional aos ditames do FMI levantou o protesto de setores liberais e de amplos segmentos da esquerda e centro-esquerda.

A Igreja denunciou os objetivos revisionistas de golpearem os direitos sociais e de adaptação da
Constituição às políticas de corte neoliberal.

A Ordem dos Advogados do Brasil questionou o próprio conteúdo da Revisão advertindo que o Artigo 3º das Disposições Transitórias só autorizava a Revisão para os casos da forma e do sistema de governo, o que havia sido rejeitado pelo plebiscito. A CUT e as CGTs (Central e Confederação) apontaram os riscos às conquistas dos trabalhadores caso a Revisão fosse posta em prática. O sentimento dos trabalhadores contra a Revisão atingiu a própria Força Sindical de Medeiros, com a renúncia de um dos diretores da Central, Francisco Cardoso Filho, o Chicão, presidente do poderoso Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos, que abandonou o posto alegando divergências em relação à questão da Revisão.

A disputa em torno da Revisão separou a sociedade em dois grandes blocos. O jogo pesado dos conservadores para fazer aprovar a Revisão levou a uma unidade maior das forças que a ela se opõem, e PT, PDT, PSB e PCdoB passaram a articular em conjunto os esforços para conter os passos da Revisão.

Os monopólios perceberam o jogo arriscado em que estavam metidos. Não seria tarefa fácil fazer a Revisão excluindo estes partidos e contra a vontade dos escalões mais organizados e representativos da sociedade.

Ainda que o Congresso fosse uma Constituição prestigiada, saudada nas ruas pelo povo, o presidente da República tivesse o pulso de um Lincoln e a economia e a inflação estivessem sob controle, mesmo assim a legitimidade da Revisão estaria em questão.

“A batalha da revisão só começou. Vencedores e vencidos ainda estão longe de ser definidos”.

Na tentativa de obter o amparo ideológico para preencher o vazio da legitimidade social, a imprensa das elites logo alcunhou os partidos que se opõem à Revisão, de contras, em alusão aos grupos de direita que na Nicarágua lutaram contra o regime sandinista.

E assim vai a nossa imprensa amarela tentando convencer seus leitores de que PCdoB, PSB, PT, PDT, OAB, UNE e SBPC representam o atraso em confronto com a modernidade pregada pela Fiesp e conduzida no Congresso pelo senador Humberto Lucena e pelo deputado Inocêncio Oliveira. Como no programa de TV, Acredite se quiser.

A guerra da Revisão encontra-se em suas primeiras escaramuças e muito distante ainda de definir vencidos ou vencedores. A aprovação do início dos trabalhos e a proposta de um Regimento apenas expõem os choques que se avizinham, inclusive no seio dos próprios defensores da Revisão. Como fazer marchar unidos PMDB e PFL, por exemplo?

Além do mais, surge agora o escândalo envolvendo deputados, senadores, ministros e ex-ministros no esquema de fraude no orçamento promovida pelo ex-diretor do Departamento de Orçamento da União, José Carlos Alves dos Santos.

Antes, surgira o episódio da compra de mandatos por parte do PSD, em cujo esquema teria participado o governador de São Paulo, Fleury Filho, e alguns deputados. Coincidentemente ou não, nos dois casos, revisionistas juramentados terão de dar explicações.

O combate à Revisão pressupõe uma atitude firme e unitária. Inflexível diante da Revisão, mas ampla o suficiente para travar a luta com aqueles que, de boa fé no campo revisionista, não compreenderam ainda o seu significado desastroso para o povo e para o País.

As forças progressistas devem aproveitar o clima da liberdade existente e conclamar o povo às ruas, afinal é o seu futuro que está em jogo. Julgada nas praças pela multidão a Revisão não terá destino glorioso.

* Deputado, líder do Partido Comunista do Brasil na Câmara Federal.

EDIÇÃO 31, NOV/DEZ/JAN, 1993-1994, PÁGINAS 4, 5, 6