Xambioá, a denúncia inesperada
Há duas décadas esperava-se, no Brasil, a possibilidade de montar um quadro real do que foi o Araguaia. Já se escreveu muita coisa a respeito do episódio conhecido como Guerrilha do Araguaia, o movimento armado ocorrido no Sul do Pará, no início da década de 1970. Mas as atrocidades cometidas pelos órgãos de repressão só agora deixam de ter a pecha de ressentimento da esquerda, de mágoa de derrotados ou outras classificações do gênero.
O livro Xambioá – Guerrilha do Araguaia, de Pedro Correa Cabral, surgiu como um torpedo aos olhos de quem se empenha em desvendar a história recente do Brasil. A começar pelo curriculum do autor, que é coronel reformado da Aeronáutica, e participou da terceira etapa – ou campanha, no linguajar militar – do embate entre as forças do governo militar e a guerrilha. Um feito que suplanta qualquer esforço de jornalistas ou pesquisadores de universidades para relatar os desmantelos cometidos pela repressão.
Ao escolher uma mistura de realidade com ficção, Pedro Cabral compromete um pouco sua obra. Sua “Novela Baseada em Fatos Reais”, como o livro é apresentado pela editora Record, entretanto, revela episódios conhecidos, mas de difícil comprovação até agora. A manchete de capa da revista Veja sobre o assunto, revela tudo na frase “Eu vi corpos queimando”, dita pelo coronel. Seu livro não deixa dúvidas de que ele viu mesmo corpos queimando, torturas aos vivos, enterros e desenterros aos mortos, ao bel-prazer do comandante.
Uma evidência de que Cabral bateu forte foi uma carta publicada pela mesma revista na semana seguinte. O autor é o coronel Sebastião Rodrigues de Moura, o conhecido major Curió, uma peça fundamental na história da Guerrilha do Araguaia. Na carta, ele diz ter adotado medidas ligais para “apurar as mentiras e insanidades” de Cabral. No livro Curió é o Dr. Zeca, apenas um codinome a mais em sua trajetória de vida.
Xambioá não é um libelo contra as mesmas Forças Armadas a que seu autor pertenceu e ainda pertence como aposentado. Sua crítica dirige-se aos comandantes que, respaldados por um regime sem lei, acharam por bem fazer exercícios de guerra contra seu próprio povo. E perdoa os próprios autores, como indivíduos, ao afirmar, na apresentação que escreveu: “o tempo se encarregou de prescrever tais crimes”.
O livro é bem realista ao deixar transparecer o verdadeiro papel de Cabral no combate à guerrilha. Como piloto de helicóptero, o então capitão-aviador, Cabral viu os acontecimentos sempre de cima, descendo ao solo para tarefas em locais específicos, especialmente na operação limpeza, destinada a não deixar vestígios da guerra. Ele não teve, portanto, muito contato com as populações locais, militantes ou não, e muito menos fez parte de ações de combate propriamente dito.
Por conta disso, o livro tem mesmo o jeito de ficção ao narrar diálogos entre guerrilheiros ou episódios envolvendo pessoas das comunidades da região. E escorrega por algumas incorreções ao tratar de datas, nomes e ocorrências, que recebem desde logo o perdão pelo caráter ficcional que dá a sua obra. Isso, porém, em nada ofusca o contundente relato que faz daquilo que vivenciou e agora denuncia, recebendo desde logo uma certidão de confiabilidade pelo caráter documental de sua obra.
Não há dúvida de que essa dubiedade prejudica a obra. Sempre haverá uma desculpa para os criminosos e a incerteza sobre os verdadeiros heróis da contenda, caso a obra de Pedro Cabral seja tomada como definitiva, o que não parece ser o seu provável destino. Xambioá tem, no entanto, o grande mérito de abrir uma enorme vereda para que se desvende o real sentido, a verdade dos fatos e o verdadeiro papel histórico deste importante episódio da nossa história mais próxima.
É indiscutível que o laborioso trabalho de levantamento de episódios que comprovassem a crueldade e o flagrante desrespeito aos mais fundamentais direitos humanos fica muitíssimo mais fácil a partir deste livro. As intenções da editora Record ao publicá-lo, ou de Veja ao repercuti-lo de maneira tão estrondosa, quaisquer que sejam, não desviam a obra dessa trilha.
A denúncia ajuda, também, na empreitada dos que lutam para saber dos desaparecidos. Não se trata apenas de buscar a reposição aos seus devidos lugares de fatos históricos. São famílias que padecem de saber de seus parentes por sentimentos profundos do bem-querer ou até mesmo por razões comezinhas do viver, como a partilha de bens em heranças, por exemplo.
O coronel Pedro Cabral é criterioso em algumas observações que faz a respeito da realidade que presenciou. Ele destaca o papel fundamental que tiveram os órgãos de inteligência no combate ao movimento guerrilheiro. Muito mais do que as forças regulares, esses setores foram os que, contrariando as próprias regras do Exército, assassinaram prisioneiros entre os combatentes organizados pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) junto às comunidades locais.
Com isso, ele revela o papel com que órgãos insuspeitos do governo, como o DNER, o Incra e a Sucam funcionaram entre 1970 e 1975, como instrumentos da repressão. São fatos conhecidos, mas que ganham destaque na voz de um militar, já que oficialmente as Forças Armadas insistem em negá-los. Esse fato, aliás, serve apenas para colocar todos os militares como cúmplices das atrocidades cometidas naquele episódio. Cabral deixa claro em seu livro que entre seus objetivos está o de evitar que seja essa a visão que se tenha das Forças Armadas brasileiras.
Como obra puramente literária, embora desenvolta, essa certamente não seria uma prioridade máxima dos que se dão ao saudável hábito da leitura Xambioá. É, porém, imprescindível como documento histórico, como depoimento, como testemunho. E como tal, por paradoxal que pareça, adquire valor literário.
EDIÇÃO 31, NOV/DEZ/JAN, 1993-1994, PÁGINAS 79