EUA, Nicarágua e eleições
A derrota dos sandinistas nas eleições de 1990 na Nicarágua foi um choque para quem acreditou na Revolução Sandinista. Os EUA aperfeiçoaram sua estratégia de baixa intensidade na Nicarágua, e os anos de sangrenta intervenção da CIA naquela nação prepararam a fase final: um golpe de Estado eleitoral made in USA.
O livro A Faustian Bargain (1), de William Robinson, não elimina a mágoa pela vitória de Violeta Chamorro nas urnas, mas mesmo assim deve ser lido por quem quiser compreender como os EUA conseguiram afastar a Frente Sandinista do poder através de uma intervenção política, depois do fracasso em derrotar os sandinistas no campo militar. O primeiro livro de Robinson, escrito com Kent Norsworthy, David and Goliath: The U. S. War against Nicarágua (Davi e Golias: a guerra dos EUA contra Nicarágua, Nova Iorque, Monthly Review Press, 1987), venceu o prêmio literário Gustavus Myers Book Award em 1987.
A importância de seu novo livro, A Faustian Bargain, vai além de uma análise histórica da orientação política dos EUA na Revolução Sandinista. Com clarividência, Robinson alerta que, tendo funcionando tão bem na Nicarágua, a intervenção americana poderá tornar-se um modelo para a política exterior americana nos anos 1990. Mesmo porque os estrategistas ligados à administração Clinton dizem querer “promover a democracia” através da intervenção política, tese que transformou-se em elemento-chave na orientação política externa na era pós-guerra fria.
A Faustian Bargain revela toda a extensão da interferência americana nas eleições. Já se escreveu muito sobre os 12,5 bilhões de dólares que o Congresso americano destinou à National Endowment for Democracy (NED – Fomento Nacional à Democracia), para distribuição aos grupos de oposição interna na Nicarágua em 1989-1990. Robinson desvela também o sigilo que envolveu os canais clandestinos usados pela CIA e outras agências americanas para financiar a oposição com mais 17,5 milhões de dólares. Apesar de contribuições financeiras para eleições no exterior serem proibidas pela americana, Robinson mostra que a administração Bush gastou cerca de 20 dólares por eleitor na Nicarágua, enquanto nas eleições americanas de 1988 se gastou 4 dólares por eleitor.
A Faustian Bargain conta em detalhes como o NED trabalhou junto com a administração Bush para criar uma oposição nicaraguense fora dos ineficientes e briguentos grupos anti-sandinistas. Foram oferecidos fundos a líderes e organizações, para seguirem a estratégia política dos EUA. Washington não só escolheu Chamorro como candidata da União Nacional de Oposição (UNO), mas elaborou toda a plataforma com que ela concorreu às eleições.
“Nos EUA gasta-se US$ 4 por eleitor. Na Nicarágua, Bush gastou US$ 20 por eleitor”.
Um líder da oposição contou a Robinson que “(…) as pressões da embaixada americana para eu me juntar a eles foram muito intensas. Eles estão distribuindo muito dinheiro, é difícil resistir”. Grupos de trabalho, formados por homens, mulheres e jovens foram organizados pelo NED, que também pagava os profissionais que ensinavam as táticas políticas necessárias a uma campanha eleitoral, e delineavam as atividades cotidianas desses grupos.
O jornal anti-sandinista La Prensa e as estações de rádio e TV da oposição anti-sandinista foram financiados e abastecidos com propaganda política da UNO. Os programas foram desenvolvidos por especialistas pagos com o dinheiro do NED.
Em 1989 e 1990, Robinson foi repórter da Agência de Notícias da Nicarágua, sandinista, em Washington, onde ele investigou o projeto do NED para as eleições na Nicarágua. Conversou com funcionários do governo americano e do próprio NED, e descobriu documentos incriminadores, alguns dos quais incluídos no apêndice de A Faustian Bargain. Publicou, repetidas vezes, reportagens que denunciavam a intervenção política secreta na Nicarágua, mas a imprensa de Washington (com poucas exceções) não lhe deu atenção. Sei disso porque fui dos poucos jornalistas americanos com grande interesse em suas reportagens.
“Na linguagem de Washington, as forças da oposição que concorriam contra os sandinistas nas eleições eram democráticas e independentes, diz Robinson. “Mas, em sua essência, não eram oposição, mas sim um grupo de direita formado pela elite nicaraguense, e que foi cuidadosamente cultivado através dos anos como um instrumento de esforço americano para destruir os sandinistas”.
Os grupos e indivíduos empregados pelo NED para promover a democracia na Nicarágua também não eram nem democráticos nem independentes. O Grupo Internacional Delphi foi o maior beneficiário dos fundos do NED para seu projeto na Nicarágua. Henri Quintero, que liderou o programa do Delphi na Nicarágua, é ligado aos serviços de inteligência dos EUA. Quintero, Carl Spites Channel (Spites significa cão de focinho comprido) e Richard Miller controlavam o Institute North-South Issues (Instituto para Assuntos Norte-Sul), uma fachada para as operações militares clandestinas de Oliver North. O presidente do Delphi, Paul Von Ward, serviu em vários postos do Departamento de Estado do governo americano antes de se unir ao Delphi. Adelina Chiqui Reyes Gavilan, uma exilada cubana de direita, atuava como coordenadora do programa do NED na Nicarágua. Antes disso, Reyes Gavilan trabalhara para o órgão financiado pelo NED, Centro dos Amigos da Democracia, que publicou anúncios na imprensa para pressionar pelo pedido de ajuda militar da administração Reagan para os contras. Reyes Gavilan foi recomendada para o NED pelo ativista da nova direita, Max Singer, que trabalhou em projetos de apoio aos contras.
O Instituto dos Sindicatos Livres, ligado à AFL-CIO e ao American Institute of Free Labor Development (AIFLD), recebeu 3 milhões de dólares do NED entre 1984 e 1990 pelo seu trabalho com sindicatos anti-sandinistas. A colaboração da AFL-CIO e do AIFLD com a CIA para organizar grupos de trabalho de direita na América Latina é bem documentada. Robinson mostra que Water Raymond Jr., da CIA, representou um papel importante para o desenvolvimento da legislação americana que deu origem ao NED, entre 1982 e 1983. Ao mesmo tempo, Raymond foi designado pelo diretor da CIA, William Casey para trabalhar com Oliver North no fomentar a propaganda para operações secretas, incluindo a guerra dos contras, na Nicarágua. O Congresso americano aprovou a legislação, criando o NED em 1983, e anualmente destina verbas para suas atividades.
“Sai a CIA, sem crédito, vem o NED. Uma nova estratégia do imperialismo para os anos 1990?”.
O NED foi apresentado como um substituto para as intervenções políticas clandestinas da CIA no exterior. O apoio da CIA a partidos e atividades pró-EUA em outros países havia perdido a credibilidade devido à sua história de golpes políticos e tentativas de assassinato de líderes estrangeiros. Assim, a interferência política dos EUA em assuntos internos de outros países aparece agora com cara nova e legitimada. Os programas do NED são financiados de forma transparente, a pretexto de promover a democracia. Mas os sandinistas aprenderam de forma pesada que o NED não era realmente um substituto para as operações da CIA. Os esforços públicos do NED para desenvolver a oposição interna na Nicarágua não só complementaram as contínuas atividades secretas da CIA contra os sandinistas como, descreve Robinson, foram além da estratégia de conflito de baixa intensidade ali usada.
Robinson escreveu que “(…) a estratégia dos EUA em relação à Nicarágua, da virtual declaração de guerra de Reagan em 1981 até as eleições de 1990, foi um processo de atrito que usou múltiplas e bem sincronizadas pressões militares, econômicas, políticas, diplomáticas, psicológicas e ideológicas contra a revolução. As sementes da derrota eleitoral dos sandinistas foram plantadas, regadas e fertilizadas durante um período de prolongada guerra contra-revolucionária. A colheita foi a intervenção eleitoral”.
A intervenção do NED nas eleições da Nicarágua foi parte de uma troca fáustica que a Frente Sandinista fez com os EUA. Os sandinistas, que haviam derrotado os contras no campo de batalha, levaram o confronto com o imperialismo na Nicarágua para o terreno político, e permitiram que o NED tomasse parte efetiva no processo eleitoral. Mas subestimaram seriamente a determinação de Washington em vencer a todo custo.
Em 1989, a administração da CIA, líderes democratas no Congresso americano, e o ex-presidente Jimmy Carter haviam assegurado à Frente Sandinista que a CIA encerraria suas ações secretas se Manágua permitisse as atividades do NED para apoiar a campanha da UNO. Mas a atuação americana logo mostrou que Washington não tinha intenção de pôr fim aos esforços secretos para desestabilizar a Nicarágua.
Robinson conta que “(…) a CIA executou extensas operações do começo ao fim da campanha eleitoral. Os EUA nunca tiveram a menor intenção de renunciar às atividades secretas da CIA, e substituí-las pela intervenção pública do NED, ‘em troca da’ aprovação do Congresso americano e da concordância da Nicarágua. A Nicarágua perdeu a autoridade para condenar os EUA por transgredir a soberania nicaraguense… Com as autoridades nicaraguenses em uma situação que legitimou a intervenção eleitoral, oficiais americanos puderam aplicar na Nicarágua pressões que em qualquer outro país seriam consideradas absurdas”.
Robinson nota também que a Frente Sandinista julgou mal seu apoio político na Nicarágua, depois de uma década de pesadas perdas e devastação econômica. Washington e seus representantes contras mandaram fortes sinais durante a campanha. A administração americana recusou-se a desmobilizar os contras até depois das eleições, e advertiu que a ajuda econômica não chegaria se os sandinistas ganhassem as eleições. Os contras espalharam o terror no campo e fizeram campanha eleitoral para a UNO. A mensagem era clara. O voto para os sandinistas significaria a continuação da guerra. O voto para Chamorro significaria paz e reconstrução econômica no pós-guerra.
“A nova tática: guerra e violência para criar uma tensão insuportável na população alvo”.
Robinson cita um trecho de um ensaio de um ex-funcionário da administração Reagan, Fred Ikle, um dos arquitetos da diplomacia americana na América Central, que registra a essência do jogo dos EUA na Nicarágua. “Guerra psicológica e violência (são empregadas) para criar uma tensão insuportável na população alvo”, escreveu Ikle. “No tempo certo, as ameaças terroristas, e o consentimento da vítima, uma troca fáustica. Para obter alívio da tensão da vida diária em uma atmosfera de violência constante e aparentemente casual, a vítima se rende e troca seu direito nato à liberdade por um pouco de paz – literalmente a qualquer preço”.
Enquanto isso, há vários sinais de que a administração de Clinton deve expandir o papel do NED na diplomacia americana. Um relatório chamado An American Foreign Policy for Democracy (Uma Política Externa Americana pela Democracia) publicado em 1991 pelo Progressive Policy Institute (PPI), do Democratic Leadership Council (DLC- Conselho de Liderança Democrática) recomendava o aumento do orçamento anual do NED, dos atuais 25 milhões de dólares para 100 milhões. Clinton foi fundador e é membro do DLC.
“Uma estratégia para promover a democracia em longo prazo (…) deve ser o foco central, o traço definitivo de nossa política diplomática internacional na fértil e volátil era em que estamos entrando”, enfatizou o relatório do PPI. O DLC se vangloria de sua terceira via política, descrita como “(…) à direita da familiar panacéia democrata, mas ainda à esquerda do republicanismo de Reagan”, segundo o Washington Post de 07-12-1992.
O relatório do PPI, escrito por Larry Diamond, professor no Instituto Hoover, da Universidade de Stanford, louva o papel do NED na Nicarágua. “O dinheiro serviu para construir um movimento democrático centrista, dar apoio a um sindicalismo independente, treinar grupos de oposição em organizações e técnicas de campanha, e convencer eleitores”, diz Diamond.
A agenda do PPI desempenhou um papel significativo na campanha de Clinton, como a seção Promoting Democracy (Promovendo a Democracia), do programa do Partido Democrata em 1992 refletiu em sua convocação para “promover instituições democráticas através da criação de Democracy Corps (Corpos Democratas) para mandar voluntários americanos para países que procuram técnicas legais, financeiras e políticas para construir instituições democráticas, e apoiar grupos como o National Endowment for Democracy, o Asia Foundation e outros”.
* Publicado originalmente em Monthly Review, Maio/93. Tradução de Luciana Cristina Ruy
** Jornalista do semanário Guardian (Nova Iorque), cobriu em Washington a política americana para a Nicarágua de 1983 a 1992.
Nota
(1) A Faustian Bargain: U. S. Intervention in the Nicaraguam Elections and American Foreign Policy in the Post-Cold War Era (Uma Barganha Fáustica; Intervenção Americana nas Eleições Nicaraguenses e Política Externa Americana na Era Pós-Guerra Fria), Boulder: Westview Press, 1992. O título é uma referência a Fausto, personagem de vários escritos antigos, popularizado por Goethe na obra que leva esse nome, e que teria vendido sua alma ao diabo.
EDIÇÃO 32, FEV/MAR/ABR, 1994, PÁGINAS 55, 56, 57