A definição do papel das Forças Armadas de um País depende de dois fatores fundamentais: da situação política geral, mundial e continental, existente em dado momento histórico, e do caráter do poder nacional vigente, de seu maior ou menor comprometimento com a democracia e com a soberania da nação.

A situação brasileira alterou-se, há pouco, precisamente sob esses dois aspectos. No plano interno, uma fase de nossa história, ditatorial e militar, foi ultrapassada, dando lugar a um regime constitucional democrático, onde vicejam, porém, elites oportunistas, à frente de governos fracos, especialmente débeis na afirmação da soberania nacional. Além disso, no plano externo, configurou-se novo quadro mundial, bem diferente do anterior, sobredeterminado militarmente, pelo poderio de uma única superpotência.

Essas duas situações novas, no Brasil e no mundo, pautaram a discussão sobre o atual papel das Forças Armadas. No meio militar, o assunto vem sendo examinado há algum tempo, havendo pouca informação sobre as teses ali discutidas. Nos meios políticos, o tratamento do tema é incipiente e superficial, o que reflete o predomínio de forças desinteressadas em uma análise mais aprofundada do assunto. Enquanto isto, o esquema do poder mundial vai impondo suas novas políticas e forçando seus novos conceitos.

As bruscas mudanças na situação mundial atropelaram as discussões que vinham sendo feitas no Brasil sobre as Forças Armadas na nova fase democrática do País. Contudo, referências ao que se fez são importantes, inclusive para ressaltar o significado dos problemas posteriores.

Na América Latina, findo o mais recente ciclo de ditaduras militares, ficou posto o problema da inserção das Forças Armadas nos novos regimes embrionariamente democráticos que surgiam. No Brasil, essa questão foi examinada mais detidamente por ocasião dos trabalhos da Constituinte de 1987-88. Os temas de fundo foram: a destinação constitucional das Forças Armadas, correlacionando a defesa externa com a chamada defesa interna; a garantia da lei e da ordem; a limitação ou não da autoridade do presidente da República como Comandante Supremo das Forças Armadas; a criação de um Ministério da Defesa; o serviço militar obrigatório ou voluntário; e a promoção da segurança nacional.

“República modificou dispositivo constitucional sobre papel das forças armadas”.

Na experiência brasileira, toda Constituição diminui ou liquida traços característicos do regime que a própria Constituição está encerrando. A primeira Constituição republicana, a de 1891, foi, até certo ponto, antimonarquista, como a de 1946 foi anti-estadonovista. A Carta de 1988, dessa forma, afastou-se de conceitos do regime militar anterior, especialmente de alguns carregados de forte conotação repressiva, como defesa interna e segurança nacional. Esses dois, a propósito, não foram usados em nenhum momento, no novo texto constitucional.

A destinação das Forças Armadas foi definida em termos de defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais, e da lei e da ordem, sendo que, a garantia da lei e da ordem ficou condicionada à iniciativa de um dos poderes constitucionais. A autoridade do presidente da República, como Comandante Supremo das Forças Armadas, também recebeu um tratamento novo.

Nos textos constitucionais brasileiros, a obediência das Forças Armadas ao Comando Supremo do Chefe do Estado, passou a ser tratada de forma diferente, a partir da República. A Constituição de 1824, durante o Império, estabelecia que “(…) a força militar é essencialmente obediente” (art. 147). Já a de 1891, afirmava: “(…) a força é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei” (art. 14). Essa forma, daí por diante, foi repetida em todas as Constituições brasileiras, à exceção da de 1934, que não tratou do assunto.

A obediência dentro dos limites da lei, que parece uma obviedade, uma vez que ninguém deveria ser obrigado a obedecer fora da lei, atribui às Forças Armadas a prerrogativa judicial de avaliar se o Chefe do Estado está ou não dentro da lei, para ser ou não obedecido. Como as Forças Armadas tinham a destinação de garantir a lei e a ordem, ficavam postos os dois elementos constitucionais justificadores ou indutores de golpes: a prevista desobediência ao Chefe de Estado que supostamente estivesse fora dos limites da lei e a obrigação de defender a dita lei. Já vimos que, no texto final da Constituição, a defesa da lei e da ordem ficou condicionada à iniciativa de um dos poderes constitucionais, diferentemente de todas as Constituições anteriores. E prevaleceu também, no Texto de 1988, a posição de estarem as Forças Armadas “(…) sob a autoridade suprema do Presidente da República”, formulação diversa da de todas as Constituições republicanas.

A criação do Ministério da Defesa não foi decidida pela Constituinte, em função de ponderações dos escalões militares que, entretanto, admitiram sua inevitabilidade a um prazo maior. E o serviço militar permaneceu obrigatório, como estava nas Constituições brasileiras anteriores, e como consta das Constituições da maioria dos países do mundo, especialmente dos que têm poucos recursos para manter forças profissionais permanentes, com regalias capazes de atrair voluntariado de bom nível.
Quando já estavam constitucionalizadas as funções básicas dos militares na vida do País, e quando já se buscavam os novos termos da sua inserção prática no cotidiano democrático, o bloco soviético entra em decomposição, e ocorre o fim da bipolaridade na ordem mundial.

Setenta anos do século XX foram marcados pelas consequências de um acontecimento memorável: a revolução russa de 1917. Mas, durante este tempo, mudaram-se as características da situação geral. E mudou a política militar brasileira.

Até a Segunda Guerra Mundial, o governo soviético orientou-se no sentido de estruturar, na recém-criada União Soviética, a base de uma economia forte, socialista, capaz de promover a transformação, em tempo curto, sem apoio, e sob cerco mundial, de um país praticamente semimedieval em um país desenvolvido e militarmente respeitável. Embora o surgimento e crescimento de um grande país socialista estabelecia, no mundo, a contradição entre o socialismo e o capitalismo, àquela época as polarizações superiores de davam entre as grandes potências capitalistas, Alemanha, Inglaterra, Japão e Estados Unidos. Poder-se-ia dizer que a URSS estava apenas se desenvolvendo. Os primeiros movimentos da Segunda Guerra já se faziam e ela, a URSS, ainda se empenhava em um esforço suplementar extraordinário, vitorioso ao final, para se colocar militarmente à altura do embate que chegava.

Após a Segunda Guerra, a situação mudou. Alemanha e Japão caíram derrotados. A Inglaterra quedou enfraquecida e em declínio. O lugar proeminente da cena capitalista mundial passou a ser ocupado pela nova grande potência, os Estados Unidos, vitoriosos na guerra, onde pouco combateram. E a União Soviética, que fez o maior esforço de guerra, apareceu também, vitoriosa, respeitada, em ascensão. Estavam colocados os pressupostos de uma ordem mundial bipolar.

A bipolaridade durou mais de quatro décadas, mas também mudou de características. Até o início dos anos 1960, durante quase quinze anos, foi marcada pela confrontação entre dois campos ideologicamente distintos, um socialista (URSS, Leste europeu, China) e outro capitalista, liderado pelos Estados Unidos. A partir dos anos 1960, e até o colapso da URSS, durante cerca de trinta anos, o caráter ideológico da disputa foi para o segundo plano, posto que a própria URSS encaminhava-se para o capitalismo. Ressaltava-se, então, a contradição entre duas superpotências, hegemonistas com suas áreas de influência definidas e suas grandes disputas geopolíticas. Militarmente, as duas organizaram poderosos blocos de força, a OTAN e o Pacto de Varsóvia, praticaram uma política chamada de guerra fria, que apareceu sob a forma de corrida armamentista, e reduziram todas as guerras ou incidentes localizados a episódios da confrontação geral.

“Política militar brasileira foi condicionada a interesses norte-americanos”.

No tempo em que os Estados Unidos e a União Soviética dominavam o mundo e se confrontavam, as Forças Armadas de todos os recantos, especialmente dos países periféricos, foram levadas a definir seus papéis em função dos interesses das duas superpotências.

A política militar brasileira sempre foi condicionada pelos interesses norte-americanos. Os Estados Unidos, durante todo o período republicano, e até há pouco, por cem anos seguidos, conseguiram passar a idéia de que o que era bom para eles também o era para nós. As concepções, as doutrinas e a prática das Forças Armadas brasileiras, com contradições, que felizmente sempre existiram, decorreram no que predominou dessa visão de supostos interesses estratégicos comuns com os americanos.

No período anterior à Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos viam, como o maior perigo da época, a expansão belicosa da Alemanha nazista. Conter o fascismo, ou melhor, conter a Alemanha, passou a ser seu objetivo básico que, felizmente, coincidia com os objetivos democráticos dos povos.
O Brasil, e de resto toda a América Latina, acabou posicionando-se do lado americano na guerra. Uma Junta Interamericana de Defesa foi criada, em 1942, para planejar a defesa comum do hemisfério. A participação de comunistas na frente antifascista não foi problema, e o Partido Comunista do Brasil pôde estar presente ativamente na constituição da FEB.

Pouco após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos passaram a ter como inimigo principal o comunismo, ou melhor, a URSS, mesmo quando esta já não era essencialmente socialista, comunista. A América Latina, e em particular os militares desse sub-continente, foram trabalhados no sentido de assumirem que também seu inimigo principal passara a ser o comunismo, que era a forma taticamente mais mobilizante de confrontar a URSS, estigmatizando-a. E aí a cabeça dos militares latino-americanos começou a ser refeita.

Doutrina, conceitos e planos foram desenvolvidos com essa nova postura, importada de fora para dentro, em função dos interesses americanos e não sul-americanos. Toda uma parafernália doutrinária e conceitual foi então criada pelos americanos, e se conseguiu fazer crer, aos militares do sul da América, que isso representava os interesses de seus países. É assim a gênese dos conceitos de guerra subversiva, inimigo interno, guerra psicológica adversa, fronteiras ideológicas, doutrina de segurança nacional etc, que tanto mal causaram aos latino-americanos, suas vítimas diretas, especialmente os comunistas e os patriotas que não rezavam pela cartilha americana, e tanto mal causaram também às Forças Armadas desse lado do mundo, em deformação, em desprestígio por envolvimento em guerra suja, e em perda do sentido estratégico nacional.

“Luta contra “inimigo interno” explica sucessivas intervenções militares na América Latina”.
Recente estudo do Vice-Almirante Armando Vidigal retrata de forma precisa esse fenômeno. Diz ele: “Quando o principal interesse estratégico dos EEUU era derrotar o fascismo, a América Latina foi mobilizada para impedir que esse sistema político penetrasse no continente americano”. “Ao fim da Segunda Guerra Mundial (…) o comunismo internacional (…) passou a constituir a maior ameaça à segurança (…) dos Estados Unidos e, em consequência, toda a América Latina foi levada a assumir uma postura francamente anticomunista”. “A principal missão atribuída às Forças Armadas latino-americanas passou a ser a Guerra Subversiva, contra o inimigo interno. Apesar do apequenamento que essa missão representava para as Forças Armadas, elas a aceitaram e lançaram-se a ela com o empenho e a eficiência costumeiros”. E, para completar, eis a reflexão feita por esse oficial-general da Marinha brasileira sobre as circunstâncias que levaram a tanto golpe militar na América Latina: “Fica difícil não relacionar essa postura (a luta contra o inimigo interno) com as intervenções militares que tiveram lugar em praticamente todos os países da América Latina (…)” (1).

O desmoronamento do bloco soviético pôs por terra o mundo bipolar das últimas quatro décadas e meia. Uma superpotência passou a ter a hegemonia militar absoluta no mundo, os Estados Unidos, demonstrando-se arrogante e belicosa, notadamente quando percebe seus propósitos hegemônicos ameaçados, em uma situação onde sua superioridade militar aplastante não é acompanhada por idêntico predomínio econômico e tecnológico. Quadro novo, fatos novos, estratégias refeitas. E é neste contexto, que a estratégia americana, de país hegemonista, quer, de novo, como fez por cem anos contínuos, definir a nova estratégia e o novo papel das Forças Armadas latino-americanas.

Não é que os problemas recentemente aflorados inexistiam na fase anterior. Mas é que agora, sem as circunstâncias da bipolaridade, eles passam a um patamar superior, apresentam-se de forma diferente, aguda, como traços centrais do momento mundial.

Um problema de fundo inequivocamente condiciona as análises estratégicas do mundo de hoje: a perspectiva de esgotamento, nos próximos trinta e quarenta anos, dos mananciais petrolíferos que sustentaram o desenvolvimento do século XX. O século XXI demandará fontes energéticas alternativas.
Os países ricos do Norte, que em geral dispõem de reservas minerais e vegetais pequenas ou em extinção, enfrentam esse desafio com dificuldades, diferentemente dos países tropicais, onde são grandes os estoques de minérios, da biomassa e de incidência da fonte básica da energia renovável, o sol.

Os países altamente industrializados, e com estoques energéticos em declínio, passam a fazer planos para os países tropicais, em geral periféricos da economia mundial. Esses planos têm, assim, um incontroverso interesse estratégico. Em perspectiva, esse interesse pode se desdobrar na meta da ocupação territorial, de partes de território desses países. Em prazo curto, esses planos já se expressam no que poderíamos chamar de ocupação econômica dos países periféricos, com o poder dominante internacional localizando-se nos pontos nevrálgicos das suas economias. Tal ocupação mina a resistência nacional dos subdesenvolvidos e os torna vulneráveis, em prazo longo, às tentativas de ocupação territorial. Esta, requer força militar, confronto aberto. Aquela, a ocupação econômica, pode ser feita por via oblíqua, respeitando as leis do país que vai sendo ocupado, aliás, fazendo as leis para ele, usando seus legisladores, seus economistas, suas Bolsas de Valores (…) A primeira, a ocupação econômica, pode ser a ante-sala da segunda, a ocupação territorial.

A espoliação do Sul, pobre e atrasado, pelo Norte, rico e usuário, é feita através de vários expedientes, dos quais os mais amplamente utilizados hoje são os mecanismos saqueadores das dívidas externas, as injustas relações de troca e o controle dos centros nervosos da economia dos países periféricos.
Politicamente, para administrar os conflitos do mundo, particularmente os existentes entre o Norte e o Sul, na nova situação mundial, os ricos procuram institucionalizar e dar sentido de Estado Maior ao Grupo dos Sete, que os Estados Unidos dirigem para certas ações mundiais, reservando o Conselho de Segurança da ONU, que também dirigem, para outras ações. Assim, o G-7 se reúne, sob os auspícios americanos, para monitorar a passagem da economia russa para a plenitude capitalista, enquanto o Conselho de Segurança é acionado para legitimar, em nome das Nações Unidas, invasões americanas, como a que redundou na Guerra do Golfo.

“Dissolução do bloco soviético aumentou exigência abusiva de apartheid tecnológico”.
É nesse contexto, sobredeterminado pelos interesses da superpotência americana, que são tratados temas importantes da atualidade, dos quais costumam-se relacionar o problema tecnológico, o do narcotráfico e o da ecologia. Todos três são equacionados preponderantemente em uma concepção predatória dos interesses dos países subdesenvolvidos.

Os esforços de desenvolvimento tecnológico, feitos pelos países do Terceiro Mundo, encontram fortes barreiras por parte dos países desenvolvidos. A justificativa, para o que já se chama de apartheid tecnológico, é o risco que o mundo correria se os países hoje em desenvolvimento, do Terceiro Mundo, tivessem acesso a tecnologias sofisticadas, chamadas de duplo-uso, civil e militar, que lhes permitiriam eventualmente fabricar armas de destruição massiva. Os centros do poder mundial não consideram as ameaças à paz internacional como advindas da existência de gigantescos arsenais, de armas de altíssimo poder destrutivo, em mãos da superpotência americana de sua ex-co-irmã soviética e de seus aliados europeus. Viriam, surpreendentemente, da hipótese de países do Terceiro Mundo poderem fabricar algumas dessas armas. Em decorrência, é imposto aos países subdesenvolvidos abusivo apartheid tecnológico, com graves consequências para o desenvolvimento desses países.

A exigência do apartheid tecnológico aumentou com o desmoronamento do bloco soviético. Mas já vinha de antes. Artigo publicado no L’Express, em setembro de 1990, assinado por colunista de vínculos conhecidos com esquemas ocidentais de defesa estratégica, afirma que dever-se-á “(…) impedir não apenas as exportações relacionadas com a área militar, mas toda e qualquer exportação de alta tecnologia, de qualquer natureza” (2).

“Estados Unidos já obtiveram vitória com extinção das Forças Armadas do Panamá”.
Em dezembro do mesmo ano, os Estados Unidos criaram a EPCI, Enhanced Proliferation Control Iniciativa (Iniciativa Concentrada para Controle da Proliferação), que visa a organizar e coordenar as restrições a exportações de cerca de 50 produtos, alegadamente contra países-alvos, exemplificados como a Líbia e o Iraque, mas que meios especializados admitem ser em número de 50 (3).

A análise dominante do problema do narcotráfico desconsidera o fato básico de que só existe tráfico de drogas porque existe mercado de drogas, e que só existe mercado de drogas forte porque os Estados Unidos e outros países ricos os mantêm, sendo dele os principais consumidores. Agricultores de países pobres, como os da América Latina, motivaram-se a produzir drogas e circular com elas, a despeito dos perigos, primeiro porque a solicitação do mercado, principalmente americano, é grande, segundo porque, no quadro da miséria em que vive o campo latino-americano, com produtos aviltados pelo mercado imperialista, não são fáceis as alternativas para um produto tão altamente valorizado como os narcóticos. A solução para o problema da produção das drogas e do seu tráfico passa pela solução do problema econômico-social subjacente. Os americanos tratam esse problema, contudo, como caso de polícia e, mais ainda, como caso de exército e de intervenções internacionais, como mostram manobras militares que realizam na América Latina e a pirataria feita no Panamá, com o sequestro do presidente daquele país.

O tema ecológico, da forma como é tratado pelo grupo dos ricos, volta-se contra os pobres do Terceiro Mundo. Passando por alto o fato de serem os países ricos os maiores responsáveis pela agressão à natureza, eles próprios procuram assumir o monitoramento do desenvolvimento dos países pobres, para que estes não destruam as reservas naturais que ainda têm e que, segundo os ricos, devem ser da humanidade, inclusive porque eles já destruíram as que originalmente tinham. O problema é de grande potencial conflitivo. No caso do Brasil, põe a floresta amazônica, com toda a vastidão da sua biodiversidade, no centro dos interesses internacionais. Conceitos novos, de claro sentido intervencionistas, vão sendo elaborados e testados. O presidente Miterand, da França, parece ter tido a primazia de expressar a noção de soberania limitada, que prevalecia para os países em desenvolvimento, enquanto os países desenvolvidos se reservam o direito de ingerência, discutido na conferência de Viena sobre os direitos humanos.

Relacionado com o tema ecológico, aparece todo um aspecto amplo de questões altamente polêmicas, no qual os povos dos países subdesenvolvidos também são vítimas de políticas agressivas dos países ricos. A explosão populacional, que só atinge os países do Terceiro Mundo, por conta de problemas históricos onde é grande o débito dos países ricos, e vista como ameaçadora dos recursos limitados do planeta, em função de que surgem as políticas de controle massivo da natalidade, que se aplicam coercitivamente sobre as populações mais carentes. As migrações de parcelas significativas de seres humanos, desempregados, pobres e miseráveis, em demanda de condições melhores de vida, passaram também, na atualidade, a se constituir em grave problema, reflexo da contradição Norte e Sul, tratado com virulência pelos países ricos.

Os Estados Unidos – a partir da observação que fazem, de que o papel histórico das Forças Armadas latino-americanas, sobretudo no último meio século, foi o de ser reserva das suas Forças Armadas, no confronto com o bloco soviético – consideram agora ser necessário definir qual o novo papel das Forças Armadas no sul da América, já que não teriam mais inimigo estratégico contra quem se preparar. O problema é grave, muito mais do que se pensa. Em maio/junho de 1992, a especializada revista americana EIR (Executivo Inteligente Review), de Washington, divulgou importante noticiário a respeito de estudos e planos dos Estados Unidos relativos às Forças Armadas latino-americanas. A revista afirma que os estudos, de responsabilidade do Departamento de Estado, querem “(…) que toda a América Latina se transforme numa zona de neutralidade”, onde “(…) urge definir para os militares latino-americanos uma nova missão, de menor magnitude”. Constata que essas metas estão em andamento, já tendo conseguido vitórias importantes como “(…) no Panamá, onde a instituição castrense foi praticamente extinta e onde os militares americanos exercem controle sobre tudo”. A revista diz que isto está dentro da visão de que, após o desaparecimento da União Soviética, o papel dos Estados Unidos deverá ser o de guardião supremo dos valores democráticos”, em escala planetária (4).

A EIR informa, ademais, que os estudos e planos referidos tomam por base um trabalho mais completo, “(…) concebido e financiado pelo governo norte-americano”, publicado em 1990, intitulado Os Militares e a Democracia, Futuro das relações Civil-Militares na América Latina (5). O livro, que se desdobra em 17 capítulos, contém exposição sistemática sobre assuntos variados, e a EIR resume alguns de seus capítulos, de onde retiramos as seguintes passagens: 1) “A preparação para uma “Nova Era” (…) exige a reestruturação total das instituições militares latino-americanas, sob supervisão dos Estados Unidos (…)”; 2) Deve-se definir para “os militares, da América Latina, uma nova missão, mais estreita e de converter-se numa gendarmaria nacional com treinamento especial”; 3) “O principal obstáculo à consecução desse objetivo é a perspectiva imperante ao menos em certas facções dos militares latino-americanos, especialmente na Argentina e no Brasil, que tem a missão nacional de defender os Valores do Ocidente cristão (…) a Honra, a Dignidade, a Lealdade (…) e salvaguardar e garantir o processo de desenvolvimento” (6). É evidente o sentido irônico das referências à missão nacional e valores dos militares latino-americano.

“Simpósio Inter-americano estudou como hipótese a invasão da Amazônia brasileira”.
No mesmo período, meados de 1992, divulga-se a notícia de que teria havido no Colégio Interamericano de Defesa um simpósio de Forças Combinadas Interamericanas onde esteve em pauta a transformação das Forças Armadas latino-americanas em forças especiais de combate ao narcotráfico e onde teria sido usada, como hipótese de uma situação militar a ser estudada, a invasão da Amazônia brasileira. Em tal simpósio teria participado oficiais brasileiros.

Com todos esse dados, o autor, no uso de atribuições parlamentares, encaminhou requerimento solicitando informações a todos e a cada um dos ministros militares do Brasil e ao Chefe do Estado Maior das Forças Armadas. As respostas, obrigatórias, nos termos da legislação vigente, vieram.
O ministro da Marinha informou que “(…) não tem conhecimento da existência de planos oficiais do governo norte-americano, com o objetivo de debilitar as Forças Armadas da América Latina”. Mas acrescentou: “(…) a transformação das Forças Armadas sul-americanas em guardas-costas e gendarmarias (…) parece estar sendo desejada pelos Estados Unidos (…)”. Respondendo sobre o livro Os Militares e a Democracia: o futuro das relações Civis-Militares na América Latina, o documento da marinha assevera: “As teses nele contidas são inaceitáveis (…)” (7).

O Ministério do Exército, mais lacônico, destacou: “(…) o relacionamento bilateral entre os Exércitos do Brasil e dos EUA desenvolve-se em elevado nível e de respeito recíproco”, nunca tendo sido “(…) sugerida, mesmo de forma velada, a (…) reestruturação da Força Terrestre” (8).

O Ministério da Aeronáutica, depois de comentar as idéias contidas no livro em apreço conclui: “Destas idéias se depreende: no campo político: limitação das soberanias nacionais; no campo militar: limitação das Forças Armadas nacionais. Ambas as idéias são inconstitucionais” (9).

A confirmação do Simpósio, onde teria havido o exemplo da ocupação da Amazônia, foi pedida especificamente ao Estado Maior das Forças Armadas. Eis trechos da resposta: “1. O referido Simpósio, como atividade escolar prevista, contou com a participação de todos os alunos do Colégio Interamericano de Defesa, inclusive os brasileiros”. “2. A hipótese de intervenção militar de Força Interamericana, no Brasil, dentre outras, foi de fato levantada, como sugestão para trabalhos escolares de planejamento”. “3. A razão apresentada por alguns alunos, foi a pretensa devastação da floresta amazônica e a intervenção se faria para impedi-la”. “A posição assumida pelos representantes brasileiros foi de contestação imediata à proposta, alertando que o Brasil é um país muito diferente do Panamá ou Granada, para deixar-se invadir impunemente, e que a guerra na selva não poderia ser confundida com a guerra no Golfo, haja vista o acontecido no Vietnã” (10).

No limiar do século XXI as Forças Armadas brasileiras estão em uma espécie de encruzilhada. Enfrentam problemas de definição, de rumo, já englobados por alguns no título geral de “crise de identidade”. O almirante Vidigal, em seminário realizado na Câmara dos Deputados sobre aspectos das Forças Armadas, foi categórico: “é chegado o momento de as Forças Armadas da América Latina orientaram-se mais pelos interesses nacionais de seus países do que pelos interesses estratégicos da potência hegemônica” (11).

Os Estados Unidos inequivocamente estão decididos a reduzir as Forças Armadas do sul da América, a meras forças especiais, com propósitos menores, não-nacionais, como o do combate ao narcotráfico. Tencionam, também, mantê-las como forças inexpressivas, mas em ação, por entendê-las politicamente importantes para acobertar, com o apanágio internacional, as intervenções que fizeram nos países que saírem da linha. Com esse propósito confesso, os Estados Unidos já registram vitórias significativas, não só no Panamá, como vimos, mas no México, na Colômbia etc. O registro que temos, há pouco referido, é o de resistência nas Forças Armadas brasileiras e argentinas, à aceitação desse papel pusilânime.

Posto que as Forças Armadas servem ao Estado, defendem seus interesses, pois são dele parte integrante, o papel pelo qual as Forças Armadas brasileiras se definirão fica condicionado à própria posição que prevalecerá no Estado brasileiro, nas suas relações internacionais. Duas alternativas gerais aí estão postas. A de o Estado aprofundar-se no caminho que já trilha e chegar a uma posição completamente submissa aos centros internacionais de poder, posição de entrega das riquezas do país e de seu patrimônio, de dependência estruturada e subserviência, ou a de encaminhar-se no sentido de um Estado firme na defesa da soberania da nação. Parte integrante do Estado, a posição das Forças Armadas, com sua tradição nacional, interferirá no posicionamento do Estado, adequando-se, em última instância, à postura que este tomar.

A luta do povo, que se estende no tempo, pelas suas aspirações nacionais e democráticas é o componente que finalmente levará a todo esse processo a sua marca indelével.

* Deputado federal – PCdoB BA.

Bibliografia
(1) VIDIGAL, Vice-Almirante Armando. O papel das forças armadas no Novo Contexto Mundial, maio/junho de 1992, documento apresentado em Seminário da Câmara dos Deputados, em 18-08-1992, p. 18.
(2) Referido em artigo do Vice-Almirante Vidigal na Revista do Clube Naval, n. 283, p. 62
(3) Revista do Clube Naval, artigo citado, p. 61.
(4) Todo o noticiário sobre a revista EIR está na edição de 14 de junho de 1992 do Correio Brasiliense, seção internacional, p. 20.
(5) O original em inglês de The Military and Democracy: The future of Civil-Military Relations in Latin America, foi publicado nos EUA, em 1990, pela editora Lexington Books.
(6) O resumo do livro citado acima, feito pela revista EIR, está noticiado no Correio Brasiliense de 14 de junho de 1992, sob a manchete “EUA tentam minar poder dos militares da AL”.
(7) A resposta do Ministério da Marinha, datada de 6 de julho de 1992, é assinada pelo Capitão-de-Mar-e-Guerra, Luiz Fernando C. P. de Almeida.
(8) A resposta do Ministério do Exército está no ofício 3862 A/3.1, datado de 20 de julho de 1992, assinado pelo Gen. Div. Tamoyo Pereira das Neves.
(9) A resposta do Ministério da Aeronáutica está na Carta 204/AP, datada de 24 de setembro de 1992, assinada pelo Brigadeiro R. R. Emanuel Serrano.
(10) A resposta do Estado Maior das Forças Armadas, EMFA, está no aviso 03146, datado de 2 de setembro de 1992, e é assinada pelo general-de-Exército Antonio Veneu, Chefe do EMFA.
(11) VIDIGAL, Vice-Almirante Armando, documento citado, p. 19.

EDIÇÃO 32, FEV/MAR/ABR, 1994, PÁGINAS 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76