“De momento estamos sendo poupados de todo desassossego contemporâneo: mas estes ainda são tempos ansiosos, em que tudo o que antes era considerado sólido e seguro parece agora precário e vacilante”.
Hegel

No Brasil, assim como no restante do mundo vitimado pela avalanche da nova ordem capitalista, o ensaio The End of History, escrito por Francis Fukuyama, teve um forte impacto na sociedade. Publicado originalmente em 1989 e, três anos depois na sua versão em livro, a tese do assessor do Departamento do Estado norte-americano caiu como luva para os apologistas do capitalismo.
Afinal, o autor garantiu, com todas as letras, que a democracia liberal e a economia de mercado representariam o fim da história. Nas suas palavras, “(…) a imperturbável vitória do liberalismo econômico e político significa não apenas o fim da Guerra Fria, ou a consumação de um determinado período da história, mas o fim da história como tal. Isto é, o ponto inicial na evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como forma final do governo humano”. Muitos suspiraram aliviados com este raciocínio otimista!

O intelectual inglês Perry Anderson, entretanto, resolveu contestar esta tese – que alguns desejariam que se tornasse mais um senso comum. No livro O fim da história – de Hegel a Fukuyama, ele procura fugir das generalidades, tão comuns nos confusos tempos atuais, e vai fundo – analisando a base filosófica das várias concepções sobre o fim da história. Nos primeiros capítulos, ele estuda autores como Hegel, Cournot e Kojeve que, de diferentes formas, mas sempre sob um enfoque pessimista, especularam também sobre o fim da história.

Após esta rica retrospectiva, Perry Anderson parte para o confronto teórico com Fukuyama. Primeiro deixa claro que o badalado autor americano não afirmou que o fim da história seja a cessação de todos os conflitos e desníveis mundiais – o que seria facilmente negado pela vida. Sua tese é mais complexa e ousada. Diz que se esgotaram na humanidade quaisquer alternativas viáveis para superar o capitalismo e que “(…) o progresso para a liberdade teria agora um único caminho”.
“A grande mudança que inspirou essa versão do fim da história é, evidentemente, o colapso do comunismo”, aponta Perry Anderson, para quem “(…) a visão de Fukuyama é um produto desse momento”. Daí decorreu o seu impacto. “O clamor provocado por sua tese original era um indício, não de inépcia, mas de sua força perturbadora” – acrescenta o analista inglês. Neste rumo, mais do que contestar o otimismo do funcionário do governo dos EUA, Perry Anderson avalia ser indispensável demonstrar as contradições do capitalismo e a vitalidade das teses socialistas.

Na sua opinião, as reações genéricas à tese central de Fukuyama não são suficientes para golpeá-la. Este teria armado toda uma rede de possibilidades futuras que afetariam o capitalismo, mas que não teriam condições de superá-lo historicamente. Eventos empíricos, conflitos militares e mesmo a persistência da desigualdade e da miséria no planeta se desenrolariam “(…) num conjunto de limites estruturais” forjados pelo próprio sistema. “A confiança de Fukuyama na abundância consumidora do capitalismo moderno – videocassetes para todos, como ele disse – expressa a perspectiva do oficialismo nos anos 1980”, comenta.

Na contracorrente da ofensiva ideológica burguesa, Perry Anderson questiona essa visão triunfalista – trazendo à tona instigantes críticas ao atual modo de produção. O próprio consumismo é colocado em xeque. “Se todas as pessoas da Terra possuíssem o mesmo número de geladeiras e automóveis que as da América do Norte e da Europa Ocidental, o planeta ficaria inabitável. Hoje, a ecologia global de capital, o privilégio de uns poucos, requer a miséria de muitos, para ser sustentável. Menos de um quarto da população do mundo detém atualmente 85% da renda mundial, e a diferença entre as participações das zonas avançadas e atrasadas ampliou-se ainda mais nos últimos cinqüenta anos”.

No último capítulo, o autor inglês reafirma suas convicções socialistas. Mas interroga: qual socialismo? “Para reprovar a tese de Fukuyama não é suficiente mostrar que ela atenua ou ignora os defeitos na ordem mundial dominada pelo capitalismo liberal. Deve ser possível indicar uma alternativa digna de crédito, sem recorrer a menos acenos ao imprevisível ou a mudanças que não são mais que terminológicas. O teste para a validade do socialismo como alternativa para o capitalismo consiste em apurar se retém ou não um potencial para soluções dos problemas com que o segundo se defronta em sua hora de histórico triunfo”.

No esforço de autocorreção das primeiras experiências socialistas, Andersosn apresenta suas opiniões e propostas – que merecem um estudo mais aprofundado. No terreno econômico, reafirma a necessidade do planejamento, demonstrando que as forças de mercado não contêm soluções para os graves problemas da humanidade. Mas ele também polemiza: “Um socialismo para além da experiência da tirania stalinista e de suvisme social-democrático não representaria uma abolição impossível do mercado nem uma adaptação condescendente do mesmo”.

Sua proposta é a da combinação de diferentes formas de propriedade coletiva dos principais meios de produção com a existência das trocas de mercado – “(…) sob orientação de um vasto planejamento público dos equilíbrios macroeconômicos”. Ao abordar a forma de controle desta economia, Anderson também trata de um segundo aspecto decisivo da construção do socialismo: a questão do Estado. Neste ponto, defende “(…) uma democracia muito mais articulada em suas formas do que tudo o que a versão capitalista tem para oferecer”.
Muitas das opiniões formuladas pelo escritor inglês são, sem dúvida, controvertidas e polêmicas. Ele mesmo afirma: “(…) nenhum movimento político realiza exatamente aquilo que se propõe a levar a cabo, e nenhuma teoria social prevê jamais o que irá justamente ocorrer”. Mas, no essencial, seu livro tem o mérito de apresentar argumentos fortes que fazem desmanchar no ar o otimismo inconsistente dos defensores do capitalismo – e inclusive daqueles que perderam a perspectiva socialista.

EDIÇÃO 32, FEV/MAR/ABR, 1994, PÁGINAS 77