Quando Clóvis Moura começou a escrever seu Rebeliões da Senzala, em 1949, o historiador Caio Prado Jr., então considerado o principal historiador marxista do Brasil, aconselhou-o a desistir da empreitada.

Ele dizia que a passividade teria sido o elemento característico do comportamento do escravo no Brasil em consequência, não teria havido aqui um processo de luta de classes digno de nota entre senhores e escravos.

Caio Prado endossava, assim, um dos mitos mais caros da historiografia tradicional brasileira, o da passividade do escravo e da benignidade da escravidão em nosso País. E ilustrava, assim, a influência e persistência dessas idéias tradicionais, presentes mesmo no pensamento historiográfico avançado de um teórico do seu porte.

“A obra de Clóvis Moura tem sido um combate permanente contra os mitos de nossa história”.
Neste quase meio século que se passou desde então, a obra de Clóvis Moura tem sido um corpo-a-corpo permanente com a mitologia forjada pelas correntes dominantes para adocicar o relato do drama histórico vivido por nosso povo. Num País que, como o nosso, teve quatro quintos de sua história vividos sob o sistema escravista, a compreensão em profundidade de sua trajetória implica, necessariamente, esmiuçar os segredos do escravismo, resgatar as lutas escravas contra esse sistema opressivo, rastrear nesse passado conflituoso as raízes dos dramas que o povo e a nação brasileira vivem em nosso tempo. Afinal, as marcas desse passado escravista e colonial estão ainda vivas nas instituições políticas brasileiras; na forma de organização da produção material; na maneira como nós, brasileiros, nos relacionamos entre nós e com o mundo.

Nesse sentido, o esforço de Clóvis Moura, traduzido em cerca de duas dezenas de livros dedicados ao tema (além de seus livros de poesia, eclipsados pela importância de sua obra historiográfica), tem sido uma contribuição inestimável para a fundação de uma historiografia do povo brasileiro, da história da luta de classes em nosso País, e seu desdobramento nos planos social, político, econômico, ideológico, cultural etc.

O texto aqui publicado é um extrato de seu último livro, Dialética Radical do Brasil Negro, recém-lançado pela Editora Anita Garibaldi.

Nele, Clóvis Moura aprofunda sua análise de plenitude do escravismo no Brasil, seu declínio, e o papel determinante que o escravismo teve na formação, mais tarde, do capitalismo dependente em nosso País.

Além disso, aborda também questões relativas a identidade étnica, miscigenação, resistência cultural do negro, e às especificidades do movimento negro de São Paulo.

*José Carlos Ruy

“Quando falamos de um sistema classificatório racial no Brasil, subordinado a uma escala de valores racistas, evidentemente não nos referimos a um código elaborado e institucionalizado legalmente. Assim como nunca elaboramos um Código Negro que regulamentasse as relações entre os senhores e os escravos, também não tivemos um tipo de apartheid da África do Sul ou uma Jim Crow dos Estados Unidos. Da mesma forma como a Constituição do Império omitiu a existência da escravidão e o jurista Teixeira de Freitas tenha se recusado a colocá-la quando redigiu o projeto do Código Civil do Império, assim também esse sistema classificatório racista não foi codificado e institucionalizado, embora tenha atuado dinamicamente durante quase quinhentos anos. Pelo contrário. Enquanto as classes dominantes, suas estruturas de poder e elites deliberantes aplicavam essa estratégia discriminatória, através de uma série de táticas funcionando em diversos níveis e graus da estrutura, elaboraram, em contrapartida, como mecanismo de defesa ideológica a filosofia do branqueamento espontâneo via miscigenação e como complemento apresentavam-nos como o laboratório piloto da confraternização racial, cujo exemplo deveria ser seguido pelos demais países poli-étnicos. Essa dupla face do comportamento das estruturas de poder racistas do Brasil será o que iremos abordar na conclusão deste capítulo.

Podemos dizer, em primeiro lugar, que no Brasil esse problema (relacionamento interétnico) foi conduzido em relação ao índio e ao negro de forma diferenciada, mas com o mesmo conteúdo de destruição da consciência étnica e cultural de ambos.

Em relação ao índio, primeiro houve a fase genocídica de ocupação da terra e da destruição de milhares dos seus membros. Depois, a fase da cristianização, da catequese, da chamada evangelização, ou seja, da destruição das suas religiões e de sanções àqueles que não aceitassem submissamente a religião do colonizador que exercia nesse contexto o papel de bloco ideológico do Poder (1).

Em segundo lugar, foi a invasão das suas terras em ritmo rápido e violento no início e, depois, lenta e constante, a destruição daquelas tribos que ainda resistiam à integração, situação que perdura até hoje. Criou-se o Estatuto do índio no qual os seus direitos foram regulados pelos brancos, sem que eles pudessem intervir como agente social e cultural dinâmico (2). Mas, de qualquer forma, os remanescentes dos povos indígenas não perderam totalmente a sua identidade, a sua territorialidade em parte. Com isto, têm pólos de apoio que facilitam uma articulação de resistência, pois sabem até onde têm os seus direitos outorgados pelos brancos e aquilo a que têm direito legitimamente. A desigualdade entre o índio e o chamado homem branco iguala e une os índios na sua luta pela demarcação das suas terras (territorialidade) na luta contra a invasão das mesmas e procuram igualar-se em termos de cidadania. Com isso a sua consciência étnica mantém a sua identidade que se dinamiza no processo de resistência pelos seus direitos diferenciados porque foram-lhe fixados de fora, mas persiste a memória ancestral coletiva.

Com o Negro, porém, a situação é diferente e as estratégias montadas foram mais sofisticadas e eficientes. O racismo tem outra tática para com ele. Em primeiro lugar, o negro é considerado cidadão com os mesmos direitos e deveres dos demais. No entanto, o que aconteceu historicamente desmente este mito. Trazido como escravo, tiram-lhe de forma definitiva a territorialidade, frustraram completamente a sua personalidade, fizeram-no falar outra língua, esquecer as suas linhagens, sua família foi fragmentada e/ou dissolvida, os seus rituais religiosos e iniciáticos tribais se desarticularam, o seu sistema de parentesco completamente impedido de ser exercido, e, com isto, fizeram-no perder, total ou parcialmente, mas de qualquer forma significativamente, a sua ancestralidade.

“As elites dizem que branco e negro são iguais ante a lei. A vida diária desmente esse mito”.

Além do mais, após 13 de Maio e o sistema de marginalização social que se seguiu, colocaram-no como igual perante a lei, como se no seu cotidiano da sociedade competitiva (capitalismo dependente) que se criou, esse princípio ou norma não passasse de um mito protetor para esconder desigualdades sociais, econômicas e étnicas. O negro foi obrigado a disputar a sua sobrevivência social, cultural e mesmo biológica em uma sociedade secularmente racista, na qual as técnicas de seleção profissional, cultural, política e étnica são feitas para que ele permaneça imobilizado nas camadas mais oprimidas, exploradas e subalternizadas. Podemos dizer que os problemas de raça e classe se imbricam nesse processo de competição do Negro, pois o interesse das classes dominantes é vê-lo marginalizado para baixar os salários dos trabalhadores no seu conjunto (3).

O racismo brasileiro, como vemos, na sua estratégia e nas suas táticas age sem demonstrar a sua rigidez, não aparece à luz, é ambíguo, meloso, pegajoso, mas altamente eficiente nos seus objetivos.
E por que isso acontece? Porque não podemos ter democracia racial em um país onde não se tem plena e completa democracia social, política, econômica social e cultural. Um país que tem na sua estrutura social vestígios do sistema escravista, com uma concentração fundiária e de rendas das maiores do mundo; governado por oligarquias regionais retrógradas e broncas; um país no qual a concentração de renda exclui total ou parcialmente 80% da sua população da possibilidade de usufruir um padrão de vida decente; que tem 30 milhões de menores abandonados, carentes ou criminalizados, não pode ser uma democracia racial.

Quando democratizarmos, realmente, a sociedade brasileira nas suas relações de produção, quando os pólos do poder forem descentralizados através da fragmentação da grande propriedade fundiária e o povo puder participar desse poder, quando construirmos um sistema de produção para o povo consumir e não para exportar; finalmente, quando sairmos de uma sociedade selvagem de competição e conflito, e criarmos uma sociedade de planejamento e cooperação, então, teremos aquela democracia racial pela qual todos nós almejamos.

* Escritor, historiador e sociólogo especializado nas relações interétnicas no Brasil.

Notas
(1) Sobre a situação atual do índio ver: CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do Índio. Brasiliense, SP, 1987, passim.
(2) Cf. HASELBAG, Carlos. Discriminação e Desigualdade Raciais no Brasil. Graal, RJ, 1979.
(3) Sobre a existência e as estratégicas ideológicas do racismo brasileiro, negando ou constatando-o em várias abordagens e conclusões, consulte-se fundamentalmente: (seguem no livro 52 referências bibliográficas)

EDIÇÃO 32, FEV/MAR/ABR, 1994, PÁGINAS 62, 63, 64