O golpe militar de 1964 não foi um raio em céu azul. A conspiração para a derrubada do presidente João Goulart se articulava entre os militares, o grande capital e os agentes do imperialismo, desde sua posse, após a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961.

Goulart era visto como herdeiro daquilo que as classes dominantes brasileiras e o imperialismo consideravam como o mais ameaçador legado da tradição getulista: o trabalhismo, a ligação com a burocracia sindical. Não importa que essa ligação fosse canhestra, que esse sindicalismo fosse fundamentalmente reformista e tivesse sua atuação contida nos limites do sistema capitalista.
Para os setores conservadores, a ameaça consistia no fato de que essa ligação dava uma base de massas para o nacionalismo, tornando viável a implantação do modelo nacional-reformista de desenvolvimento tentado desde 1945, sob Getúlio Vargas. Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo eram uma mistura explosiva demais para os interesses coligados do grande capital, brasileiro e estrangeiro, do latifúndio e das nações imperialistas, particularmente os Estados Unidos. Era um programa que implicava, além disso, o aprofundamento da democracia no Brasil e a eliminação ou redução de velhos privilégios das elites brasileiras e de seus parceiros internacionais, à custa do esforço dos trabalhadores brasileiros.

No Brasil, após a Segunda Grande Guerra, o conflito entre os interesses do setor agroexportador (isto é, do latifúndio que produz matérias-primas e alimentos para o mercado mundial; do grande capital mercantil ligado ao comércio externo; e, finalmente, do imperialismo) e os interesses industriais e agrícolas ligados ao mercado interno transpareceu já em 1944, no debate ocorrido no Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, entre os defensores da industrialização do país (como Roberto Simonsen) e seus adversários (como Eugênio Gudin, o patrono dos neoliberais brasileiros).
Gudin, diz Eli Diniz, rejeitava a industrialização. Ele queria “a redução do volume de obras e investimentos do governo federal” e a restrição e o controle do crédito. Ele pensava que o Brasil devia “exportar muito e importar muito”, e pregava a adoção dos princípios estabelecidos em Breton Woods (onde foi criado o Fundo Monetário Internacional): liberdade de entrada e saída no país para o capital estrangeiro; igualdade de tratamento entre o capital nacional e o estrangeiro; e abolição de qualquer restrição à remessa de lucros. Parece que é hoje, mas essas teses são de 50 anos atrás!

“A tradição brasileira do neoliberalismo é antiga e sempre pregou a subordinação a interesses estrangeiros”.

Gudin defendia, diz Eli Diniz, “o revigoramento do setor agroexportador e a preservação de sua preponderância na economia do país”. Assim, era preciso “aumentar a nossa produtividade agrícola, em vez de menosprezar a única atividade econômica em que demonstramos capacidade para produzir vantajosamente, isto é, capacidade para exportar”.

Era então visível o conflito entre o modelo nacional desenvolvimentista e as exigências da hegemonia norte-americana. A Carta Econômica de Teresópolis de maio de 1945, lembra Octávio Ianni, defendeu o modelo nacional desenvolvimentista, ao mesmo tempo em que o movimento queremista (que queria uma Constituinte com Vargas na presidência) dava base de massas a essa exigência de superação do atraso e de afirmação da autonomia e da independência do país. Isto é, contra os livre-cambistas (como os neoliberais da época eram conhecidos), os nacionalistas defendiam a necessidade de construção de uma base industrial moderna e, embora de forma limitada, mobilizavam o povo na defesa desse objetivo. O próprio Partido Comunista engajou-se nessa tarefa de desenvolver o capitalismo no Brasil para superar o atraso neocolonial.

Nesse quadro, o elemento articulador das oposições ao Estado Novo, diz Sonia Regina Mendonça, foi o neoliberalismo, ideologia que compunha uma frente ampla que juntava “tanto setores tradicionalmente ligados à agro-exportação, quanto grupos importantes, e até mesmo frações da classe média urbana, todos eles lesados pela política econômica do governo e desejosos de livrar-se quer do confisco cambial, quer da seletividade das importações praticadas pelo Estado”. O partido político que exprimia esse pensamento de forma mais desenvolvida foi a UDN (União Democrática Nacional).

Entre o fim do Estado Novo e a deposição de João Goulart, em 1º de Abril de 1964, três modelos alternativos de desenvolvimento se enfrentaram para controlar o Estado e moldar o futuro da sociedade brasileira. Paralelamente a eles, um quarto modelo, o socialismo, se fortalecia com a luta operária, e suas chances de êxito decorriam do crescimento da organização e da luta operária e do agravamento da crise entre as classes dominantes. Esse quarto modelo, no entanto, não será considerado aqui, porém apenas aqueles que, naquela conjuntura, tinham maiores chances de implantação. Esses modelos eram: o nacional desenvolvimentismo, cuja figura-símbolo era Getúlio Vargas, e que teve apoio do Partido Comunista desde 1945 e, particularmente, depois de 1958, época em que a via pacífica para o socialismo, dos revisionistas, passou a preponderar na política partidária; o modelo dependente associado, baseado principalmente no capital estrangeiro; e uma variação do modelo anterior, o modelo de desenvolvimento da Escola Superior de Guerra.

“Os três modelos em choque: um neoliberal, outro nacionalista e outro militarista”.

Nacional desenvolvimentismo

Getúlio Vargas foi eleito senador em 1946 e, numa das poucas vezes em que esteve no Senado, denunciou, sob o argumento da vocação agrária do Brasil, o ataque à industrialização. “Limitar a atividade de uma nação que se encontra entre as três primeiras do mundo, como potencial de energia hidrelétrica e jazidas de ferro, limitar essas energias à vida rural, significa dar provas de incapacidade e de mentalidade colonial”, disse ele.

Na campanha eleitoral de 1950, Vargas reafirmou esse programa nacional reformista de maneira clara. “A minha atuação obstinada”, dizia, “foi transformar em nação industrial uma nação paralisada pela monocultura extensiva e pela exploração primária das matérias-primas”.

Transformar o velho Brasil agrário numa nação industrial moderna e autônoma – esse foi o sonho nacional reformista: dotar o Brasil de infra-estrutura industrial, com implantação de um parque siderúrgico, de uma fábrica de motores e de caminhões, por garantir o controle pelo país de suas reservas minerais e recursos naturais. Era um nacionalismo moderado, que admitia a participação do capital estrangeiro, desde que controlado pelas leis nacionais. Vargas entrevia a possibilidade de um desenvolvimento capitalista autônomo, com a ampliação do mercado interno e o fortalecimento da produção destinada ao consumo nacional.

O modelo baseava-se também na regulamentação das remessas de lucros dos capitais estrangeiros; na aplicação de uma política externa independente e definida de acordo com os objetivos políticos, econômicos e culturais da nação brasileira; finalmente, preconizava a democratização do acesso à terra, incorporando esse importante fator de produção à economia brasileira e, o que é mais importante, superando radicalmente o velho caráter colonial da agricultura – responsável pela monocultura e pela produção de bens para o mercado internacional –, que deixava em segundo plano a produção que atendia às necessidades do povo brasileiro.

As famosas reformas de base do governo Goulart sistematizavam esse modelo nacional desenvolvimentista que, é preciso enfatizar, nunca chegou a ser implantado no país de forma acabada, tendo enfrentado a poderosa oposição desde 1945, até ser finalmente derrotado militarmente em 1964.

Em fevereiro de 1963 a Frente Parlamentar Nacionalista – formada desde o governo de Juscelino para defender as reformas – divulga um “Termo de Compromisso”, citado por Vamireh Chacon, que mostra as limitações democrático-burguesas desse programa. Ele pedia a democratização das instituições políticas; a Reforma da Constituição; a democratização do ensino e da cultura; a reforma agrária; melhora no abastecimento e combate à carestia, com combate aos monopólios privados, estatizações e apoio creditício à produção; desenvolvimento econômico independente, com estatização do câmbio, do comércio exterior, do crédito em geral e da exploração das riquezas minerais; planejamento governamental; defesa das empresas brasileiras; e política externa independente.

Falava-se também na reforma bancária, na reforma urbana, na reforma da educação – mas a mudança fundamental almejada era delineada pelo fim do latifúndio e pelo controle do capital estrangeiro, por meio da lei de remessa de lucros, que tramitou no Congresso Nacional por dez anos, até ser aprovada em setembro de 1962. Mas só em janeiro de 1964, depois de muita vacilação (com o objetivo de aplacar a oposição dos norte-americanos), Goulart finalmente a sancionou, uma medida efetiva no sentido das reformas anunciadas – e exigidas – desde o início do governo.

No comício de 13 de março de 1964, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, Goulart anunciou outras medidas práticas, efetivas, nesse rumo: a assinatura dos decretos de reforma agrária (desapropriando as terras que ficavam na faixa de 10 km de cada lado das rodovias federais, e 30 km à margem dos açudes) e de nacionalização das refinarias de petróleo particulares. Indicou também os decretos que viriam: a reforma política, com a extensão dos direitos de votos aos analfabetos e às praças de pré; a reforma universitária, com a liberdade de ensino e o fim das cátedras vitalícias; a reforma da
Constituição, fortalecendo os poderes legislativos do Executivo; e, finalmente, a realização de um plebiscito para a aprovação das reformas de base.

Modelo associado-dependente

O modelo associado-dependente definiu-se no conflito com o modelo nacional desenvolvimentista e evoluiu a partir das idéias neoliberais contrárias à industrialização e à afirmação da independência nacional. Sua certidão de batismo pode ser vista na Instrução 113, de 17 de janeiro de 1955, da Sumoc (o Banco Central da época) que, segundo Caio Prado Jr., “dava aos investidores estrangeiros o direito de trazerem seus equipamentos sem nenhuma despesa cambial, enquanto as indústrias nacionais eram obrigadas a adquirir previamente, com pagamento à vista, as licenças de importação exigidas para trazerem do exterior os equipamentos de que necessitassem”. Para Octávio Ianni, esse favorecimento ao capital estrangeiro não implicou “apenas a ‘desnacionalização’ da economia”, mas envolveu “a internacionalização crescente da economia nacional”. Os autores da Instrução 113 foram o ministro da Fazenda, Eugenio Gudin, diretor no Brasil da multinacional norte-americana Amforp (American Foreign Power), o mesmo que, em 1944, queria o país dedicado apenas à agricultura, e seu escudeiro, Otávio Gouvea Bulhões, dirigente da Sumoc. Eram as autoridades financeiras do governo Café Filho, formado pelos golpistas que, em 1954, haviam levado Getúlio ao suicídio.

A semente lançada pela dupla Gudin/Bulhões floresceu no governo de Juscelino (1956-1961), cuja política econômica conciliou os interesses dos que queriam a industrialização do país com os interesses dos neoliberais. O latifúndio continuava intocado, o fomento à industria atendia aos interesses da facção industrialista, o crescimento na oferta de empregos ajudava a conter as pressões dos setores populares e o apelo ao capital estrangeiro acenava com a possibilidade de bons negócios para o imperialismo e seus aliados internos.

Desde então o modelo associado dependente deslanchou, como mostrou o estudo de Maurício Vinhas de Queiroz sobre os grupos multimilionários (publicado em 1965), que analisou 55 grupos econômicos com capital superior a Cr$ 1 bilhão (em valores da época). Na faixa dos grupos com capital entre 1 bilhão e 4 bilhões de cruzeiros, 65% eram nacionais; na faixa seguinte, com o capital superior a 4 bilhões de cruzeiros, eram os estrangeiros que predominavam, com 53%. Entre os grupos multibilionários, 78% dedicavam-se à indústria. Os nacionais tinham destaque nos setores de exportação e importação; no setor bancário; e na indústria de bens não duráveis. Na indústria de base os nacionais aproximam-se dos estrangeiros. Estes, por sua vez, dominavam os setores de distribuição, principalmente de petróleo; a indústria; e a fabricação de bens de consumo duráveis, principalmente automóveis. Finalmente, quase dois terços dos grupos nacionais (62,5%) tinham alguma forma da associação com outro grupo ou empresa estrangeira.

O modelo associado-dependente foi elaborado em dois movimentos. Em primeiro lugar, os conservadores brasileiros viam na associação com o imperialismo um caminho para o desenvolvimento sem alterações na estrutura da sociedade brasileira. Não é sem razão que Roberto Campos, ligado a Gudin e Bulhões, foi um dos principais defensores do emprego de capitais estrangeiros para o desenvolvimento do país e da integração da economia brasileira ao chamado bloco ocidental.

Por outro lado, havia os bem-definidos interesses do imperialismo na associação. Lincoln Gordon – que foi embaixador dos Estados Unidos no Brasil e um dos fomentadores da oposição a Goulart e, depois, ao golpe – e Engelbert L. Grommers chamaram a atenção para isso, num escrito de 1962 sobre investimentos americanos no Brasil entre 1946 e 1960. Segundo eles, os interesses na associação entre americanos e brasileiros eram econômicos e políticos. Econômicos: “a associação reduz os gastos de capital requeridos por um projeto”, e o investidor estrangeiro se beneficia da experiência local de produção, do pessoal técnico e gerencial e dos mecanismos de distribuição já instalados. Políticos: a associação “pode significar proteção contra pressões nacionalistas”.

Mas a propaganda do imperialismo e de seus aliados mascara essas vantagens e atribui a necessidade do capital estrangeiro a pretensas debilidades econômicas, administrativas e tecnológicas dos países que hospedam as multinacionais – deficiências que, na análise de Gordon e Grommers, não existem. Depois do golpe militar de 1964, o IPES (uma entidade formada para servir de biombo para os golpistas, financiada em larga escala pelos norte-americanos) estimulou empresas brasileiras a se associarem a multinacionais, “argumentando que eram óbvias a falta de capital e as necessidades de aperfeiçoamento tenológico das empresas locais”, diz René A. Dreifuss. Esse argumento modernizante (o mesmo repetido até a exaustão em nossos dias) encobria o fato de que, com a política econômica adotada pela ditadura, não havia alternativas. “Com o papel do Estado bastante reduzido”, diz Dreifuss, “restaram poucas opções para essas firmas a não ser se associarem a companhias multinacionais, a fim de sobreviverem à forte concorrência”.

Modelo da Escola Superior de Guerra

Os militares no Brasil, desde a República Velha, defendem a modernização da sociedade brasileira com o objetivo de atender a interesses corporativos próprios. A necessidade de implantação de uma base industrial sólida, capaz de dar ao país auto-suficiência na produção de armas e suprimentos bélicos; a necessidade de garantir o controle dos recursos naturais do país, particularmente os minerais; a imposição da existência de uma matriz energética autônoma; o imperativo da construção de uma infra-estrutura de comunicações capaz de integrar o território nacional – essas são algumas das preocupações tradicionais dos militares brasileiros. Depois da eleição de Vargas para a presidência, em 1950, o general Newton Estilac Leal, um dos futuros líderes da campanha do petróleo, deixou claro  o pensamento dos setores nacionalistas do Exército, interessados em um governo que implantasse uma política econômica que desse autonomia à defesa nacional: queremos “um Brasil industrial que dê navios mercantes e de guerra (…), aviões (…), canhões e carros de combate”, disse ele.
Estilac Leal era um militar nacionalista, e o modelo de desenvolvimento que ele preconizava era o nacional-reformismo de Vargas. Mas não foi essa a tese que prevaleceu entre os militares, mas sim o pensamento da Escola Superior de Guerra, uma instituição criada em 1949, no governo do marechal Eurico Gaspar Dutra, inspirada no National War College, dos Estados Unidos, e que desenvolveu, inspirada pelos norte-americanos, a ideologia da ditadura militar pós-1964 e a doutrina de segurança nacional e desenvolvimento.

Essa doutrina, diz Maria Helena Moreira Alves, parte da tese de que a segurança nacional exige o desenvolvimento dos recursos produtivos, a industrialização, a efetiva utilização das riquezas naturais e uma extensa rede de transportes e comunicações para integrar o território e o treinamento de força de trabalho especializada. O subdesenvolvimento precisa ser vencido, pois torna o país vulnerável àquilo que seus idealizadores chamavam de “estratégia indireta dos comunistas”.

Esse modelo estava enraizado, portanto, no pensamento militar que vinha, pelo menos, desde os tempos do tenentismo. Diferenciava-se de projetos semelhantes dos militares nacionalistas por sua opção clara pelo modelo associado-dependente. Tratava-se, neste caso, de atrair capitais, tecnologias e empresas estrangeiras para acelerar o crescimento industrial e criar, de um salto, a grande potência do sonho desses ideólogos militares.

“A política econômica de Castelo Branco baseou-se nas velhas idéias de Bulhões e Campos”.

Mas, diferentemente dos neoliberais, que defendiam um Estado Mínimo, inspirado nas teses liberais clássicas do século XVIII, o modelo de desenvolvimento da Escola Superior de Guerra não desprezou a potencialidade reguladora do poder de Estado, de base keynesiana, tida como capaz de conservar as vantagens do sistema capitalista e eliminar seus problemas. “Trata-se”, diz Maria Helena Moreira Alves, “de um modelo de desenvolvimento capitalista baseado numa aliança entre capitais do Estado, multinacionais e locais. O Manual da ESG considera a contribuição das corporações multinacionais positiva para o desenvolvimento econômico de um país, apesar de poder gerar considerável oposição interna.”Daí a ênfase na questão do poder político. A vida política, econômica, social e cultural do país passava a ser encarada em termos rigidamente militares. A segurança nacional tornou-se dogma, e as divergências tinham de ser eliminadas em nome da racionalidade do sistema. O modelo de desenvolvimento da Escola Superior de Guerra resolveu esse problema à força de baionetas, em nome da doutrina de segurança nacional.

Embora tenha prevalecido, esse modelo não era consensual entre os militares e teve de impor-se à força mesmo nos quartéis. Embora a corrente militar nacionalista e democrática dos anos 1950 e 1960 tenha sido dizimada, entre os novos ocupantes do poder não havia unidade de pontos de vista. Militares nacionalistas de direita continuaram na ativa. Eram os homens da tropa, como o general Costa e Silva, alheios aos doutrinários da ESG, como os generais Castelo Branco ou Golbery do Couto e Silva. Esse nacionalismo de direita foi a base da linha dura do novo regime, composto por homens que encaravam a missão militar de forma absoluta e se propunham a usar o poder do Estado não só para acabar com o chamado inimigo interno, mas também para intervir na economia de forma radical, construindo uma economia moderna e poderosa. O foco da divergência não era a presença do capital estrangeiro, que a direita militar aceitava, mas sim o papel do Estado no desenvolvimento do país. Assim, o novo poder nascia dividido, uma situação que pode explicar a evolução contraditória da ditadura – ela nasceu contra o estatismo do modelo nacional-desenvolvimentista, mas fomentou a maior intervenção do Estado na economia da história brasileira.

Depois de 1964, diz Octávio Ianni, o desenvolvimentismo deu lugar à ideologia da modernização. Roberto Campos e Otávio Gouvea de Bulhões – da mesma turma que, em 1944, foi contra a industrialização e que, em 1954, ensaiou um governo baseado em teses neoliberais – tinham agora o caminho livre para seus experimentos baseados no receituário clássico recomendado pelo FMI, posto em prática com a implantação do PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo), de agosto de 1964, elaborado por Campos e Bulhões.

Seu objetivo era a luta contra a inflação. Previa um drástico corte nos gastos do governo, restrições ao crédito, arrocho salarial e aumento dos impostos. As tarifas públicas foram aumentadas para aumentar a receita do governo; e o aparelho fiscal modernizado, a fim de melhorar a arrecadação e combater a sonegação. Qualquer semelhança com os programas que hoje, 30 anos depois do golpe, são correntes na praça, não é mera coincidência, é bom advertir!

Em consequência dessa política econômica, acelerou-se a desnacionalização da economia brasileira. As restrições de crédito deixaram muitas empresas brasileiras em grave situação, facilitando sua compra por estrangeiros, a preços quase sempre aviltantes.

Em julho de 1964, antes mesmo do PAEG, a política de Roberto Campos chocou-se com a oposição dos cafeicultores e industriais, atingidos pela restrição ao crédito; de trabalhadores, que defendiam seus salários; de setores da classe média, esmagados pelo peso dos impostos. Em São Paulo, em 1965, mais de cinco mil fábricas fecharam. Em 1965, o presidente da Confederação Nacional das Indústrias, Eurico Amado, acusava o PAEG pelas dificuldades. “O crescimento da indústria nacional foi estancado e a produção, na maioria dos setores industriais, declinou”, denunciou ele.

Para os trabalhadores, a consequência era miséria, dificuldades, deterioração salarial. Tomando-se como base o ano de 1957 – quando atingiu seu ponto mais alto desde sua implantação, em 1940, o salário-mínimo perdeu 20% de seu valor real em 1960, 25% em 1964 e 40% em 1966.

O governo Castelo Branco adotou uma política de verdadeira rendição aos interesses do imperialismo. Problemas do passado, com a nacionalização da Amforp e da ITT, foram resolvidos com a sua compra, pelo governo militar, pelo preço imposto pelos norte-americanos. A lei de remessa de lucros de Goulart foi revogada, substituída por uma mais liberal e favorável aos investidores externos. As mineradoras estrangeiras tiveram seus interesses equacionados, e a própria política agrária do novo governo destinava-se a agradar ao imperialismo e seus aliados internos. Roberto Campos eliminou os temores de uma reforma agrária e estimulou a produção de gêneros exportáveis, em detrimento da produção de alimentos para consumo interno.

“O próprio conceito de nação entra em debate”, diz Octávio Ianni. Depois de 1964, a ênfase na independência nacional é substituída pela doutrina da interdependência, exposta por Castelo Branco num discurso pronunciado no Itamaraty, em julho de 1964: “no presente contexto de uma confrontação de poder bipolar, com radical divórcio de posição política e ideológica entre os dois centros de poder, a preservação da independência pressupõe a aceitação de certo grau de interdependência, quer no campo militar, quer no econômico, quer no político”.

“A ideologia de 1964 permanece nas teses neoliberais da direita e de seus apologistas”.

Era a política do alinhamento automático com os Estados Unidos nas questões de política interna, e de ênfase militar no combate ao chamado inimigo interno, deixando a responsabilidade pela defesa externa principalmente aos norte-americanos. “A independência é um valor terminal”. Sua expressão política “foi desfigurada”, e “perdeu sua utilidade descritiva”, disse Castelo naquele discurso. “O conceito de independência é operacional somente sob certas condições práticas.”

No início de 1965, Castelo Branco alinhavou os obstáculos que, em seu pensamento, era preciso superar: “o fatalismo do consumidor, que acredita na inevitabilidade da alta dos preços e a ele se submete passivamente, ao invés de barganhar com os fornecedores e premiar os mais barateiros”; “a indiferença do produtor à qualidade e a custos, habituado a tudo vender, transferindo custos ao consumidor, despreocupado da eficiência e protegido contra a concorrência pela exacerbação da demanda inflacionária”; “a ilusão do assalariado, seduzido pela promessa de altos salários nominais, superiores às possibilidades reais da economia e que por isso mesmo logo se esvaem na trágica espiral dos preços”, “a frustração do poupador, que vê sua moeda esvair-se e conclui em favor do consumo, da especulação ou da exportação de seu dinheiro, em país tão necessitado de investimentos produtivos”.

É o mesmo discurso que, hoje, os representantes das mesmas correntes que conspiraram em 1964 contra a ordem constitucional defendem, a pretexto da modernização do país – e que pretendem, à força, inscrever na Constituição brasileira numa revisão espúria e ilegítima. Os golpistas de 1964 diziam que seu movimento era contra o comunismo, a inflação e a corrupção. Eram teses para consumo público. Na verdade, seu programa era a modernização capitalista conservadora do Brasil, o mesmo programa que hoje anima os neoliberais.

Em 1964, como atualmente, falava-se em eficiência empresarial, cujo modelo era a grande empresa brasileira e a multinacional. As empresas brasileiras menores, como hoje, eram vistas como ineficientes, tecnologicamente atrasadas, que só sobreviviam devido à proteção estatal. O papel do Estado, pensavam, devia ser drasticamente reduzido, e sua intervenção na economia, eliminada. O Estado era visto como um administrador ineficiente e perdulário, e as empresas estatais deviam ser privatizadas.

A história mostrou que, mesmo com seus poderes ditatoriais, os conspiradores não conseguiram colocar essa tese em prática completamente. Para o campo, em lugar da reforma agrária, falavam em modernização agrária, e o resultado foi a manutenção de uma estrutura fundiária arcaica e a exclusão de milhões de camponeses da posse da terra. O capital estrangeiro era tido como essencial para o desenvolvimento do país, e por isso deveria ser favorecido à custa do fortalecimento da empresa nacional. O nacionalismo foi substituído pela noção de interdependência, e o Brasil devia integrar-se no bloco ocidental liderado pelos Estados Unidos (hoje fala-se em integração com o Primeiro Mundo, mas é a mesma coisa) para poder avançar. Finalmente, a lógica do grande capital que comandou o golpe (como comanda hoje o projeto neoliberal) impunha enormes sacrifícios aos trabalhadores e exigia que estes se conformassem com a parte que lhes era destinada da riqueza nacional.

Atualmente, os neoliberais e os modernizadores falam na agenda dos anos 1950 como coisa ultrapassada. A história do debate nos anos 1950 e da ditadura militar que o enterrou mostra, contudo, que foram as teses conservadoras, ainda mais antigas, que prevaleceram e que o programa nacional-reformista, embora limitado, previa uma solução para os problemas nacionais mais avançada do que a imposta pelos militares e pelos neoliberais. Deu no que deu – os problemas nacionais foram agravados, e muitos dos pontos da agenda dos anos 1950 continuam na ordem-do-dia, indicando que aquele programa – que, na realidade, não pode ser reproduzido automaticamente em nossos dias – é um excelente ponto de partida para o equacionamento de um programa mais avançado para a sociedade brasileira.

* Jornalista

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EDIÇÃO 33, MAI/JUN/JUL, 1994, PÁGINAS 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18