O debate brasileiro sobre relações internacionais e modernidade tem passado ao largo de um aspecto crucial: a dimensão monetária do relacionamento externo do país. Pretendemos neste artigo tratar desse aspecto da questão, destacando o caráter paradoxal de certas proposições supostamente modernizadoras de reforma monetária e estabilização. Veremos que muitas dessas propostas significam, na verdade, uma regressão em termos de história monetária, isto é, uma volta a formas ultrapassadas de organização da instituições monetárias.

É dentro desta perspectiva que objetivamos avaliar as propostas e os programas de “dolarização” da economia, discutindo em especial a possibilidade de aplicar este receituário ao caso brasileiro. O interesse pelo tema cresceu com o programa de estabilização iniciado por Fernando Henrique Cardoso, uma vez que as medidas por ele adotadas ou anunciadas parecem apontar na direção da dolarização.

Limitações de espaço não permitem discutir neste trabalho todos os efeitos dos processos de dolarização que, como se sabe, afetam a economia sob os mais variados pontos de vista. As considerações apresentadas a seguir parecem suficientes, contudo, para desencorajar qualquer tentativa desse tipo em uma economia com as características da brasileira.

1- Conceitos de dolarização

O termo “dolarização” possui dois sentidos básicos que conviria distinguir desde logo. Pode designar, por um lado, a tendência espontânea dos agentes econômicos, que se manifesta no plano microeconômico, de substituir a moeda nacional pelo dólar após um período de inflação elevada. Por outro lado, pode designar a utilização da moeda estrangeira como ponto central de referência ou elemento básico de um programa de estabilização macroeconômica.

No primeiro sentido, a dolarização constitui uma espécie de reforma monetária produzida pelo mercado, isto é, um processo sem coordenação central pelo qual a moeda doméstica vai sendo abandonada progressivamente como unidade de conta, padrão para pagamentos diferidos, reserva de valor e até mesmo meio de troca.

Mas é no segundo sentido que usaremos o termo dolarização durante a maior parte deste trabalho. O que se procurará discutir são as características gerais e implicações da dolarização, entendida como mecanismo de estabilização e reforma monetária supostamente apropriado para economias atingidas por grave crise inflacionária.

2- Dolarização como movimento regressivo

O diagnóstico que dá origem a programas desse estilo pode ser explicado em poucas palavras. Parte-se da avaliação de que os distúrbios monetários agudos constituiriam fenômenos qualitativamente distintos das inflações moderadas, não sendo, portanto, passíveis de solução pela via dos instrumentos convencionais de contenção fiscal e monetária, associados ou não a políticas “heterodoxas” de controle de preços e salários. Inflações extraordinárias pela sua dimensão ou duração resultariam fatalmente no colapso da confiança no Estado nacional e na moeda de sua emissão e não poderiam ser enfrentadas sem o recurso a algum tipo de âncora ou garantia, única forma viável de restituir credibilidade às iniciativas estabilizadoras de um Estado desacreditado.

Ancorar a moeda nacional significaria, neste contexto, estabelecer uma relação de subordinação com um padrão monetário estrangeiro confiável. Na América Latina, o candidato natural ao papel de moeda âncora ou moeda lastro seria o dólar dos EUA.

Admitir este diagnóstico implica aceitar que a crise monetária atinge em cheio certos traços centrais do sistema monetário moderno tal como prevalece hoje na maior parte do mundo e em todas as principais economias, quais sejam, o monopólio estatal da emissão primária de moeda e ausência de lastro na forma de uma vinculação com um padrão metálico. Não por acaso, a sua superação poderia então pressupor uma regressão a formas primitivas ou ultrapassadas de organização e regulação da moeda.

“A Argentina é exemplo mais conhecido da dolarização e mostra o caráter regressivo dessa medida”.

O caráter regressivo das reformas dolarizantes aparece de forma inequívoca na experiência e no debate recentes. O programa de conversibilidade argentino de 1991 é o exemplo mais conhecido. No essencial, a Lei de Conversibilidade é uma tentativa de ressuscitar os elementos centrais do antigo padrão-ouro, com o dólar exercendo todas as funções do ouro, inclusive a de servir de meio de pagamento interno em paralelo à moeda nacional. A semelhança com o antigo regime monetário reside não apenas na fixação da taxa de câmbio com a moeda lastro, na plena conversibilidade da moeda argentina e na subordinação da base monetária às reservas externas do Banco Central, mas também no fato de estas regras representarem compromissos estabelecidos em lei e não apenas decisões anunciadas pelo governo ou pela autoridade monetária.

No que se refere ao Brasil, as propostas de reforma monetária apresentadas em diversos estudos encomendados ou preparados pelo Banco Mundial seguem a mesma linha geral. Também nesse caso, o que se considera necessário para conferir credibilidade ao processo de ajustamento é o retorno a formas mais rudimentares de organização, nomeadamente a implantação de um currency board, ou conselho da moeda nos moldes do regime monetário das antigas colônias da Inglaterra e outras potências européias na África, na Ásia e no Caribe (1).

3- Elementos centrais das propostas de dolarização

Não é difícil perceber que as diferentes modalidades de dolarização são sempre variações em torno de alguns temas recorrentes ou elementos constitutivos:

a) Ancoragem cambial, entendida como a definição de uma regra de variação para a taxa de câmbio nominal com a moeda escolhida como referência, o que pode significar o congelamento ou a prefixação do câmbio ou, ainda, a definição de faixas de variação para a taxa nominal;
b) conversibilidade da moeda nacional, isto é, a supressão completa ou quase completa dos controles cambiais e restrições de acesso ao mercado de câmbio;
c) subordinação da base monetária às reservas internacionais, ou seja, a introdução de uma regra rígida de criação de moeda primária, que passa a ficar condicionada à igual contrapartida em termos de reservas externas adicionais no Banco Central ou no currency board; e
d) uso interno da moeda estrangeira, ou seja, eliminação de restrições à sua circulação doméstica, à criação de créditos e depósitos dolarizados, à utilização da moeda estrangeira como indexador de contratos na economia, enfim, à supressão parcial ou total do conjunto de dispositivos legais e administrativos que defendem a moeda doméstica da concorrência de moedas estrangeiras de liquidez internacional.

“Legalizar o uso interno de moeda estrangeira cria padrões de comportamento difíceis de eliminar”.

A opção por um esquema de estabilização que inclua todos, ou a maioria dos quatro, pontos acima referidos constitui inegavelmente uma aposta de alto risco. Por isso mesmo, os responsáveis pela política econômica de um país só tomam esse caminho quando confrontados com um dramático estreitamento do leque de opções. Como veremos adiante, a âncora cambial pode gerar grave desequilíbrio no balanço de pagamentos em conta corrente e dependência crescente de capitais externos voláteis ou de curto prazo: a conversibilidade torna a economia mais vulnerável aos movimentos internacionais de capital; a vinculação da base às reservas coloca a gestão monetária e financeira doméstica na estrita dependência da política monetária do país emissor da moeda âncora; e, finalmente, a legalização do uso interno da moeda estrangeira cria hábitos ou padrões de comportamento de muito difícil reversão.

4- Ancoragem no dólar como decisão unilateral

É bem possível que uma tentativa de estabilizar o cruzeiro com base em algum tipo de âncora cambial e medidas de dolarização seja entendida no exterior como um passo na direção do enquadramento da economia do país às “regras do jogo”, ainda que seja apresentada como um ato “soberano” do governo brasileiro. Assim caracterizada, a vinculação ou subordinação da moeda nacional a um padrão monetário estrangeiro surgiria como uma decisão unilateral e estaria, portanto, dissociada de qualquer acordo ou compromisso internacional em relação à paridade ou faixa de variação estabelecida pelo governo brasileiro. Não haveria, em particular, qualquer compromisso do banco emissor da moeda âncora, o Federal Reserve*, de colaborar para a sustentação da taxa de câmbio fixada ou prefixada.

Nesse particular, as âncoras cambiais latino-americanas diferem de modo essencial da ancoragem no marco alemão, que constituía a essência do recém-falecido mecanismo cambial europeu. Na Europa Ocidental, o sistema de taxas de câmbio fixas ou quase-fixas resultava de um entendimento multilateral e contava, portanto, não apenas com o respaldo dos governos e bancos centrais das moedas historicamente mais fracas, mas também com o compromisso da Alemanha e do Bundesbank de atuarem no sentido de dar sustentação ao sistema, inclusive intervindo de forma coordenada com os outros governos e bancos centrais, para manter as taxas cambiais dentro das faixas acordadas.

Embora não tenha sido capaz de impedir que um agudo conflito de interesses e prioridades entre a Alemanha e o resto da Comunidade Européia acabasse conduzindo à virtual desintegração do sistema em 1992-93, a sua natureza multilateral lhe conferia um grau de solidez incomparavelmente maior que o da ancoragem latino-americana no dólar.

No caso da Argentina, por exemplo, onde vigora uma âncora de tipo mais rígido do que a européia, não existe da parte do Federal Reserve ou do governo americano qualquer garantia ou compromisso de atuar no sentido de ajudar o Banco Central argentino a defender a paridade fixada. Dessa forma e dependendo do andamento do programa de estabilização, sinais mais sérios de incompatibilidade entre o comportamento do Federal Reserve e as conveniências da Argentina podem ser suficientes para desatar uma corrida contra o peso argentino. Com a possível exceção do peso mexicano que, pelos motivos conhecidos, pode contar com mais apoio americano em situações de emergência, observação semelhante vale em maior ou menor grau para as demais moedas latino-americanas já ancoradas ou que venham a se ancorar no dólar. Em suma, na área de influência do dólar as relações monetárias têm um caráter mais assimétrico do que na Europa Ocidental, o que torna a moeda estrangeira um ponto de apoio problemático para o processo de estabilização.

“Dolarização: perda de autonomia na política econômica e perda da soberania monetária”.

5- Perda de autonomia monetária e cambial

Como sugere a própria expressão, a dolarização implica necessariamente perda de autonomia na condução da política econômica. Essa perda de autonomia é da própria essência do esquema e decorre, em primeiro lugar, da renúncia à possibilidade de praticar políticas próprias no campo monetário e cambial. As condições domésticas de liquidez passam a ser determinadas de forma reflexa pelos movimentos de política monetária na economia emissora da moeda âncora, convenha isso ou não à situação conjuntural da economia ancorada. O valor externo da moeda ancorada passa a acompanhar passo a passo as flutuações da moeda âncora nos mercados internacionais de câmbio, convenha isso ou não às contas externas da economia ancorada. Esta última fica assim inteiramente a reboque das decisões do Tesouro e do Banco Central do país responsável pela emissão e controle da moeda escolhida como lastro. O programa de dolarização sacramenta e consolida, portanto, a perda de soberania monetária que a própria inflação continuada tende a produzir.

Quando há alguma coincidência entre as necessidades do país emissor da moeda âncora e as do emissor da moeda ancorada, os custos associados à perda de independência monetária e cambial não se manifestam de forma clara. Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso do programa argentino em 1991-93. Já a experiência recente da Europa Ocidental pode servir como exemplo do caso oposto, em que uma forte discrepância de objetivos entre a economia âncora e as economias ancoradas termina por criar um conflito custoso e insustentável entre as prioridades nacionais e a defesa de paridades cambias rígidas ou faixas estreitas de variação das taxas de câmbio.

Se o governo autoriza ou tolera a utilização de moedas estrangeiras em transações domésticas, há implicações adicionais às referidas anteriormente. A mais óbvia é a transferência ao exterior de receita de seignorage, isto é, de recursos que podem ser obtidos pelo Estado, a custo praticamente zero, com o monopólio da emissão de moeda fiduciária de curso legal dentro do território nacional. Se a moeda estrangeira começa a circular em escala apreciável, a receita de seignorage extraída da economia passa a ser compartilhada com um Estado estrangeiro, que se beneficia, desta forma, de uma ampliação sem ônus de sua receita com a emissão monetária e da base de incidência do imposto inflacionário. Para o país que se dolariza, a perda de receita de seignorage pode ser total, ou quase total, como no Panamá, ou apenas parcial, como na Argentina em em outras economias sul-americanas, que experimentaram processos hiperinflacionários na década passada.

6- Perda de flexibilidade fiscal e supressão do emprestador de última instância

A implantação de um currency board ou de normas equivalentes de operação para o Banco Central tem o efeito intencional de estreitar substancialmente a flexibilidade da política de gastos, uma vez que suprime a possibilidade de recorrer a financiamento monetário em situações de emergência.

Evidentemente, a perda de flexibilidade para gastar não é um mero subproduto desse gênero de reforma monetária, mas o próprio objetivo que se procura alcançar, qual seja, o de levar o poder público a se auto-impor uma espécie de camisa-de-força, que supostamente “despolitizaria” a criação de moeda primária e impediria o setor governamental de obter financiamento monetário junto à instituição emissora.

Uma das dificuldades inerentes a esta pretensão reside no fato de que uma camisa-de-força auto-imposta pelo poder público – na forma de um entidade monetária independente e separada (como sugerem os estudos do Banco Mundial para o Brasil) ou de uma lei que restringe a operação do Banco Central enquanto autoridade emissora (como a Lei de Conversibilidade argentina) – pode ser rompida pelo próprio poder público e nunca desperta confiança plena quando da sua implementação. Um dos estudos de caráter propositivo encomendado pelo Banco Mundial levanta a questão e oferece tentativamente uma resposta curiosa, porém sintomática:

“Even if [the currency board] is initially established as an independent agency, having been created by government fiat it could, over the long run, be as easily converted into a creature of the government. (…) If it is to function as its supporters envisage, it would have to be run by those who could not be subverted by the Brazilian state. An obvious answer is for the IMF to run the currency board, but given nationalist sentiments is this likely to be acceptable? Possibly, if the hyperinflationary crisis – which is ultimately a crisis of the State – cannot be resolved in any other way” (2).

Veja-se a que ponto se chega em estudos patrocinados pelo Banco Mundial! Não se trata apenas de recomendar que o Brasil regrida a um sistema monetário de tipo colonial, mas também de cogitar a possibilidade de confiar a sua administração a uma entidade internacional.

Não se deve perder de vista, além disso, que, quando a base monetária fica rigorosamente condicionada à existência de uma contrapartida pelo menos igual sob a forma de reservas de liquidez internacional, desaparece também a possibilidade de socorrer o sistema bancário, ou seja, deixa de existir um emprestador de última instância em moeda nacional e aumenta a vulnerabilidade das instituições financeiras internas. A autoridade monetária passa a só poder exercer esta função clássica se dispuser de reservas excedentes (em relação a seu passivo monetário) ou tiver acesso garantido e imediato a linhas de crédito no exterior.

“Dizem que as medidas de dolarização são temporárias, mas elas tendem a se perpetuar”.

Nos currency boards dos tempos coloniais, a perda de flexibilidade nos planos fiscal e financeiro não constituía motivo para maiores preocupações. Na eventualidade de uma emergência provocada, por exemplo, por algum desastre climático ou ameaça militar, a responsabilidade última era do governo da metrópole. Além do mais, as colônias não costumavam dispor de sistemas bancários próprios, controlados por residentes. Os bancos nas colônias inglesas, por exemplo, eram em geral filiais de bancos londrinos.

Na hipótese de uma insuficiência de liquidez bancária, não era da autoridade monetária colonial que se esperava socorro, mas das matrizes localizadas em Londres e, em último caso, do Banco da Inglaterra.
Não é preciso ser um grande conhecedor da economia brasileira para perceber o quanto a sua estrutura financeira difere desse paradigma colonial. Note-se, ademais, que a eliminação do emprestador de última instância ocorreria justo no momento em que a queda da inflação viria exigir um ajustamento provavelmente expressivo da parte de um sistema financeiro acostumado a operar com inflação alta.

7- Irreversibilidade dos processos de dolarização

Apesar do que foi dito nas seções anteriores, a dolarização ainda poderia ser aceita como um instrumento válido se os problemas por ele provocados constituíssem um preço transitório a ser pago para alcançar certos objetivos de política econômica, tais como a imposição de disciplina a um sistema político perdulário (pela proibição de emitir sem contrapartida em reservas) ou a restauração dos circuitos domésticos de crédito e a contenção da fuga de capitais para o exterior (pela permissão de operações dolarizadas no sistema financeiro local). O problema é que a dolarização costuma revelar-se uma via de mão única. Nesse particular, a experiência latino-americana é clara e cristalina: medidas de dolarização, ainda que anunciadas como temporárias, tendem a se perpetuar. Ressalta-se que isso ocorre mesmo quando se consegue sucesso em matéria de controle da inflação em moeda nacional.

A irreversibilidade dos processos de dolarização em economias como as latino-americanas, caracterizadas em geral por longa história inflacionária, parece um fenômeno até certo ponto previsível. Tornar a moeda nacional conversível em dólar, permitir aplicações no exterior sem limitações, autorizar os depósitos em dólar, no sistema financeiro local, ou tomar outras medidas do mesmo gênero, tudo isso conduz fatalmente ao desenvolvimento e à cristalização de hábitos financeiros que se revelam depois praticamente irreversíveis em bases voluntárias. Uma vez consolidado o costume de usar moeda estrangeira, passa a ser quase impossível induzir os agentes econômicos a voltarem a usar na mesma medida a moeda local, tradicionalmente mais propensa à desvalorização.

Na prática, a legalização de um sistema bimonetário pode acarretar até mesmo a imobilização ou perda permanente de instrumentos vitais de política econômica. Deve-se recordar que a conversibilidade da moeda nacional ou a retirada de restrições ao uso interno do dólar vêm muitas vezes acompanhadas da estabilização da taxa nominal de câmbio. Como ressalta o trabalho realizado recentemente no âmbito do Banco Interamericano de Desenvolvimento, essa combinação de medidas pode criar uma situação em que não seja mais factível voltar a usar a taxa de câmbio para atingir determinados objetivos ou responder a movimentos nos termos de trocas e outras variáveis fora do controle da política econômica (3).

De fato, se grande parte das operações financeiras domésticas está denominada em moedas externas, uma desvalorização cambial pode transtornar por completo as relações de débito e crédito dentro da economia, desencadear instabilidade financeira e ameaçar a solvência de famílias, empresas e bancos que apresentam descasamento entre a composição monetária de seus ativos e passivos ou de receitas e despesas. Esse parece ser um dos motivos pelos quais a Argentina, por exemplo, tanto reluta em mover a sua taxa de câmbio em que pesem as evidências flagrantes da defasagem cambial.

“Não faz o menor sentido adotar a dolarização em economias continentais como a brasileira”.

A experiência da Bolívia desde 1985 é o caso mais conhecido de irreversibilidade ou histerese em um processo de dolarização. Como se sabe, ela foi o primeiro país da América Latina a experimentar uma hiperinflação aberta e também a primeira a aplicar um programa bem-sucedido de hiper-estabilização.

O êxito do programa de combate à inflação não se refletiu, contudo, em desdolarização da economia. Ao contrário, os indicadores disponíveis apontam para um processo persistente de dolarização no sistema bancário boliviano, com os depósitos em moeda estrangeira acusando crescimento quase contínuo como proporção dos depósitos totais. Em 1992, sete anos depois do início de uma estabilização exitosa, os depósitos dolarizados representavam nada menos que 80% do total do M2** em moeda nacional e estrangeira. No Peru, o grau de dolarização no sistema bancário também aumentou substancialmente durante um período de queda pronunciada da inflação interna. Entre fins de 1990 e meados de 1993, enquanto a inflação em doze meses caía de 7.650% para cerca de 50%, a participação dos depósitos em moeda estrangeira nos depósitos totais dos bancos comerciais cresceu de 56% para mais de 80%. No mesmo período os créditos em moeda estrangeira aumentaram de 62% para 77% como proporção do crédito total dos bancos comerciais em operação no Peru.

Embora de forma menos intensa, a Argentina também experimentou dolarização crescente no sistema bancário após promulgação da Lei de Conversibilidade, em abril de 1991. Entre março de 1991 e agosto de 1993, os depósitos em moedas estrangeira dentro do país cresceram quase cinco vezes em termos absolutos, e sua participação no total do M3*** em moeda estrangeira e nacional aumentou de 31% para 38%, em que pese a queda abrupta da inflação, que passou de 1.344% no ano de 1990 para menos de 10% nos doze meses até agosto de 1993.

8- Dolarização em uma economia de porte continental

Algumas das dificuldades típicas das estabilizações do gênero dolarizante tendem a ser menores ou podem ser enfrentadas com mais eficácia no caso de economias de pequena dimensão. Como o coeficiente de abertura comercial de economia costuma ser mais elevado em economias menores, os bens e serviços comerciáveis têm uma influência maior sobre os índices de preços domésticos. Ademais por serem mais abertas, essas economias tendem a se dolarizar rapidamente em períodos de inflação alta, ou seja, os preços de produtos não-comerciáveis e mesmo os salários se indexam com mais facilidade à taxa cambial. Dadas essas condições, a estabilização do câmbio nominal tem impacto forte e imediato sobre a taxa da inflação e resulta, assim, em grau menor de valorização do câmbio real.

No caso de economias pequenas, também é mais fácil mobilizar suporte financeiro externo para um processo de estabilização. Com o montante de recursos que constitui aporte relativamente modesto para os países credores e as entidades multilaterais de financiamento, torna-se possível formar um fundo de estabilização suficiente para contribuir de forma apreciável, e até decisiva, para a sustentação da estabilidade cambial e no financiamento do governo na etapa inicial do ajustamento.

“A dolarização é uma confissão do fracasso do governo em restabelecer a ordem monetária no país”.

Para uma economia de dimensão continental como a brasileira, essas circunstâncias atenuantes não existem. Apesar da ligação comercial nos últimos anos, o grau de abertura da economia brasileira permanece relativamente baixo. Os preços dos bens e serviços não-comerciáveis e, em especial, os salários demoram a se referenciar ao dólar em que pese a inflação alta e as sucessivas violências a que foi submetido o sistema de indexação doméstico. Isso favorece o surgimento de fortes defasagens cambiais toda vez que o governo se anima a lançar uma âncora cambial, a exemplo do que ocorreu quando a prefixação cambial de 1980 ou durante o Plano Cruzado, em 1986. Como não se consegue, além disso, negociar apoio oficial externo em quantidade compatível com o tamanho da economia e das suas necessidades de financiamento pós-estabilização, os déficits de balanço de pagamentos em transações correntes passam a ser financiados com a tomada de recursos nos mercados financeiros internacionais, geralmente por prazos curtos e pagando spreads elevados. O resultado acaba sendo uma crise de balanço de pagamentos e a impossibilidade de continuar sustentando a taxa cambial fixada ou prefixada.

Se a âncora cambial vem acompanhada de um compromisso com a conversibilidade de medidas de liberalização do mercado cambial, tais como a eliminação de controles sobre o movimento de capitais, a posição do setor externo se torna potencialmente ainda mais frágil. Nessas condições, ao crescimento do déficit em transações correntes se adiciona uma volatilidade maior da conta de capitais do balanço de pagamentos, o que pode contribuir para apressar o colapso cambial.

Duas características da própria estrutura do seu comércio exterior parecem tornar a economia brasileira particularmente vulnerável aos problemas de balanço de pagamentos frequentemente associados à âncora cambial. Uma é a diversificação geográfica do comércio, a outra, a elevada participação de produtos industrializados na pauta de exportações.

Uma economia como a brasileira, cujo comércio se distribui pelo mundo inteiro, corre naturalmente o risco de pagar um preço elevado quando o governo estabelece uma vinculação rígida com a moeda de determinado país. Nessas condições, o ônus decorrente da perda de autonomia cambial é maior do que no caso de uma economia comercialmente integrada à economia emissora da moeda âncora.

Como os EUA absorvem cerca de 20% das exportações do Brasil, o dólar pesa bem menos na formação da taxa efetiva de câmbio do cruzeiro do que, por exemplo, na do peso mexicano ou na das moedas centro-americanas. Uma forte valorização internacional do dólar se refletiria em uma forte valorização efetiva do cruzeiro, que se associaria à inevitável apreciação real da taxa bilateral com o dólar para produzir perda acentuada da competitividade externa.

Observe-se, finalmente, que a perda de competitividade tende a ter efeitos mais rápidos quando é maior a participação das exportações industriais, mais sensíveis à taxa de câmbio em curto prazo. No Brasil, com os manufaturados respondendo por 50% a 60% do toral exportado, os efeitos de uma âncora cambial se fariam sentir provavelmente em prazo mais curto do que em países como a Argentina, por exemplo, onde preponderam as exportações agropecuárias.

Em resumo, ao contrário do que às vezes se parece supor, o Brasil não se ajusta confortavelmente ao figurino da dolarização, mais aplicável it at all as economias como as centro-americanas, pequenas, comercialmente integradas aos EUA e exportadoras de produtos primários.

9- Independência monetária como dimensão essencial da soberania nacional

O grande cientista político e economista francês do século XVI, Jean Bodin, ao desenvolver o conceito de soberania, tratou o direito de produzir moeda própria como um de seus aspectos mais importantes e essenciais. Desde a constituição do Estado nacional na sua forma moderna, a soberania monetária tem sido universalmente reconhecida como uma prerrogativa central dos governos de países independentes.

Uma inflação prolongada e intensa significa, entretanto, uma quebra de confiança na capacidade do Estado de exercer esta prerrogativa de forma socialmente adequada. Entendida como mecanismo de estabilização, a chamada dolarização não é mais do que a legalização e o reconhecimento oficial desse processo de erosão da soberania monetária. Constitui, por assim dizer, uma confissão de fracasso e de incapacidade de restabelecer a ordem monetária por meios próprios.

Não por acaso, o recurso à dolarização traz uma enorme perda de independência. Significa, como vimos, abdicar da possibilidade de desenvolver políticas próprias nas áreas monetária e cambial. Implica ficar rigidamente atrelado às decisões do Tesouro e do Banco Central americanos, sem com isso adquirir qualquer direito ou possibilidade de influenciá-las. Provoca, além disso, perda de competitividade internacional e, portanto, dependência de financiamentos externos obtidos muitas vezes em condições adversas de prazo e custo. Aumenta, por isso, o risco de crises de balanço de pagamentos, que colocam o país à mercê de interesses e pressões estrangeiras. Aumenta também a vulnerabilidade das instituições financeiras nacionais, que passam a operar sem emprestador de última instância, e produz uma tendência à desnacionalização do sistema financeiro do país. O pior é que medidas de dolarização constituem um caminho sem volta, posto que resultam na cristalização de práticas financeiras de muito difícil reversão, como revela a experiência de vários países latino-americanos, que tomaram esse rumo no passado recente.

Com todos esses inconvenientes, a dolarização deveria ser considerada um último recurso, a ser adotado apenas depois de esgotadas todas as possibilidades de solução interna. Pode ser que essa fosse a situação de alguns países vizinhos que foram conduzidos a se comprometer, em maior ou menor grau, com diferentes modalidades de dolarização. Mas parece difícil acreditar que o Brasil já tenha chegado a esse ponto. Uma economia de complexidade e dimensão da brasileira tem condições de encontrar dentro de si mesma os recursos e a energia necessários para escapar do atoleiro inflacionário e retomar o desenvolvimento.

* Economista e professor da FGV de São Paulo, foi membro da equipe do ministro Dilson Funaro. Este trabalho foi apresentado em 17 de março de 1994 no seminário “Rumos da Modernidade”, organizado pelo Instituto de Pesquisa e Análise Social (IPAS), com apoio da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Trata-se de uma versão resumida do trabalho “Armadilha da Dolarização”, concluído em fevereiro de 1994.

Notas do autor

(1) Ver, por exemplo, Meltzer (1991), Rodriguez (1991) e LaL (1993).
(2) Ainda que (o currency board) seja inicialmente estabelecido como uma agência independente, criada pelo governo, é possível que, com o correr do tempo, seja convertida numa criatura do governo. (…) Se funcionar como seus defensores imaginam, ela não poderá ser modificada pelo Estado brasileiro. Uma solução óbvia é o FMI dirigir o currency board, mas dados os sentimentos nacionalistas, isso poderá ser aceitável? Provavelmente, se a crise hiperinflacionária – que é, no fim de contas, uma crise do Estado – não puder ser resolvida de outra forma. Este texto, de Deepak Lal (“Notes on Money, Debt and Alternative Monetary Regimes for Brazil”, p. 16), foi preparado por solicitação do Banco Mundial, mas vem acompanhado da ressalva padrão de que não representa posição oficial da instituição. A tradução é da redação de Princípios.
(3) CLAASEN, Emil Maria. “La dolarización de las economias en Argentina, Bolivia y Uruguai”, Políticas de Desarrollo, p. 7, Banco Interamericano de Desarrollo, set/1993. Notas da redação
* O Federal Reserve é o Banco Central dos Estados Unidos.
** M2, ou Moeda 2, é a abreviação usada na linguagem econômica para designar M1 mais títulos do governo (M1 é dinheiro em poder do público mais depósito à vista).
*** M3, ou Moeda 3, é a abreviação usada na linguagem econômica para designar M2 mais poupança.

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EDIÇÃO 33, MAI/JUN/JUL, 1994, PÁGINAS 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33