Gênero: conceito histórico
Durante muito tempo as mulheres foram relegadas às sombras da história. Entendia-se que ao se falar no ser humano, sempre grafado no masculino – o Homem –, elas estavam subscritas. Há, no entanto, registros de gestos e escritos feministas desde a Antiguidade. O registro mais antigo de denúncia da opressão feminina data de 624 a.C. É o da poetisa grega Safo, filha de uma família rica da ilha de Lesbos. Escreveu nove livros e criou um centro intelectual, a primeira escola para mulheres de que se tem notícias. Mas o movimento feminista, que começa a dar sinais de vida na Revolução Francesa, só ganhará corpo em meados do século XIX.
O advento do capitalismo possibilita o desenvolvimento de uma consciência coletiva da situação de inferioridade social das mulheres. A conquista do poder pela burguesia põe abaixo a hegemonia do cristianismo e a dominação da igreja católica. O trabalho produtivo desloca-se do interior das casas para o espaço público, desagregando a unidade de produção familiar. As mulheres são lançadas no mercado de trabalho e passam a ter vivência coletiva. A era das revoluções (os 60 anos históricos entre 1789 e 1848), que põe abaixo o ancien régime, causa a maior transformação social que o mundo conheceu desde a Antiguidade. A dupla revolução – a política francesa e a industrial inglesa – abre caminho para uma renascença nas ciências, na filosofia, na religião e nas artes. E cria as condições para que se redesenhe a participação ou a história da participação feminina na sociedade. Temos, pois, num mesmo contexto histórico, a luta pela consolidação do capitalismo e o aparecimento de lutas e organizações pelos direitos da mulher na França, Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha.
O processo revolucionário é contraditório e ambivalente do ponto de vista das relações de gênero. Apesar de participar ativamente, as mulheres não viram contempladas suas reivindicações na sociedade que se configurava. Olympe de Gouges precisou escrever sua Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne para denunciar que as mulheres estavam excluídas do projeto de cidadania da Revolução Francesa. A queda da Bastilha, segundo ela, deixou intacto o princípio do despotismo masculino. Enquanto quebravam as cadeias sociais e políticas de sua opressão, os homens, em vez de suprimir, reativaram a opressão do gênero. “Mulheres”, perguntava Olympe de Gouges, “o que vos resta? A convicção das injustiças do homem. A reclamação de vosso patrimônio, fundado sobre os sábios decretos da natureza”. Ao declinar no feminino a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, ela desmascara o universalismo, denunciando as exclusões e ambiguidades nele implícitas. Com lógica irrefutável, declara: “As mulheres têm o direito de subir ao patíbulo, devem ter igualmente o de subir à tribuna”. Ela própria subiu à guilhotina em 1794, acusada de pertencer ao movimento girondino (Sledziewsski, 1991). A emancipação feminina também é sistematizada e advogada por Mary Wollstonecraft em sua obra Defesa dos direitos da mulher, no qual critica o machismo do filósofo francês Rousseau e afirma que as mulheres devem lutar pelo direito à educação como forma de superar a situação de inferioridade em que vivem.
“Segundo Marx e Engels, a produção das idéias está ligada, em princípio, à produção material”.
Apesar das contradições e ambiguidades, que marcam as relações de gênero neste processo, as enormes transformações econômicas, sociais e políticas introduzidas pela modernidade criam condições propícias à emancipação feminina. A era democrática não é a priori favorável às mulheres (Fraisse, Perrot, 1991). Em seu princípio ela afirma ser necessário excluí-las da coisa pública, circunscrevê-las ao espaço doméstico. Mas, paradoxalmente, ao proclamar a igualdade de direitos, abrindo espaço a uma vida pública republicana, põe em xeque seu próprio enunciado exclusivista. A participação feminina no mercado de trabalho, uma necessidade do sistema capitalista, rompe de uma vez por todas o processo de confinamento das mulheres no domicílio. E embora o sistema capitalista em determinados momentos, e por razões específicas, tivesse tentado refrear esse processo, a sorte já estava lançada. As mulheres conquistam definitivamente um espaço público.
O nascimento do materialismo histórico também imprime considerável avanço no debate sobre a opressão feminina. Ao afirmar que a produção das idéias, das representações e da consciência está em princípio direta e intimamente legada à atividade material, Marx e Engels denunciam que, por meio da ideologia, “os homens e suas relações nos aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura”. Abrem assim caminho para que se inverta o processo e se examinem as bases reais da opressão.
A teoria marxista discute o papel da reprodução e da família, procura formular um projeto de emancipação das mulheres, e adota como um de seus princípios a igualdade de direitos entre os sexos. Ao analisar o surgimento e o desenvolvimento da economia, do parentesco e do Estado e dissecar a estrutura da sociedade capitalista. Marx e Engels desvendaram o processo histórico de opressão de classe e de gênero. E derrubaram os pilares da tese fatalista da base natural da opressão da mulher (Sorrentino, 1992).
Bila Sorj (1992) afirma que o marxismo tem sido sem dúvida o interlocutor privilegiado do pensamento feminista, embora, segundo ela, hajam diferenças que separam um e outro. A saber, o primado da produção em relação ao da reprodução, da esfera do mercado em relação à doméstica, do privado em relação ao público. Penso, no entanto, que não existe propriamente um primado da produção na teoria marxista. É verdade que o marxismo se debruça sobre o papel da produção, que considera determinante em última instância. Marx e Engels concentraram seus esforços na análise do mundo do trabalho, das relações de produção. Mas ambos, e sobretudo Engels, atribuíram ao gênero estatuto teórico, assim como o fizeram em relação às classes sociais (Safiotti, 1992). Referindo-se à Ideologia Alemã, que escreveu juntamente com Marx em 1846, Engels afirma: “Encontro estas linhas: ‘A primeira divisão do trabalho é aquela existente entre o homem e a mulher para a procriação’. E agora posso acrescentar: a primeira oposição de classe coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher no casamento conjugal e a primeira opressão de classe, com a opressão do sexo feminino pelo sexo masculino”. Obviamente, como destaca Safiotti (1992), não podemos pretender que há quase 150 anos se tivesse a mesma compreensão que hoje se alcançou da problemática de gênero. O importante a destacar é que ambos atribuem o mesmo peso teórico ao conceito de classe social e ao conceito de “opressão do sexo feminino pelo masculino” ou, como se diria hoje, relações de gênero.
Vale destacar que a interpretação mecanicista de muitos divulgadores e continuadores de Marx contribuiu para perpetuar a idéia do primado absoluto da produção de sua teoria. Mesmo autores sérios, do porte de Simone de Beauvoir, além de algumas autoras e correntes feministas mais recentes, incorrem nesse equívoco. Em O segundo Sexo Simone critica o que chama de “monismo econômico de Engels”, ao afirmar que ele tentou reduzir a oposição dos sexos a um conflito de classes.
Já mostramos que, na verdade, embora tenham de fato dedicado o grosso de sua obra ao estudo das relações de produção, Marx e Engels foram os primeiros a destacar que a reprodução dos indivíduos, a manutenção de suas vidas e as relações familiares também são relações estruturais, tão decisivas quanto as ligadas à produção, apenas menos dinâmicas. Como afirma Marx, em A ideologia Alemã,
“Esses três aspectos da atividade social (produção, satisfação das necessidades e reprodução/família) não devem ser considerados como três fases distintas, senão intimamente ligados, com três aspectos que vêm existindo desde o princípio da história e desde o primeiro homem e que, sem dúvida, ainda hoje seguem regendo a história (…) O móvel essencial e decisivo ao qual obedece a humanidade na história é a produção e a reprodução da vida imediata, e, por sua vez, estas são de duas classes: a produção dos meios de existir, de tudo o que serve de alimento, vestuário, domicílio e utensílios; e, por outro lado, a produção do homem mesmo – a continuação da espécie”.
“A concepção socialista de Marx e Engels imprime impulso prático ao movimento de emancipação feminina”.
Em 1889 Bebel escreveu uma obra clássica do marxismo, A mulher e o socialismo, defendendo que a tarefa histórica da classe operária está indissoluvelmente ligada à tarefa de libertação da mulher”.
A concepção socialista de Marx e Engels também imprimirá considerável impulso prático ao movimento de emancipação feminina. Com a revolução socialista de outubro de 1917, na Rússia, pela primeira vez na história da humanidade um Estado assumirá programaticamente a defesa dos direitos das mulheres. Podemos afirmar que, enquanto os socialistas articulavam o arcabouço teórico da libertação das classes oprimidas e desenvolviam o projeto de uma sociedade nova do ponto de vista de classe e de gênero, o movimento feminista nos demais países buscava a cidadania nos marcos da sociedade existente (Oliveira, 1993). Após a vitória da revolução soviética e a conquista do direito de voto em boa parte dos Estados ocidentais, as organizações feministas de cunho burguês definharam, embora a ONU tenha criado instrumentos legais importantes de defesa dos direitos femininos, como a Organização Jurídica e Social da Mulher (1946) e a Convenção sobre os Direitos Políticos das Mulheres (1952).
A reflexão feminista só voltará a recuperar fôlego após a Segunda Guerra Mundial, que cria um clima propício de combate à discriminação de raça e sexo. O direito de voto feminino se estende aos países que ainda não o haviam conquistado. Para muitos encerrava-se o capítulo das reivindicações femininas procedentes do século passado. No entanto, nessa mesma época, Simone de Beauvoir publicava o livro que mostraria ao mundo que as reivindicações feministas, propriamente ditas, apenas se iniciavam (Gomáriz, 1992).
O movimento feminista enquanto tal só volta a se rearticular na década de 1960, provavelmente por influência da onda revolucionária que percorre a Europa, a China, a América Latina e os Estados Unidos, com os grandes movimentos estudantis, e a contestação dos costumes. Betty Friedan publica sua Mística da feminilidade, advogando o papel do trabalho criador para que a mulher, assim como o homem, possa encontrar-se e reconhecer-se como ser humano. Existe uma “redescoberta” da família, que começa a merecer atenção especial da sociologia e da antropologia. Margareth Mead confirma, com a publicação de Sex and Temperament in Tree Primitive Societies, o peso da cultura para determinar não apenas os papéis sexuais, mas também suas condutas e comportamentos externos. A história da família e das mulheres começa a ser estudada de forma interdisciplinar na Universidade.
Na década de 1970 os estudos sobre a família passam a se subdividir em abordagens mais específicas, como mulheres, crianças, sexualidade, herança, patrimônio etc. Surgem nas universidades departamentos e núcleos de estudo da chamada condição feminina. E a partir daí torna-se necessário um aprofundamento conceitual no tratamento destas questões. Surge então a formulação do conceito de gênero, que parece ter-se iniciado com pesquisadores de língua inglesa, como Gayle Rubin e Joan Scott. No Brasil essa nova conceituação é abraçada pela comunidade acadêmica no mesmo período.
Trata-se, como afirmam Michelle Perrot e Georges Duby, de “recusar a idéia de que as mulheres seriam em si mesmas um objeto de história. É seu lugar, sua 'condição', suas formas de ação, seu silêncio e sua fala que desejamos perscrutar, a diversidade de suas representações – deusa, Madona, feiticeira – que desejamos apreender em sua permanência e em suas mudanças. História decididamente relacional, que interroga a sociedade inteira e que é, da mesma forma, história dos homens”.
Parafraseando Marx, Gayle Rubin pergunta em seu famoso texto “O tráfico de mulheres: notas sobre 'a economia política do sexo'”: O que é uma mulher domesticada? Uma fêmea da espécie. Uma explicação é tão boa como outra. Uma mulher é uma mulher. Só se transforma em doméstica, esposa, mercadoria, coelhinha da Playboy, prostituta em determinadas relações (o grifo é nosso). Recusa-se, pois, o determinismo biológico para o destino dos sexos. Trata-se de desvendar as relações sociais que transformam a fêmea da espécie em mulher oprimida.
“O conceito de gênero suscita revisões teóricas. Alguns preferem “relações sociais de sexo”.
A utilização do conceito de gênero tem contribuído para um melhor entendimento da opressão da mulher e do conjunto das relações sociais. Na medida em que expressa, de forma mais clara, a superação da fase de simples constatação da opressão da mulher e nos remete para a idéia de relações opressoras de sexo/gênero, é possível evidenciar que, além de exploração entre as classes sociais, existe uma divisão sexual, também desigual. Isso permite avançar na compreensão de como se relacionam e se influenciam essas duas categorias, qual o seu vínculo com a produção e a base material da sociedade e como se dá a dinâmica das transformações sociais no sentido da superação.
Mas o conceito de gênero, embora largamente difundido e aceito, tem suscitado discussões, revisões teóricas, interrogações e questionamentos. Vale ressaltar, por exemplo, que os estudiosos franceses do assunto, como Nicole Claude Mathieu e outros, recusam-se a usar o termo gênero. Preferem empregar a expressão “relações sociais de sexo”. Uma ordem de problemas na construção de gênero como categoria analítica refere-se ao entendimento das causas da opressão feminina. Como alerta Elizabeth Lobo (1989), a busca das causas se confundiu frequentemente na armadilha das origens da dominação. Viria ela da necessidade de controlar a sexualidade ou a força de trabalho feminino? Tais abordagens geraram eixos de reflexão, seja através da formulação da teoria do patriarcado, seja através da corrente marxista, que privilegia a divisão sexual do trabalho. Os temas permitiram constituir um saber extenso sobre a situação da mulher na sociedade, sobre as formas concretas e históricas da condição feminina. Mas, como ressalta Elizabeth Lobo, “a interrogação inicial sobre a origem da opressão conduzia muitas vezes a uma desistoriação das questões, reduzidas à pergunta originária da causa da opressão, o que fazia das formas da subordinação feminina meras aparências, portadoras de uma causa essencial”. Os impasses dessas análises tiveram como fruto o deslocamento do eixo de reflexão nas pesquisas feministas, que passam a concentrar-se nos significados das representações do feminino e do masculino, nas construções culturais e históricas das relações de gênero (Lobo, 1989).
Outra questão pertinente refere-se à relação entre gênero e outras categorias analíticas, como as classes, por exemplo. Existem diversas vertentes que tentam dar conta do problema. Há correntes que consideram a opressão de gênero primordial em relação a outras dimensões que definem um grupo social. Constroem uma teoria social em torno da posição das mulheres nas sociedades patriarcais. Essa postura, ressalta Sorj (1992), apresenta um problema: existe uma identidade coletiva da mulher que perpassa diferentes culturas, comunidades, sociedades? E acrescento: que perpassa classes sociais, raças/etnias?
“Um dos desafios dos estudiosos é situar a opressão da mulher em relação à base material”.
Mais uma vez estamos em terreno inóspito. É inegável que mulheres, todas as mulheres ou as mulheres em seu conjunto, apresentam uma situação de subalternidade na sociedade. Basta analisar, por exemplo, os dados sobre a feminilização da pobreza, sobre a concentração de renda etc. Veremos por exemplo que, no mundo, elas realizam 60% das horas de trabalho, mas só detêm 10% da renda e possuem apenas 1% da propriedade, segundo dados da insuspeita Organização das Nações Unidas.
No entanto, valeria aprofundar a questão e desvendar: entre as mulheres, qual a porcentagem da concentração da renda e propriedade? Qual a porcentagem de negras e brancas? E teremos sem dúvida farto material para reflexão.
Neste sentido, parecem promissores os trabalhos de pensadoras como Heleieth Safiotti e Mary Castro, que propõem uma rearticulação na abordagem das relações de classe, gênero e raça/etnia, como tramas do tecido social, buscando aprofundar as formas e processos que concretizam esta inter-relação. Como afirma Safiotti (1992): “A construção do gênero pode, pois, ser compreendida como um processo infinito de modelagem-conquista dos seres humanos, que tem lugar na trama de relações sociais entre mulheres, entre homens e entre mulheres e homens. Também as classes sociais se formam em, e através das, relações sociais. Pensar esses agrupamentos humanos como estruturalmente dados, quando a estrutura consiste apenas numa possibilidade, significa congelá-los, retirando de cena a personagem central da histeria, ou seja, as relações sociais. O resgate de uma ontologia relacional deve ser, portanto, parte integrante de uma maneira feminista de fazer ciência”.
Se, por um lado, a categoria “relações de gênero” permite situar a opressão da mulher de forma mais precisa e calcada no conjunto das relações sociais, por outro, seu entendimento em relação à luta de classes e às estruturas econômicas e políticas ganhou novas tonalidades que, de certa forma, confundem e dificultam as demarcações de campo.
Um dos desafios dos(as) estudiosos(as) e militantes da causa da emancipação feminina é situar a opressão da mulher em relação à sua base material e estabelecer os nexos entre produção e reprodução, classe e gênero. Surgem teses que ora negam o marxismo como teoria que lançou as bases para o entendimento da questão de gênero, ora aplicam mecanicamente leis e categorias do processo produtivo à reprodução e às relações de gênero.
Feministas identificadas como radicais apresentam o feminismo como terceira via para o avanço da humanidade. Negam a produção como elemento mais dinâmico e determinante das relações sociais, atribuindo esse papel às relações de gênero. Essa é a concepção, por exemplo, do chamado eco-feminismo, para o qual o patriarcado tem papel mais decisivo que as classes dominantes na definição e no comando das estruturas de poder e na ideologia.
Não se pode negar que ainda hoje o patriarcado de fato influencia e determina muitas matrizes de dominação. Mas também é inegável que ele perdeu seu papel histórico ao ser superado, juntamente com a estrutura familiar (antes determinante da vida econômica e social), pelo surgimento das classes, que passam a deter o poder e a propriedade. A família e o patriarcado passam progressivamente a ter sua dinâmica e funções sociais submetidas ao novo agente do processo social – a luta de classes.
Atribuir ao patriarcado a importância que ele já não tem significa ignorar os verdadeiros pilares de sustentação da exploração e da opressão – a burguesia e a ideologia. Os defensores dessa linha de pensamento afirmam que Marx estudou apenas o mundo do trabalho industrial por ser este um mundo masculino e deu prioridade a categorias e leis que explicam apenas um certo tipo de fenômeno – aqueles vividos pela classe operária. Segundo eles, o trabalho doméstico, a reprodução e a família não cabem em O Capital porque Marx, como todo machista, ignorava tais questões.
“Ligar gênero à classe social não significa encerrar a questão da mulher”.
Sem medo de errar podemos afirmar que, se alguém ignora alguma coisa, são esses pensadores que criticam Marx sem conhecer Marx. Como já afirmamos neste trabalho, nenhum outro cientista deu tão importantes contribuições ao entendimento da questão de gênero quanto ele, juntamente com Engels.
A começar pelo desafio que ele lançou, e que permanece atual, de buscarmos na base material e na produção as origens da consciência de mulheres e homens, inclusive sua consciência sobre a definição dos papéis sexuais.
Ligar gênero a classe social não significa, contudo, encerrar a questão da mulher dentro da questão de
classes e das relações de produção. As relações de gênero pertencem a outra esfera da estrutura social; embora determinadas em última instância pelas relações de produção, não estão contidas nestas.
Essa inter-relação entre classe e gênero não é meramente cultural ou ideológica. Os papéis sexuais masculinos e femininos são construídos a partir de diferenciações biológicas objetivas, ligadas à base material das diversas sociedades, uma vez que dizem respeito à reprodução e à família ou às relações parentais. A reprodução da espécie concretiza-se no corpo da mulher embora já existam, hoje, tentativas concretas no sentido de mudar esse acontecimento biológico, como o uso do útero de mulheres com morte cerebral ou o útero de animais para o desenvolvimento do embrião humano.
Apesar dessas experiências o fato é que as mulheres serão ainda por muitas gerações as detentoras dessa capacidade única e, portanto, alvo das preocupações dos que se interessam em regular a perpetuação da espécie e o tamanho do exército de reserva.
O mesmo não ocorre com outro problema ligado à reprodução, que é a determinação da descendência e, portanto, da herança. Neste caso, a ciência já avançou a ponto de dirimir essa dúvida secular – quem é o pai? A paternidade, hoje, pode ser comprovada por meio de técnicas simples e acessíveis.
Mas, em que pese essa mistura de ficção e realidade envolvendo a reprodução e as relações parentais e as especulações possíveis sobre quais serão as relações e os papéis sexuais que corresponderão a esses novos avanços, sua ligação com a vida material de homens e mulheres é evidente. E isso no que diz respeito tanto ao tamanho das populações quanto ao cuidado com crianças, idosos e doentes e a constituição de laços familiares – enfim, no que diz respeito à organização social em seus múltiplos aspectos.
Independente dos problemas conceituais que encerre, gênero impõe-se hoje como categoria de análise, a exemplo das classes sociais. Assim como a chamada “questão feminina” tem que ser estudada do ponto de vista de classe, deve-se considerar que a classe social também tem sexo, é perpassada pelas relações de gênero. Cabe aos marxistas incorporar e desenvolver este conceitual de modo que represente um passo adiante na compreensão da realidade social.
* Jornalista, membro da Comissão Nacional Sobre a Questão da Mulher do PCdoB e diretora da União Brasileira de Mulheres.
** Médica, coordenadora da Comissão e editora da revista Presença da Mulher.
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EDIÇÃO 33, MAI/JUN/JUL, 1994, PÁGINAS 47, 48, 49, 50, 51