Socialismo reformista ou revolucionário?
1- A gênese do sistema partidário trabalhista: da subordinação ao Estado e da luta contra a tutela do Estado
É a partir da segunda metade do século XIX que proliferam os movimentos sociais modernos, de caráter socialista e sentido coletivista ou individualista. Alguns deles se apagam com o tempo, outros amadurecem e tomam forma definitiva.
O período áureo da formação ideológica e partidária de matiz socialista se dá a partir dos anos 1870 e começo de 1880. Este é o momento em que há a consolidação de várias de suas correntes, além da presença dos diversos grupos anarquistas, das muitas correntes sindicais etc. No entanto, muitos deles sofrem variações e trajetórias distintas, o que nos obriga a avaliá-los separadamente. Um elemento primário, porém, se apresenta como leitmotiv: é a ação do proletariado, que pretende “evitar pelo socialismo a servidão industrial que o ameaça. E nem doutro modo podia ser! A história ensina-nos que é sempre a classe que mais deve beneficiar-se duma nova ordem social aquela que para isso concorre como principal fator. Da mesma maneira que a Revolução Francesa foi a consagração e a obra quase exclusiva da burguesia esclarecida, assim a transformação econômica que se prepara será, sobretudo, a obra do proletariado, consciente dos seus interesses de classe” (1).
A avaliação das diversas formas de organização e das suas respectivas ideologias permite-nos verificar, de maneira breve, que existe distinção clara entre as fases de 1880-1914 e aquela outra, de 1917 em diante. A última está ligada à ascensão do bolchevismo e à vitória da revolução na Rússia, com a consequente radicalização política e mudança de estratégia por boa parte do proletariado mundial. Agora se afirma nítida a separação entre revolucionários e reformistas: os que pensam em conciliação de classes e os que falam em luta de classes. Os últimos são os que, após a Primeira Guerra Mundial, dinamizam a ação proletária com o seu centralismo partidário, o seu acento marxista, fatores que ilustram o progresso do movimento trabalhista.
A fase que se inicia na década de 1870 – fulcro do nosso trabalho – expressa, em primeiro plano, a luta operária contra a opressão governamental na França e na Alemanha, centros irradiadores do socialismo na época. No primeiro, os acontecimentos da Comuna de Paris (1871) comprovam tragicamente como a burguesia francesa age para se impor na sociedade (2) e na Alemanha temos a adoção da lei restritiva, a Kulturkampf, que atinge indistintamente os socialistas e os católicos. Apesar disso, as camadas operárias reagem, organizando-se clandestinamente nos seus respectivos países, ao mesmo tempo em que parte de suas lideranças permanece no exterior, esperando o possível retorno. É desta maneira que Paul Lafargue, Jules Guesde, Lissagaray, entre os gauleses, e W. Liebnecht, A. Babel, K. Kautsky, E. Bernstein, Volmar, entre os alemães, são alguns dos exilados que viveram em Londres e usufruíram da companhia e das críticas de Marx e Engels.
“Para Lassale, Estado poderia trilhar um caminho adequado por meio do sufrágio universal”.
No entanto, aos primeiros sinais de uma nova crise social, entre os anos 50 e 70 do século passado, o Estado burguês tenta direcionar o movimento operário, coagindo-o a aceitar novas diretrizes organizatórias e ideológicas. É o que se dá na França, em 1848, quando, por iniciativa governamental, são criados os Ateliês Nacionais. Como diz Marx, “o Ateliê significava unicamente que se empregavam os operários em serviços de terraplenagem monótonos e improdutivos, por um salário diário de 23 sous” mais de 100.000 operários desempregados pela revolução e a crise no comércio e na indústria participam deste processo, que termina pela repressão física aos trabalhadores, com inúmeras mortes (3). Outro momento é quando Lassale, um dos responsáveis pela primeira organização operária alemã, aproxima-se de Bismarck, pretendendo, ao contrário de seu amigo Marx, estar “com a burguesia contra o Estado prussiano”, e “disposto a pôr-se ao lado do Estado prussiano contra a burguesia”.
Tirando conclusões diferentes das expostas por Marx e Engels, Lassale insiste na insuficiência da “cooperação voluntária para melhorar a situação dos trabalhadores sob o capitalismo”, mesmo quando ele participa de seu sindicato ou cooperativa: o fundamental é pôr fim ao Estado burguês, ao sistema capitalista. Para ele, o sufrágio universal é um instrumento que permite ao operário transformar, pelo voto, o próprio Estado, que se tornaria, assim, “instrumento para seus fins”. O Estado, para Lassale, é “uma instituição de classe, senão um instrumento para expressar adequadamente a vontade de todo o povo”, e que, tendo-se desviado do seu fim, ainda poderia retornar ao “caminho adequado por meio do sufrágio universal”. Defendendo essa tese, Lassale liga-se a Bismarck, tornando-se o seu partido um instrumento conservador e preso ao mecanismo do Estado prussiano (4).
A tentativa de identificar o socialismo ao Estado é combatida por várias correntes de esquerda. Jaurès resume claramente a diferença entre elas. Ao responder ao economista francês Léon Say, ele afirma que Lassale confunde o socialismo de Estado, que respeita a propriedade capitalista e que tempera unicamente os seus efeitos por uma regulamentação toda exterior, com o socialismo coletivista ou comunista, que deseja transformar a propriedade capitalista em propriedade social. “Ele não desconfiava que, longe de sermos socialistas de Estado, nós tendemos à supressão do Estado, isto é, da força constrangente, que dá à exploração dos não possuidores uma forma jurídica”. Quando a “comunidade tiver sido verdadeiramente organizada, quando não houver mais na humanidade reconciliada antagonismo de classes, o próprio Estado desaparecerá” (5).
2- Surgimento de partidos operários de tendências evolucionista e marxista, após 1870: indefinições ideológicas e tentativas de superação dos esquemas ideológicos mais simplistas
No entanto, a maior parte das correntes operárias aceita lutar contra o Estado e não se subordinar a ele. Elas se agrupam entre os socialistas de vários matizes, entre os anarquistas, entre os sindicalistas etc. O ascenso dessas correntes é beneficiado pelas inúmeras crises que se manifestam na própria classe dominante – queda de Napoleão III, saída de Bismarck da Chancelaria alemã, guerra da Criméia – e com a nova reação operária, que dá os primeiros sinais a partir de 1876. Neste ano reúne-se em Paris o I Congresso Operário, cujos membros, dominantemente sindicalistas, afirmam que “se deve, a todo preço, evitar que políticos, homens que defendem teorias, viessem a desviar os espíritos, dirigi-los e servir-se do Congresso como um apoio para as operações eleitorais e políticas” (6). A partir desta data, os Congressos trabalhistas voltam a se reunir anualmente, os sindicatos progressivamente ampliam seus objetivos e, em muitos casos, muitos deles se filiam a partidos ou são fundados por elementos partidários. A dinâmica organizatória, afinal, será beneficiada ainda mais quando, em 1884, na França, uma nova lei sindical dá autonomia às associações, permitindo que qualquer sindicato possa ser fundado independentemente de autorização oficial.
“Qual a linha dos que se dizem a favor do socialismo: reforma ou revolução?”
Movimento sindical e movimento partidário caminham juntos; em alguns países o primeiro antecede o outro, outras vezes é o contrário. De qualquer maneira, o tempo comprova a maior importância do partido. “Na sua forma e seu funcionamento, o partido depende de um terreno, produto da história, determinado pelo nível cultural e pelas tradições políticas da classe operária, como aqueles do país considerado; pela relação de forças sobre o plano social e pelas formas anteriores de organização do movimento operário, pela legislação que determina o campo da legalidade e da ilegalidade; é preciso ajuntar a isso o peso das estruturas e o da organização, cujo papel pode se tornar esclerosante e se transformar em um fetichismo do partido. Ao submeter à sua crítica penetrante o papel das estruturas econômicas e sociais, o marxismo não poderia excluir a crítica das estruturas políticas – compreendidas as que a classe operária utilizou nas suas necessidades de luta” (7).
Os partidos da classe operária, que surgem a partir dos anos 70 e 80 do século passado – com exceção de um ou outro, anterior –, vão ter de superar as suas graves indefinições ideológicas. A questão da organização, dos objetivos, do sentido e do caminho para se atingir o comunismo aparecem nebulosos em muitos aspectos, até que algumas dessas correntes conseguem superar os entraves e definir melhor a linha estratégica e tática para se chegar à sociedade sem classes.
A trajetória é árdua e cheia de tropeços, tanto para os que iniciam o processo extemporaneamente (o caso do cartismo inglês, de 1832 a 1850), como para os que nascem posteriormente. Neste segundo momento, a I Internacional e Marx e Engels ocupam papel de relevo na orientação partidária ou no direcionamento dos diversos partidos socialistas e social-democratas que surgem na Alemanha, França, Áustria, Rússia, Itália etc.
O desenvolvimento de novos órgãos de classe é também resultado de esforço amplo para superar determinadas situações que persistem desde a formação dos fenômenos partidário e sindical. Uma delas é o problema com que se apresentam as forças trabalhadoras que estão passando por vários níveis de conscientização; outro é a ideologia, ou forma de expressão ideológica com que se apresentam; terceiro, como agem os grupos ou frações que compõem o partido e qual a importância deste antagonismo em sua formação; como consequência desses fatores e de outros, qual a política defendida pelos partidos? Afinal, como se apresenta a linha partidária dos que se dizem a favor da sociedade sem classes, isto é, do socialismo: a revolução ou a reforma?
“Votos de socialistas alemães vão de cem mil para quatro milhões no início deste século”.
O crescimento da força socialista na Europa é fruto, entre outras razões, da aliança entre grupos ou pequenas organizações partidárias espalhadas em cada país. Desta maneira, os partidos se beneficiam não só pelo aumento numérico de seus membros, como incorporam a si as diversas estruturas organizatórias existentes. O lado positivo é acompanhado de outros, não satisfatórios: o comum é serem bem mais frágeis os níveis de experiência dos militantes no interior, fator que se repete quando se trata da questão da consciência ideológica defendida por cada uma destas parcelas do operariado. Como diz um analista: “A maioria (dos militantes) é ignorante em matéria doutrinal, não pode discernir as divergências ideológicas e políticas que separam os irmãos inimigos. E, como o velho senso popular, que se exprime pelo ditado ‘a união faz a força’, eles se opõem às guerras intestinas, geradoras de incapacidade, com a fecunda unidade popular”. (8).
3- Formação partidária e os percalços ideológicos
No momento de mudança, quando começam a brotar novas questões – frutos da transformação histórica do capitalismo – os partidos não se contentam unicamente em ver aumentar seus contingentes partidários e de simpatizantes, pois vai se tornando premente a questão parlamentar, isto é, a participação do operariado no mecanismo legislativo. Em sentido amplo, o crescimento eleitoral das esquerdas aparece como fator básico para a prática programática de cada partido, marxista ou reformista. O aumento do poder partidário, entretanto, é acompanhado por afirmações ideológicas ambíguas, em muitos casos. No entanto, a política parlamentar de esquerda apresenta alguns aspectos positivos, e é fator que comprova – de maneira externa – o acerto das medidas táticas adotadas. Os alemães vêem crescer o seu número de votos, que é de 124.655 em 1871, com duas cadeiras; 2.107.076 em 1898, com 56 cadeiras; e 4.250.329 votos, com 110 cadeiras, em 1912. O mesmo se dá com os franceses que, na véspera da guerra de 1914, elegem 102 deputados. Com igual êxito, mas não na mesma proporção numérica, temos bons resultados em outros países, o que mostra a capacidade operária de incorporar novos valores à sua atuação.
Entre 1880 e 1900, o número de organizações que se confessam marxistas é grande. Temos o Partido Social-Democrata Alemão (1869), o PSD Austríaco, o PSD Sueco, o PSD Russo (1897), o Partido Socialista Belga, o Partido Socialista Francês, o Partido Socialista Italiano, o Partido Socialista Espanhol. Marx e Engels colaboram para a fundação de alguns deles. Entretanto, a teoria marxista é complexa e de difícil assimilação, exigindo grande domínio de conhecimento. Ainda mais, nesse fim de século, no momento em que se consolidam os partidos marxistas de massa, é escasso, no mercado, o número de escritos de Marx e Engels: parte está esgotada, outros poucos saindo em segunda edição, outros permanecem inéditos (9).
O limitado número de títulos ofertados ao público é fator negativo para o conhecimento do marxismo e razão de equívocos praticados por alguns teóricos da época. O fenômeno é notado por Antonio Labriola, ao comentar palavras de Engels: “Não é necessário estranhar que o materialismo histórico se encontre em formulação geral nos seus primeiros passos. E depreciando os que não fizeram mais que repeti-lo ou disfarçá-lo, e às vezes dando um tom burlesco, é necessário confessar que, no conjunto do que se escreveu de sério e correto sobre esse particular, não há ainda uma teoria que tenha saído do estado de primeira gestação. Ninguém ousaria compará-la ao darwinismo que em pouco menos de 40 anos, teve tal desenvolvimento intensivo e extensivo que, pela quantidade de material, pela multiplicidade da relação com outros estudos, pelas diversas correções metódicas e pela interminável crítica que foram feitas por partidários e adversários, teve já uma história gigantesca” (10).
Como diz um analista português, refletindo a tendência geral da época, os partidos que se dizem marxistas – na França e na Alemanha – representam a base científica do socialismo, isto é, voltam-se para a análise e interpretação do econômico; e outras correntes, denominadas conjuntamente de socialistas integralistas, são as que defendem a mudança feita sob incentivo moral (11).
“Os primeiros partidos operários são atingidos pelas discrepâncias ideológicas existentes”.
4- A composição partidária: fusão de tendências ideológicas
As discrepâncias ideológicas atingem, no entanto, boa parte do movimento operário, pertencente às correntes revolucionária ou reformista. Os exemplos da França e da Alemanha ilustram a composição esdrúxula que vai ser feita tanto pelos marxistas como pelos não marxistas. De 1876 a 1880 parte das lideranças da classe trabalhadora já se manifesta a favor de determinadas estratégias. Os partidos que surgem já se beneficiam da militância anterior:
a) O Partido Operário Francês, de 1882, tem à frente Paul Lafargue e Jules Guesde, ambos genros de Marx; sua estrutura e ação fazem que ele se torne “o primeiro partido francês de tipo moderno, com organizações locais e regionais, uma direção nacional, um programa nacional”; é o responsável pela difusão da teoria marxista na França.
b) O Comitê Revolucionário Central (1881) é de tendência blanquista. Depois que August Blanqui passa por inúmeras prisões, ele abandona a idéia de assalto ao poder sob a direção de uma elite de revolucionários profissionais, organizados em sociedade secreta, e passa a defender uma política radical, de total apoio a toda ação contra a burguesia. Seus discípulos se dividem entre os que pretendem continuar a política do mestre e os que desejam uma união com o Partido Operário Francês. Esta última corrente forma o Partido Socialista Revolucionário, aberto a quem deseja militar em seu seio. Seu líder é Edouard Vaillant.
c) A Federação dos Trabalhadores Socialistas (1882), dito broussistas (Paul Brousse). É o caso do PGF, que nasce durante a divergência surgida durante o Congresso Operário de Marselha (1879). São “partidários de uma estrutura descentralizada, que repousa na autonomia dos grupos”, essa é a razão de não defenderem o programa único, e sim um em cada região. Seu interesse é pela vida regional, pois a “questão municipal é mais da metade da questão social”, ou, em outras palavras, para combater o capitalismo, o Estado deve chegar ao ponto máximo de estatizar o serviço público” (12). Sua atenção se volta para a política reformista, a questão eleitoral, o federalismo e o movimento sindical, atitudes que fazem esta corrente assemelhar-se ao movimento trabalhista inglês.
d) O Partido Operário Socialista Revolucionário (alemanista), (1890). Fundado por tradição que remonta ao Manifesto dos Iguais (1796), ao Manifesto do Partido Comunista (1848) e à Associação Internacional dos Trabalhadores (1864) seus aderentes defendem a tradição da Comuna de Paris (1871) e o federalismo de Proudhon: o que fazem é valorizar algumas fórmulas revolucionárias de Babeuf e Marx, ao mesmo tempo em que se mostram reformistas e anarquistas. Defendem o espontaneísmo, o “espírito revolucionário e socialista do proletariado, o desprezo pelas ideologias”, acreditam no socialismo municipal e elaboram a teoria do “serviço público”; são antimilitaristas ferrenhos, antiparlamentaristas e acreditam que, feita a revolução, será criada “uma federação de comunas livres, em que cabe ao Estado unicamente o papel de “administrador das coisas”. Desta maneira camuflam o seu pendor anarquista.
e) Os socialistas independentes, com lideranças que não aceitam ficar ligadas a nenhuma das tendências anteriores. Entre suas fileiras encontram-se Jules Valles, com seu jornal O grito do povo; Lissagaray, com o jornal A Batalha; Benoit-Malon e a Revista Socialista.
A esta geração sucede outra, com Jaurèss, Millerand, Viviani, Briand. Seus conceitos ideológicos e a posição que tomam durante as diversas crises por que passa a França mostram seu caráter eclético e sua tendência voltada para o reformismo e não para posições revolucionárias.
As diversas posições doutrinárias levam seus membros a variadas estratégias e táticas e, em muitos momentos, a adotarem posições contraditórias. É o que acontece ao tratarem da questão partidária, da parlamentar, do problema do Primeiro de Maio, da política sindical (13).
“Os primeiros programas do partido alemão são duramente criticados por Marx e Engels”.
Não nos interessa mostrar a evolução de cada uma dessas agremiações e sim avaliar as diversas correntes que vão desembocar na formação do Partido Socialista Unificado, de 1905. O primeiro momento da unificação se dá em 1899, quando os guedistas e os vaillistas (isto é, o Partido Operário Francês) e a ala de Vaillant do Comitê Revolucionário Central se unem e formam o Partido Socialista da França. Em 1905, o PSF e as correntes independentes forma o Partido Socialista Unificado, seção francesa da Internacional Operária (SFIO).
O avanço organizacional faz com que cresça a influência marxista, o que em grande parte também se deve ao trabalho de Jules Guesde, Paul Lafargue e outros. No entanto, o progresso ainda não leva o marxismo a se tornar hegemônico entre as várias correntes ideológicas em terreno gaulês. O proudhonismo, o blanquismo, o utopismo etc. ainda povoam o seu pensamento trabalhista, com todo o preconceito pequeno-burguês.
Com algumas semelhanças na formação, mas diferente no resultado final, é o caso alemão. “A Alemanha é, na hora atual, o país da Europa em que a tendência natural da classe operária em reclamar melhorias econômicas tornou o desenvolvimento o mais considerável; e é sobretudo nela que essa tendência se precisou e se organizou num socialismo, isto é, num vasto movimento de reivindicações com chefes, hierarquia, disciplina e propaganda metódica” (14). O resultado apresentado é produto de esforço que se inicia em 1869, com o Congresso de Eisenach. Entretanto, alguns anos antes, em 1863, Ferdinand Lassale funda a Associação Geral dos operários Alemães, primeiro partido operário teutônico. O que pretende, como vimos antes, é ligar-se ao governo, isto é, a Bismarck e à Prússia. Contrários à intenção de Lassale, Auguste Bebel e W. Liebnecht fundam um pequeno núcleo político, de caráter marxista, em 1869: a Associação Geral dos operários Alemães. O evento se dá durante o Congresso de Eisenach. Em 1875, no Congresso de Gotha, a associação passa a se chamar de Partido Operário Social-Democrata; afinal, no Congresso de Erfurt (1891) a social-democracia alemã se afirma como marxista e deixa de lado os seus resquícios lassalianos, semeados nos seus programas anteriores.
Esta trajetória do PSDA não é pacífica e é acompanhada criticamente por Marx e Engels. Os dois fazem questão de grifar que não são responsáveis pelo Programa de Eisenach, pois “eu estou convencido, (ele) é condenável e desmoraliza o Partido”. Em 1875, enquanto se desenrola o Congresso de Gotha e os militantes marxistas aceitam incluir pontos de vista lassalianos no Programa de Eisenach, Marx e Engels castigam duramente os membros social-democratas: “do ponto de vista teórico, isto é, do que é decisivo para o programa, nosso partido não tem absolutamente nada a aprender dos lassalianos, o que se dá inversamente com eles. A primeira condição da fusão era que eles cessassem de ser sectários, isto é, lassalianos; em outros termos, que sua panacéia, a saber a ajuda do Estado, se não fosse pelo menos abandonada inteiramente por eles, pelo menos reconhecida como medida transitória e secundária, como uma possibilidade entre muitas outras” (15). É somente em 1891, com o Congresso de Erfurt e o novo Programa, que Engels se mostra mais satisfeito: “o projeto atual se distingue muito vantajosamente do antigo programa. Os numerosos restos de uma tradição envelhecida – seja especificamente lassalianas, seja socialista vulgar – são em grande parte eliminados; do ponto de vista teórico, o projeto se atém, no seu conjunto, ao terreno da ciência atual, e é possível discuti-lo neste terreno” (16).
5. Superação das divergências ideológicas; luta contra os anarquistas; conciliação entre corrente socialistas
Afinal, nesta fase, que desemboca na Primeira Guerra Mundial, o que é ser revolucionário ou ser reformista? Em primeiro lugar, constata-se que o antagonismo entre ambas as correntes só se acentua após a Revolução Russa de 1917. Antes, o vocábulo é usado para circunstâncias particulares, não como objetivação de fenômenos com características próprias, e sim como desabafo polêmico. O comum é limitar a acusação a determinados incidentes, especificamente ao caso de Bernstein, em 1899: em resumo, na sua crítica a Marx, Bernstein tenta provar que o aumento da pauperização não se dera na sociedade capitalista; em segundo lugar, a evolução do capitalismo não resultara na polarização da luta de classes; e, finalmente, as crises econômicas do capitalismo não se agravaram e a burguesia é capaz de superá-las. Antes, em 1891, temos outro incidente na social-democracia alemã: neste ano o deputado do partido, M. de Vollmar, de tendência católica, “defende a concepção de um socialismo reformista e não-revolucionário, esperando tudo do tempo e da revolução social progressiva: ele pedia que fossem feitas reformas parciais, realizáveis, não uma transformação utópica ou catastrófica da sociedade” (17).
“Com exceção do partido russo, a tolerância ideológica marca a esquerda européia”.
A existência de corrente divergente no seio do PSD alemão, denominada na época de “ala revisionista”, levanta polêmica aguda entre os teóricos marxistas. Na Alemanha temos a intervenção de Rosa Luxemburgo e a de Karl Kautsky; na Rússia, de Plekhanov e, em menor escala, Lênin. Também na França acontecem debates agudos, nos períodos anterior e posterior à formação do Partido Socialista Unificado (1905). O mais célebre é o que se dá entre Jules Guesde e Jean Jaurès, o primeiro acreditando em processo violento na passagem do capitalismo ao socialismo; o segundo, defendendo o processo pacífico. Outro incidente de repercussão maior é o caso Millerand, que provoca grande mal estar entre os socialistas, pois Millerand, ao entrar para o Ministério Waldec-Rousseau, vai ter como colega o general Gallifet, um dos responsáveis pelo massacre operário durante a Comuna de Paris.
Apesar da gravidade deste episódios, a tolerância é o traço marcante entre os correligionários:
Bernstein continua a ocupar papel de destaque na social-democracia alemã, Volmar permanece como membro do partido, Jaurès e Guesde mantêm-se nas respectivas posições. Temos um único caso que foge à tendência exposta acima: é o Partido Social Democrático Russo. Com a crise de 1903, durante o II Congresso do Partido, formando-se dos blocos: os mencheviques (minoria) e os bolcheviques (maioria). Com os anos, as duas alas nunca mais se unem. Talvez haja explicação para esse caso heterodoxo: na maior parte dos países europeus domina o regime democrático. Por essa razão, o programa, a tática e a estratégia dos partidos de esquerda acontecem de maneira mais espontânea, mais visível; enfim, não existe interesse em camuflar a natureza e a intencionalidade do partido. Na Rússia, dá-se o contrário: o regime autocrata e a perseguição constante à esquerda obrigam os seus membros a lutarem pela preservação dos partidos clandestinos, com direção e ação centralizadas. Daí a radicalização ser instrumento necessário para preservar a unidade e criar condições para a ação externa.
Se existe tolerância ideológica entre os companheiros do partido, o mesmo não acontece quando se trata de diferenças entre indivíduos com linhas doutrinárias antagônicas, especialmente a anarquista. As polêmicas entre Marx e Bakhunin, na I Internacional, e as polêmicas dos socialistas contra Malatesta, Kropotkin e outros, na II Internacional, comprovam a hostilidade, que termina sempre com a expulsão dos anarquistas.
6. Partidos e socialismo: análise de algumas correntes evolucionistas e revolucionárias
Entretanto, estes comportamentos não são suficientes para caracterizar o que se entende por partidos revolucionário e reformista. O comum é quase todos se auto-afirmarem revolucionários: são os marxistas que dominam os partidos social-democráticos, são os socialistas moderados que acham que a sociedade está a caminho do socialismo, são os anarquistas radicais que esperam uma greve geral para pôr fim à sociedade capitalista. Mas o fato de proclamarem os seus radicalismos não os torna automaticamente revolucionários. A história mostra que ser revolucionário não significa afirmar que o é, mas, em circunstâncias particulares, tomar posição a favor da revolução proletária. Os que se dizem evolucionistas – anarquistas de tendência kropotkiniana, socialistas moderados, socialistas de cátedra, socialistas utópicos – também não são consequentemente desfavoráveis à ação para a derrubada, pela força, da classe dominante. O que há é a ambição de se chegar a um fim determinado, mas, na hora da decisão, da participação no processo revolucionário que está amadurecendo, o recuo dos que se dizem a favor da revolução acaba levando-os a ficarem mais próximos das forças conservadoras e reacionárias e, naturalmente, ao lado da contra-revolução.
Entretanto, no conjunto dos movimentos que se apresentam no fim do século XIX e início do seguinte, temos a presença das duas tendências. De maneira esquemática, um dos teóricos da corrente evolucionista e reformista diz: “abstraindo, todavia, de algumas tendências particulares, sem importância, a divergência não existe senão sobre o seguinte ponto: os marxistas pensam que, na expectativa da revolução social, os proletários só têm de organizar-se para a conquista do poder político e não devem prender-se à solução das reformas parciais; os coletivistas, pelo contrário, não desdenham nenhuma reforma, considerando que todo sucesso parcial favorece a vitória final (18).
Em outro momento, Benoit-Malon define o problema da seguinte forma: a questão econômica é a pedra angular do socialismo, porém não se deve menosprezar outros fatores. Se a revolução é sinônimo de violência, também ela é conduzida “por ações lentas da evolução que fazem com que, em um momento, haja flagrante contradição entre os fatos e as leis, entre os usos e as instituições” (19).
A ligação diferenciada provocada pelo que se reivindica e a utilização de instrumento de ação – partido, revolução, espontaneísmo – são o traço que se observa em alguns movimentos operários europeus. O socialismo professoral ou de cátedra, o socialismo cooperativo, o socialismo do serviço público, o socialismo evolucionista são alguns exemplos das correntes que acreditam ser inevitável a conquista do regime socialista por meio da evolução pacífica do sistema capitalista.
Socialismo de cátedra é a corrente que se desenvolve, principalmente, na Alemanha e na Bélgica. Os expoentes são professores universitários, responsáveis pela difusão de pensamento socializante, com matiz de caráter ambíguo. O caso mais conhecido é o de Eugênio Dühring, não por sua obra e ação, mas por causa do livro de Engels: Anti-Dühring é resposta às esdrúxulas análises feitas pelo professor sobre o socialismo e o marxismo. Mas este socialismo edulcorado vai servir de instrumento para iludir operários, burgueses e até a Igreja. Segundo um dos seus promotores, “o socialismo propagou-se sob diversas formas e dum modo prodigioso: sob a forma da violência, apoderou-se do espírito de quase todos os operários industriais e penetrou já nas aldeias; sob uma forma científica, transformou a economia política pelo chamado socialismo de Estado e assentou arraiais nos gabinetes dos pastores da Igreja católica e ainda no dos ministros dos diversos cultos protestantes. Nova seiva de uma humanidade em via de transformação, ele vivifica todos os ramos do saber humano” (20). Na Bélgica temos outro exemplo desta tendência: desde cedo o movimento sindical é corrente importante neste país, ainda mais que é herança vinda das corporações da Idade Média. Os seus líderes se confundem, no começo, com os que estão a favor do movimento republicano e do democrático, mas, a partir de 1848, o organismo sindical torna-se mais presente. O resultado é que a “atividade do partido operário manifestou-se nos quatro ramos que o constituem: sindicatos profissionais, ligas políticas e de propaganda, cooperativas e mutualidades. Para evitar as consequências da dispersão, o partido adota medidas para contrabalançar o seu federalismo. Cesar de Paepe, Anseele, Emile de Laveleye, Guillaume de Greef, Emile Vandervelde são alguns dos responsáveis pela direção do Partido Socialista e pela criação dos seus vários mecanismos. Para De Paepe, “em matéria de propriedade, as palavras comunismo e individualismo exprimem dois extremos: um a propriedade comum ou social; outro, a propriedade individual; e não há nem haverá – os maiores utopistas, comunistas ou individualistas não puderam nunca supô-lo – uma sociedade em que não haja uma certa dose de comunismo, ainda que este não seja senão a propriedade das ruas, e uma certa dose de individualismo, ainda que não consista senão no pão que alimenta cada indivíduo” (21).
A fim de completar a ação das associações de ofícios, das câmaras sindicais, do centro de propaganda etc., o Partido Socialista Belga defende a idéia de que, para se chegar ao socialismo, para que haja um verdadeiro instrumento da sociedade comunitária, deve-se, em primeiro lugar, lutar para a socialização do serviço público. Como diz um discípulo desta corrente – o francês Paul Brouse, um dos chefes dos possibilistas –, cada ramo importante da atividade humana passa pelas seguintes fases: 1) a necessidade humana obriga o homem a produzir variedades de produtos e cada vez maior quantidade deles, o que leva à existência da concorrência; 2) num certo momento, em vez de continuar a se digladiar uns contra os outros, os concorrentes entram em acordo e se associam, e assim nascem novos mecanismos, os monopólios ou os sindicatos; 3) o crescimento do monopólio é grande, e suas consequências bastante graves, quando outra força superior é obrigada a intervir: o Estado. É ele que irá administrar a economia além de outras tarefas em benefício da comunidade, tornando todos os serviços públicos gratuitos. É o que se dá, por exemplo, com o exército que, de particular (senhor feudal), passa a pertencer ao Estado; com a educação, que de privada passa a ser gratuita. Assim temos três momentos de mudança na sociedade: com o tempo, o crescimento da economia provoca a concorrência entre os membros da comunidade; depois, a concorrência desaparece, os grupos se unem e surgem os monopólios, isto é, os sindicatos; finalmente, para evitar mal-estar, o poder público assume a direção e temos o monopólio do Estado, isto é, o máximo da estatização do Serviço Público (22).
“Bebel afirma que até o final do século XIX ocorreria a revolução social”.
A tese evolucionista é defendida por vários partidos, que, no entanto, apresentam entre si algumas variantes ideológicas. É o caso das posições de Benoit-Malon e de Jean Jaurès. Este último, um dos líderes do movimento operário francês, participa do Partido Socialista Unificado, em 1905, e é a favor da conquista do poder pelo proletariado, de maneira não violenta. Ao defender esta posição tática, ele descarta a tese marxista e a de Blanqui de que a conquista do poder, pelo proletariado, se dá pela força. Para ele, Marx se engana, pois o proletariado ainda não tem condições materiais para assumir o poder e não pensa em derrubar a burguesia, que está na fase, ainda, de realizar a sua própria revolução. Segundo Engels, a revolução exige tempo e conquistas graduais: que vão das leis sociais em benefício do proletariado até a instituição de regime mais aberto e democrático, como a República: “pode-se crer que a velha sociedade poderá transformar-se pacificamente em uma nova nos países em que a representação do povo concentra em si todos os poderes, em que pode fazer-se constitucionalmente o que se queira desde o momento em que se tem atrás de si a maioria do povo, nas repúblicas democráticas, como a da França, nas monarquias, como a da Inglaterra, onde a dinastia é impotente contra o povo. Porém, na Alemanha, onde o governo é quase todo-poderoso e onde o Reichstag e outros corpos representativos são destituídos de poder real, sustentar semelhante linguagem é aliar-se ao absolutismo” (23).
Por sua vez, para Jaurès, a história mostra que o proletariado está construindo e conquistando instrumental necessário para sua futura emancipação e hegemonia: 1) o operariado cresce e se identifica com o socialismo; 2) como consequência, intensifica-se a sua influência no “mecanismo político e econômico”, o que ajuda a classe trabalhadora a agir de maneira autônoma, criando sindicatos e trabalhos de cooperação, além de exigir o sufrágio universal, a ampliação de novos órgãos públicos e a instauração do Estado democrático (24).
A social-democracia alemã, o Partido Socialista Unificado (francês) e outras entidades esquerdistas – austríaca, russa etc. – defendem o pensamento de Marx e Engels. Para eles, o processo histórico é dialético; a luta de classes é expressão da contradição da sociedade; e a história demonstra que a classe explorada, para superar a sua situação, necessita derrubar a classe dominante; e que a luta de classes se dá em níveis diferentes, que vão da conquista de espaço na sociedade – organização de partidos de classe, formação de sindicatos, eleições para o Parlamento, conquista de leis sociais –, até a tomada do poder pelo proletariado e pelo seu partido. Esta tática é mais ou menos acentuada conforme o nível de desenvolvimento do país capitalista e a existência de correntes mais radicais e não radicais que se formam em determinado momento do processo capitalista.
7. Como será a revolução social, segundo algumas interpretações. O que é revolução segundo Marx e Lênin
As análises a respeito de como se daria a revolução social variam conforme a interpretação que a corrente social-democrata dá para cada caso específico. Em enquete de 1897, Bebel – considerado o líder oficial do partido –, responde que acredita que até o fim do século se daria a revolução. E ele estaria em condições de liderá-la, pois “nós temos um programa geral, unicamente não temos um programa detalhado. Nós receberemos dos acontecimentos os melhores conselhos (…) tudo dependerá do momento, da cultura geral do povo. (…) Uma guerra despertaria o espírito da nação (…) ela faria compreender que o coletivismo é a única solução (…)”. “A revolução social depende de complicações as mais variadas, econômicas e políticas, de tantos acontecimentos imprevistos, interiores ou exteriores, naturais ou acidentais. Sim, uma guerra européia, por exemplo, mudaria de repente a face dos acontecimentos, compreende? Em caso de guerra, os acidentes econômicos seriam tão consideráveis que a tarefa revolucionária tornar-se-ia muito fácil. (…) Veja, a navegação paralisada, o comércio morto, o camponês mobilizado para o exército, o trigo encarecido, não há trabalho porque a indústria está parada, todo o mundo arruinado! A Revolução é vitoriosa (…)” (25).
As posições sobre a concepção da sociedade e de seu processo de mudança, descritas anteriormente, nos mostra a variedade de interpretação existente. Entretanto, o estudo linear não é satisfatório para se verificar a diferença entre a corrente a favor da reforma e a corrente a favor da revolução, ainda mais porque há escasso uso destes conceitos no período anterior a 1914. Então voltamos a indagar: como seria possível a identificação entre ser radical e ser reformista? Alguns – muito poucos – se dizem reformistas. Só isso, também, é insuficiente para caracterizar o fenômeno.
Daí, em vez de voltar exclusivamente aos exemplos citados, seria bom analisar os conceitos marxistas de reforma e revolução para, então, compreender um pouco mais o sentido objetivo destes valores dentro da dinâmica do movimento operário.
“Em vez de lutar por salário justo é necessário lutar pela abolição do assalariado”.
Para o marxismo, a revolução é a ruptura de um sistema social e a sua substituição por outro. Neste processo são válidos os conceitos de sistematicidade e o de descontinuidade. No seu conjunto definicional, Marx demonstra (A questão judaica) que a “emancipação política é um grande progresso; ela não é, sem dúvida, a forma última da emancipação humana em geral, mas a forma última da emancipação humana no interior da ordem do mundo que existiu até agora”. Como consequência, não se deve se contentar com a emancipação de um ou outro setor, mas considerar a “ordem existente até então e que deve ser substituída”. Nas revoluções anteriores, o “modo de atividade não se transformava, unicamente havia outra distribuição desta atividade, uma nova repartição do trabalho entre outras pessoas; a revolução comunista, por sua vez, é dirigida contra o modo de atividade anterior, ela suprime o trabalho e abole a dominação de todas as classes abolindo as próprias classes”. Em outras palavras: as revoluções anteriores se contentaram em remover a exploração, o antagonismo de classes; a revolução comunista deve suprimir todo antagonismo, toda exploração. Daí a impossibilidade de compromisso entre operariado e burguesia. Estudando o resultado da derrota operária de 1848, Marx conclui que “a mais ínfima melhoria de sua situação (operária) permanece uma utopia no interior da República burguesa, utopia que se transforma em crime desde que o proletariado procura realizá-la. (…) Se a classe operária afrouxar o seu conflito com o capital, ela se privará certamente da possibilidade de realizar um ou outro movimento de maior importância. Ao mesmo tempo, fora da servidão geral que implica o regime do assalariado, os operários não devem exagerar o resultado final desta luta cotidiana. Eles não devem esquecer que lutam contra os efeitos e não contra as causas desses efeitos. (…) É preciso que compreendam que o regime atual, com todas as misérias com que sobrecarrega os operários, engendra ao mesmo tempo as condições materiais e as formas sociais necessárias para a transformação econômica da sociedade. Em vez da palavra de ordem conservadora: ‘Um salário justo por uma jornada de trabalho justa’, eles devem inscrever na sua bandeira a palavra de ordem revolucionária: ‘Abolição do assalariado’”.
É desta maneira que a tradição marxista concebe a questão reforma/revolução. Lênin, no entanto, complementa a análise. Para ele a reforma econômica faz parte da luta revolucionária, mas ela se limita por causa do antagonismo irredutível entre os interesses da burguesia e os do proletariado. “Uma reforma difere de uma revolução pelo fato de que a classe dos opressores permanece no poder e reprime a agitação dos oprimidos por meio de concessões, sem que seu poder seja destruído”.
Reforma, para Lênin, é um fenômeno dual: 1) de um lado, ela marca o recuo da classe dominante, obrigada a ceder alguma coisa; 2) de outro, ela não passa de uma mudança de lugar que se concede ao adversário, que tem importância mínima e que não põe absolutamente em perigo o seu poder. Por sua vez, sem luta de classe não há reforma: “Nenhuma reforma pode ser definitivamente conquistada, real e seriamente, se não for sustentada pelos métodos revolucionários das lutas de massas”. Inversamente, toda luta revolucionária produz necessariamente reformas: “as reformas são um produto acessório da luta revolucionária de classes”. É a partir desta ambivalência – luta revolucionária e reformas – que Lênin faz a crítica ao reformismo: os “revolucionários estiveram sempre à frente da luta pelas reformas”, é por isto que “não havia reformista”. O marxismo, para Lênin, apresenta justaposição entre os dois desvios: “os marxistas diferentemente dos anarquistas, reconhecem a luta pelas reformas, isto é, por determinadas melhorias da situação dos trabalhadores, deixando, como no passado, o poder nas mãos da classe dominante. Mas, ao mesmo tempo, os marxistas travam a luta mais enérgica contra os reformistas, que limitam direta e indiretamente as reformas às aspirações e à atividade da classe operária. O reformismo é uma farsa burguesa contra os assalariados” (26).
8. O que é ser revolucionário? O que é ser reformista?
Na verdade, a estratégia e a tática utilizadas pelos marxistas e não-marxistas é que nos permitem avaliar, esquematicamente, a atitude operária neste momento de crise, no início do século XX. Como consequência, a tendência seria a de considerar que cabe aos revolucionários papel de relevância no processo de radicalização contra a burguesia e, aos reformistas, posição apaziguadora no processo de luta de classes. Em tese, a conclusão é válida, porque os primeiros se mostram mais intransigentes e preconizam ação mais total contra a classe dominante, sem desdenhar nenhuma opção, como a da luta pelo Parlamentarismo, o incentivo à greve, a luta por leis sociais, a identificação ideológica entre sindicato e partido etc. Os reformistas, conforme a linha doutrinária, defendem algumas dessas premissas, sem no entanto adotá-las de maneira precipitada. Para definir melhor ou “delimitar suas fronteiras”, o Partido Socialista Francês não quer utilizar a força para pôr fim ao direito da propriedade, nem para deixar de lado “a segurança e o desenvolvimento do indivíduo”, e nem deseja “uma minoria em revolta, e sim uma maioria consciente”, da qual irá depender a “transformação social”.
Republicanos, os socialistas não pretendem depender da “idéia louca de fazer apelo ao prestígio ilusório de um pretendente ou da espada de um ditador para conseguir fazer triunfar a nossa doutrina”. “Nós apelamos ao sufrágio universal; pondo-o em prática, temos a ambição de libertar-nos econômica e politicamente” (27).
“Guerra e Revolução de 1917 obrigam proletariado a definir seu campo de luta”.
As posições extremas e tomada de posição quanto a episódios críticos surgidos na época – questão Dreyfus, guerra dos Boxers (1899), dos Boers ( 1899-1902) etc – também não levam, de forma automática, conservadores e revolucionários a tomarem, mecanicamente, a mesma posição. E na hora em que aparecem delineados os interesses e as posições ideológicas e partidárias mais amplas, o posicionamento dual ainda persiste. A resposta à questão básica – quem é revolucionário? quem é reformista? – vai depender em grande parte, objetiva e subjetivamente, da situação criada pelo conflito dentro do sistema capitalista: é somente a Primeira Guerra Mundial que obriga o movimento operário a se definir, para si próprio e, também, frente à burguesia.
A luta contra a guerra é preocupação constante entre o movimento operário. Desde o século XIX o perigo de um conflito armado é denunciado como resultado inevitável da expansão imperialista. Depois da conquista da maior parte dos continentes africano e asiático, os países industriais acabam por se confrontar entre si, em 1914: assim, a Primeira Guerra Mundial resulta na divisão dos países capitalistas, levando à formação de blocos, compostos pela França, Inglaterra e Rússia, de um lado, e Alemanha e Áustria-Hungria, de outro. Por sua vez, anarquistas, anarco-sindicalistas, socialistas moderados, socialistas radicais, todos eles se manifestam sobre a destruição provocada por um conflito armado, cuja vítima maior seria a própria classe operária. A I Internacional (1864-1872) denuncia, por exemplo, a conquista do México pela França, a Guerra entre a Prússia e Áustria, e entre Prússia e França. A II Internacional mostra os perigos dos acontecimentos de Agadir (1905), dos Bálcãs (1912) etc., e até dedica parte do Congresso de Stuttgart (1907) e a totalidade do Congresso de Bäle (1912) ao tema. Nestas e em outras horas, eles insistem para que se lute contra a guerra imperialista, usando de todos os recursos, até a sabotagem: “se uma guerra ameaça estalar, é um dever da classe operária nos países concernentes, é um dever para os seus representantes nos parlamentos com a ajuda no Bureau Internacional, força de ação e de coordenação, fazer todos os esforços para impedir a guerra por todos os meios que lhes pareçam os mais apropriados, e que variam, naturalmente, segundo a acuidade de classe e a situação política geral. No caso em que a guerra estoure, eles têm o dever de forçar o pronto cessar-fogo e de utilizar a crise econômica e política criada pela guerra para agitar as camadas populares as mais profundas e precipitar a queda da dominação capitalista” (28).
Em outras palavras: os socialistas têm o dever de lutar contra a guerra, de sabotá-la, de transformar a luta armada em luta de classe. Entretanto, ao contrário do que se espera de todo esse esforço, a guerra vai ter a adesão entusiasta da maior parte do movimento operário, com a adesão da social-democracia alemã, social-democracia austríaca, Partido Socialista Francês, Partido Socialista Italiano, mencheviques russos (fração Plekhanov da social-democracia-russa), o Partido Socialista Belga, anarquistas russos (da linha evolucionista de Kropotkin) etc. Todos eles, já no primeiro dia do conflito armado, aderem de arma e bagagens à respectiva classe dominante. O que torna mais grave o acontecimento é o fato de vários líderes desses partidos terem aceitado participar como membros dos Gabinetes de Salvação Nacional de seus respectivos países. Só uma minoria, indignada, acusa os que aderem de social-patriotas, traidores do movimento operário etc. Entre os que combatem a guerra está a totalidade dos bolcheviques (ala de Lênin), alguns anarco-sindicalistas franceses (Monattz), alguns socialistas franceses (Charles Rappoport), alguns social-democratas alemães (Franz Mehring, Rosa Luxemburgo, Karl Liebknech, Ed Bernstein) etc.
Entre os que aplaudem a mobilização patriótica está a elite do movimento operário de esquerda, isto é, os que se dizem marxistas, além de operários de outras tendências. Com a guerra os social-democratas e os socialistas, isto é, os que se dizem revolucionários, passam a se confundir com os reformistas, quando ambos tomam a mesma posição diante do conflito armado. Dessa maneira, em 1914, no momento de pôr à prova a sinceridade de seus valores ideológicos, os internacionalistas acabam por tomar posições semelhantes aos reformistas, isto é, passam de revolucionários e internacionalistas a patriotas e nacionalistas, justificando-se com argumentos esdrúxulos pela sua adesão à classe dominante de seu país.
Se, por um lado, a maior parte das lideranças da classe operária renega as suas convicções, por outro, uma minoria mostra-se coerente com seus ideais. Num jogo dialético, o vácuo formado no primeiro dia de conflito (1º-08-1914) repentinamente é preenchido por um novo elã revolucionário: são os bolcheviques que condenam a traição, é o punhado de radicais e de revolucionários de nacionalidades diversas que agita, é a reivindicação a favor de uma nova Internacional, pois a velha está falida. A resposta ao novo anseio surge com a Revolução Russa de 1917 – fevereiro e outubro – e, depois, em 1919, com a fundação da III Internacional. A partir de então, os termos revolucionário e reformista tomam sentido mais acentuado. Os antigos revolucionários da social-democracia alemã, os antigos revolucionários do Partido Socialista Francês etc. passam a ser os reformistas, como o eram os evolucionistas e os moderados de antigamente. E os partidos ligados à III Internacional, de tendência bolchevique e denominados mundialmente de “comunistas”, passam a representar os revolucionários.
Resumindo, entre 1870 e 1914, dominam, em parte, a incerteza ideológica e a imprecisão partidária. Neste contexto, os termos revolucionário e reformista ainda não tomam seu sentido atual, porque, no momento inicial do processo de formação partidária moderno e da formação de sua justificativa, o fato de ser verdadeiramente um ou outro não obriga nenhum deles a se renegar. Ser reformista e ser revolucionário ainda não é questão fundamental. É a guerra e a Revolução de 1917 que vão obrigar o proletariado e suas agremiações a se definirem e escolherem o seu campo de luta. Nessa hora, a aparente neutralidade já deixa de existir, a tomada de posição é inevitável.
Você é reformista ou revolucionário, camarada?
Novembro/dezembro de 1993, janeiro de 1994.
* Professor titular do Departamento de História da USP e autor de diversas obras sobre a história do movimento operário.
Notas
(1) MALON-BENOIT, “Prefácio” ao livro de LIMA, S. Magalhães. Socialismo na Europa, p. 8-9.
(2) Só em Paris, mais de 30.000 comunards são fuzilados.
(3) VERECQUE, Charles. Dictionnare du socialisme, vol. II, p. 26-27.
(4) COLE, G. H. D. História del pensamiento sociaista, vol. I, p. 75-89.
(5) HURET, Jules. Enquête sur la question sociale en Europe, p. I-II.
(6) BLUM, Léon. Les congrés ouvriérs et socialiste français, vol. I, p. 7-8.
(7) LABICA, Georges et alii. Dictionnaire critique du marxisme, p. 671.
(8) WILLARD, C. Socialisme et communisme fançais, p.76-77.
(9) A sagrada família, A miséria da filosofia (1847), Revolução e Contra-revolução na Alemanha (1852) e O 18 Brumário de Luis Bonaparte (1852) são alguns exemplos de livros esgotados, publicados em segunda edição muitos anos depois. Outros, inéditos, só aparecem após a criação do Instituto Marx-Engels de Moscou, em 1920: A ideologia Alemã (1845), A dialética da natureza (1887), Manuscritos econômico-filosófico. É para enfrentar esse impasses – dificuldade dos textos e ausência das obras – que Engels redige Anti-Dühring, A guerra dos camponeses na Alemanha, Socialismo utópico e socialismo científico, Ludwig Feuerbach, Fim da filosofia clássica alemã e muitos outros trabalhos.
(10) LABRIOLA, Antonio. Filosofia y socialismo, p.16-17.
(11) LIMA, Magalhães, ibidem.
(12) HURET, Jules, ibidem, p. 22.
(13) O resumo e as citações são de WILLARD, C. Socialisme et communisme français, p. 51-76. O leitor pode complementar a análise com os livros de Jules Huret, Léon Blum e Magalhães Lima citados neste artigo.
(14) BARDOUX et alii. Le socialisme à l’étranger, p. 45. A citação é tirada do artigo de Gaston Isambert, “Allemagne”.
(15) A primeira citação é de Marx e Engels, Critique des programmes de Gotha et Erfurt, p.43-44; a segunda, é da mesma obra, p. 13 e seguintes.
(16) Marx-Engels, Critique des programmes de Gotha et Erfurt, p. 78.
(17) BARDOUX et alii, ibidem, p. 48. LABICA, Dictionnaire du marxisme, p. 794-796.
(18) BRNOIT-MALON, in Magalhães Lima, ibidem, p. 14.
(19) HURET, Jules. Enquête sur la question sociale en Europa.
(20) A citação é do belga Emily de Laveleye, Le socialisme contemporain, in Magalhães Lima, ibidem, p. 14.
(21) LIMA, Magalhães, ibidem, p. 59.
(22) HURET, Jules, ibidem, p. 220-222
(23) “Carta de Engels a W. Liebnecht”, in JAURÉS, Jean. Estudios socialistas, p. 38.
(24) JAURÉS, Jean, ibidem, p. VII-VIII.
(25) HURET, Jules. Enquête sur la question sociale en Europa, p. 281-282.
(26) LABICA, G. Dictionnaire du marxisme, p. 768-771, para o pensamento de Marx-Engels e Lênin (Reforme-Revolucion).
(27) MILLERAND, A. Le Socialisme reformiste français, p. 23-24 e 31-32 (discurso de 30-05-1896).
(28) CARONE, Edgard. A II Internacional pelos seus congressos, p. 100.
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