A especificidade do pensamento humano consiste no seu caráter conceitual irredutivelmente ligado à linguagem, entendida como sistema de sinais. Como estágio superior de orientação no mundo, o pensamento mantém-se solidário aos estágios inferiores de que procede, tanto que os aparelhos que servem à relação com o meio são os mesmos para os homens e para os animais: os sentidos.

Se os animais não pensam, pelo menos em certa medida operam com meios análogos àqueles de que o homem dispõe para se orientar no mundo. Associando imagens e estabelecendo entre elas relações mais ou menos duráveis, os animais orientam-se no ambiente em que vivem, adaptam as suas reações aos estímulos externos e agem, em consequência, por vezes melhor e mais habilmente que o homem. Um filhote abandonado pode adotar naturalmente uma nova mãe e garantir a sua sobrevivência, o que seria impossível para um bebê; são comuns os casos de gatinhos criados por cachorros, patinhos, por galinhas etc.

Esse mecanismo de orientação – associação de imagens sensíveis por meio da experiência – não desaparece no homem, mas sofre uma modificação fundamental. O pensamento, como força humana de orientação no mundo, está unido à linguagem, pois sem sinais linguísticos os conceitos são irrealizáveis. Mas o pensamento contém também a etapa pré-verbal.

Nos processos de pensamento, a linguagem verbal não se manifesta sempre sob uma forma desenvolvida, em conformidade com as regras gramaticais. Certos saltos se produzem devido ao caráter sintético das operações mentais. Em Vidas Secas, Fabiano e os outros personagens de sua família “(…) iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de dominá-las” (p. 80).

Se o universo sensível se apresenta de modo contínuo, é a linguagem que vai recortá-lo e torná-lo compreensível. Esse universo sensível é registrado nas formas da língua, que retêm o seu sentido e lhe atribuem uma materialidade sonora (ou gráfica, no caso da escrita). A linguagem é o suporte material de um sistema de sinais e dos conteúdos semânticos desses sinais (sem os quais os sinais deixariam de ser uma linguagem). Portanto, a palavra não pode existir sem o pensamento.

Quando Fabiano repete as “palavras” que ouviu do Seu Tomás da bolandeira, ele percebe a inutilidade daquele esforço, pois não vai além da produção de sons articulados, que não chegam a ser palavras porque não veiculam um conteúdo. É nesse sentido que Fabiano se sente inútil. Como o papagaio, não consegue se apropriar da linguagem, não consegue se adequar ao mundo na condição de sujeito. E como pensar o mundo sem o aparato que coloca os homens em relação a si mesmos, aos outros homens e ao próprio mundo?

“A língua é uma forma de classificar o pensamento, possibilita a expressão dos sentimentos e a ação”.

A língua é mais que um instrumento de comunicar idéias, permite agir sobre os sentimentos dos outros e exprimir os próprios sentimentos. Cada língua é também uma maneira de classificar o que se pensa e o que se sente, e uma maneira de se referir ao que se pensa e ao que se sente – e é, indubitavelmente, condicionada pelo estado fisiológico do indivíduo, pela sua história, cultura, classe social, por tudo o que se passa no mundo exterior. Há também outro fator dominante: o modelo linguístico que a pessoa adquire como membro de uma sociedade, de um grupo. O homem não registra maquinalmente os acontecimentos do mundo. Ocorre um processo seletivo e uma interpretação desse ato de apreensão: certas características da situação exterior são valorizadas, outras ignoradas ou parcialmente distinguidas.

“Na apreensão dos fenômenos há um processo seletivo e uma interpretação”.

Cada comunidade linguística tem as suas categorias, nas quais os indivíduos podem agrupar as suas experiências. A linguagem estabelece essas categorias: tipos de objetos (nomes), tipos de processos (verbos), qualidades (adjetivos) e também, mais sutilmente, tipos de diferenciação ou de atividade, que são distinguidos pelas formas gramaticais. Uma sociedade na qual a caça é elemento fundamental de sobrevivência tenderá a distinguir elementos ligados a essa atividade e enriquecerá a categoria dos verbos com palavras que dêem conta desse tipo de ação.

Uma vez que os indivíduos são educados desde a infância para reagir diante do mundo de uma determinada maneira, consideram sua apreensão do real como dada e fazendo parte do vivido. Toda língua tem um efeito sobre o que vêem aqueles que a empregam, sobre o que sentem, sobre a maneira como pensam, sobre aquilo de que falam.

“A manhã sem pássaros, sem folhas e sem vento progredia num silêncio de morte. A faixa vermelha desaparecera, diluíra-se no azul que enchia o céu. Sinhá Vitória precisava falar. Se ficasse calada, seria como um pé de mandacaru, secando, morrendo. Queria enganar-se, gritar, dizer que era forte, e a quentura medonha, as árvores transformadas em garranchos, a imobilidade e o silêncio não valiam nada” (p. 150-151).

A experiência social fixada na língua impõe-se, de maneira indiscutível, sobre os membros da comunidade. Assim Fabiano, na incapacidade de compreender o mecanismo da linguagem, vê-se limitado na sua expressão. A língua afigura-se como uma entidade que Fabiano respeita, admira, mas sobre a qual não tem nenhum poder. Durante todo o desenrolar do romance, o personagem tenta convencer-se de que é um “bicho” (sujeito forte, senhor de si), embora se sinta como um “animal” (fraco, submetido, inferior). As palavras nesse contexto assumem um caráter mágico, quase sobrenatural, capazes de desencadear forças estranhas. Para Fabiano, mencionar a seca seria uma forma de atrair sobre sua cabeça e a dos seus essa desgraça tão temida: “Examinou o polvarinho e o chumbeiro, pensou na viagem, estremeceu. Tentou iludir-se, imaginou que ela não se realizaria se ele não a provocasse com idéias ruins” (p. 139).

Como criação de um grupo de indivíduos, a linguagem tem um caráter eminentemente social. É a língua que veicula a ideologia do grupo que a utiliza e é nela que se cristalizam as aspirações desse grupo.

Fabiano não conhece os recursos que a língua oferece, todavia os percebe nas relações que se estabelecem entre ele e os membros da comunidade urbana. O patrão atual, por exemplo, “berrava sem precisão” (p. 25). O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, e Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida?

Do soldado amarelo Fabiano recebe um tratamento que, no início, tem um tom de camaradagem: “Como é, camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro?” E logo depois do jogo: “Desafasta” (bradou a polícia). “Toca já pra frente” (berrou o cabo). Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu. “Está certo” (disse o cabo). “Faça lombo, paisano”.

O patrão grita, e diante dele Fabiano não reage: aceita os gritos como manifestação de poder, de dominação. O soldado amarelo tem outro comportamento: utiliza as palavras de modo amistoso para persuadir, depois dar ordens e, a seguir, ele as manipula para contar a sua versão da história. Durante esse episódio da prisão, Fabiano pensa sobre o ato de mentir, sobre sua incapacidade de enganar com palavras, pois não consegue criar uma desculpa capaz de justificar, perante Sinhá Vitória, o acontecido.

Evidencia-se que a língua se presta tanto à veiculação de verdades como de mentiras. Algumas vezes corresponde à objetividade dos fatos, outras ao encobrimento do real. É pois o uso abstrato da língua que foge à competência de Fabiano, e assim a verdade fica prejudicada pela incapacidade de argumentar contra o “inefável”, apesar do apoio que ele teria nos fatos concretos.

“Fabiano foi calado pelo discurso autoritário, pela mentira com poder de verdade”.

No episódio do patrão, são manipulados em prejuízo de Fabiano não apenas o linguístico, mas os elementos simbólicos em geral. Fabiano percebia que o patrão o roubava nos cálculos matemáticos e ainda tentava convencê-lo de que estava correto. Novamente a linguagem é utilizada para carregar a mentira e o esbulho. “No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de Sinhá Vitória, como de costume, diferiam das do patrão”. Reclamou e obteve a explicação habitual: “(…) a diferença era proveniente dos juros” (p. 118).

“Não se conformou, devia haver engano. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim, no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria!” (p. 118-119).

O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda.

“Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se havia dito palavra à toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens. Devia ser ignorância da mulher (…) Até estranhara as contas dela. Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditava na velha. Mas pediu desculpa e jurou não cair noutra” (p.118-119).

O esboço de defesa de Fabiano tem como resultado a intimidação e a ameaça do patrão. Fabiano desiste de defender-se, recua, pede desculpas, embora convencido de estar sendo enganado:
“(…) não podia dizer em voz alta que aquilo era um furto, mas era. Tomavam-lhe o gado quase de graça e ainda acrescentavam juro. Que juro! O que havia era safadeza – ladroeira. Nem lhe permitiam queixas. Porque reclamara, achara a coisa uma exorbitância, o branco se levantara furioso, com quatro pedras na mão. Por que tanto espalhafato?” (p. 119).

Fabiano procurou dialogar, mas foi calado pelo discurso autoritário, instaurador de uma mentira com força e poder de verdade. Sua verdade sem defesa transformou-se em engano. Nesse sentido, outro episódio parece significativo: o da venda do porco e o confronto de Fabiano com o cobrador da prefeitura. Como a língua constitui um problema fundamental para o personagem, ele não consegue lidar com as instituições que a linguagem legitima.

“Fabiano matou um porco que não queria engordar e foi vendê-lo na cidade. Mas o cobrador da prefeitura chegara com o recibo e atrapalhara-o. Fabiano fingia-se desentendido: não compreendia nada, era bruto. Como o outro lhe explicasse que, para vender o porco, devia pagar imposto, tentara convencê-lo de que ali não havia porco, havia quartos de porco, pedaços de carne. O agente se aborrecera, insultara-o, e Fabiano se encolhera. Bem, bem. Deus o livrasse de história com o governo. Julgava que podia dispor dos seus troços. Não entendia de imposto” (p. 119-120).
Fabiano também manifesta medo e admiração pelas palavras:

“Ouvira falar em juros e em prazos. Isto lhe dera uma impressão bastante penosa: sempre que os homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele saía logrado. Sobressaltava-se escutando-as. Evidentemente só serviam para encobrir ladroeiras. Mas eram bonitas” (p. 122).

No intercâmbio que tenta estabelecer com o grupo social urbano, Fabiano está sempre em posição de inferioridade, porque se defronta com instituições sociais, abstrações que não sabe bem para que servem, mas que estão sempre contra ele:

“Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta” (p. 96-97).
A estrutura agrária decadente, a não-propriedade da terra, a exploração social, a solidão e o baixo nível tecnológico de exploração da terra são responsáveis pela impotência de Fabiano, que é obrigado a transigir com as diversas condições que o mundo lhe impõe: não pôde comprar a cama; não pôde reagir à cobrança de impostos, manifestação imediata de um governo do qual não participa e que lhe parece um fetiche distante e exterior; não pôde se livrar da absurda prisão, daquela irrupção em sua vida de um ordenamento social que ele não tem condições de compreender, já que não contribuiu para criá-lo. Segundo Carlos Nelson Coutinho:

“(…) a sua solidão radical, a sua marginalização involuntária da comunidade humana, da integração com os semelhantes o tornam impotente e passivo, obrigado a aceitar, a capitular em face das regras de um jogo absurdo, regras que ele não discutiu, de cuja confecção não participou e cujos autores ignora”.

Durante todo o romance, o que se evidencia é o personagem buscando sua identidade. Nos momentos de desânimo, a tendência de integração é com o ambiente natural. Nos momentos de euforia, de melhores condições, quando a natureza dá uma trégua, Fabiano se permite, como permite à família, aspirar à condição de homem. É suficiente estarem por algum tempo afastados do perigo da seca, para sonharem. Todos sonham: Fabiano sonha ser homem, ter uma terra sua, andar de cabeça erguida como os “brancos”, matar o soldado amarelo; Sinhá Vitória sonha ter uma cama de verdade; o filho mais novo sonha entender o sentido da palavra inferno e o mais velho sonha ser vaqueiro como o pai; a cachorra Baleia sonha com um osso suculento. É tão restrito o mundo em que vivem, tão pequeno, o horizonte tão próximo, que não há imaginação sequer para sonhar, o sonho tem que caber na realidade.

“O problema do significado está presente em todos os signos culturais”.

A busca de integração com a comunidade evidencia-se, entre outras maneiras, nas inúmeras tentativas de diálogo e de argumentação, que infelizmente nunca chegam a bom termo, e na imitação do vestuário e dos hábitos dos homens da cidade. A problemática do significado estende-se ao vestuário: Fabiano busca, através de um comportamento citadino, integrar-se ao grupo social mais próximo. Vai com a família à festa na cidade, todos vestidos de acordo com a norma indumentária vigente naquele contexto social: “(…) constrangido na roupa nova, o pescoço esticado, pisando em brasas” (p. 95).
“Fabiano apertado na roupa de brim feita por Sinhá Terta, com chapéu de baeta, colarinho, gravata, botinhas de vaqueta e elástico, procurava erguer o espinhaço, o que ordinariamente não fazia. Sinhá Vitória, enfronhada no vestido vermelho de ramagens, equilibra-se mal nos sapatos de salto enorme. Teimava em calçar-se como as moças da rua – e dava topada no caminho. Os meninos estreavam calça e paletó. Em casa usavam sempre camisinhas de riscado ou andavam nus”.

Mas logo esses padrões mostram-se sufocantes, e aos poucos os personagens vão se despojando, libertando-se daquela norma de vestuário e do signo social que elas representam:
“E ao pisar a areia do rio, notam que assim não poderiam vencer as três léguas que os separavam da cidade. Descalçou-se, meteu as meias no bolso, tirou o paletó, a gravata e o colarinho, roncou aliviado. Sinhá Vitória decidiu imitá-lo: arrancou os sapatos e as meias, que amarrou no lenço. Os meninos puseram as chinelinhas debaixo do braço e sentiram-se à vontade. (…) Retomou a posição natural: andou cambaio, a cabeça inclinada” (p. 92).

Na realidade, o signo social que as roupas representam só tem sentido para o grupo urbano; para Fabiano e sua família não recobrem uma substância do domínio de sua experiência. O esforço de se vestirem de acordo com as regras da comunidade demonstra a busca de integração que, no entanto, se esvazia pela incapacidade de assimilarem de uma só vez um complexo de normas sociais. A incompetência leva a uma performance insatisfatória, que acaba por ressaltar o aspecto grotesco: “Sabia que a roupa nova cortada e cosida por Sinhá Terta, o colarinho, a gravata, as botinas e o chapéu de baeta o tornavam ridículo, mas não queria pensar nisto” (p. 97).

“E o colarinho furava-lhe o pescoço. As botinas e o colarinho eram indispensáveis. Não poderia assistir à novena calçado em alpercatas, a camisa de algodão aberta, mostrando o peito cabeludo. Seria desrespeito. (…) Não se arriscava a prejudicar a tradição, embora sofresse com ela” (p. 96).
A utilização da sombrinha, de modo peculiar, por Sinhá Vitória, também ressalta o desejo de integração:
“Atravessaram a pinguela e alcançaram a rua. Sinhá Vitória caminhava aos tombos, por causa dos saltos dos sapatos, e conservava o guarda-chuva suspenso, com o castão para baixo e a biqueira para cima, enrolada no lenço. Impossível dizer por que Sinhá Vitória levava o guarda-chuva com a biqueira para cima e o castão para baixo. Ela própria não saberia explicar-se, mas sempre vira as outras matutas procederem assim e adotava o costume” (p. 93-94).

A sombrinha não tem, nesse contexto, seu significado comum: objeto de proteção contra o sol ou a chuva. É carregada de modo particular, como imitação de um comportamento. Esse gesto é um signo cujo significado Sinhá Terta não compreende. Portanto, o que é signo para o grupo urbano para ela é mera imitação, porque esvaziado do seu sentido social. De certa maneira é o que faz Fabiano quando pronuncia palavras sem conhecer-lhes o significado, reduzindo-as à mera expressão. Fabiano percebe que a linguagem pode ser uma arma, uma arma que está sempre contra ele, contra os fracos, indefesos e oprimidos. Na prisão não consegue montar a própria história, definir o sentimento de revolta surda que toma conta de seu espírito: “O demônio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía” (p. 40). Mas reconhece também que, se soubesse usar a linguagem, teria poderes sobre essa arma e poderia usá-la para sua defesa, para gritar por seus direitos, e assim ser homem.

É ainda nesse estado de confusão que opõe instintivamente as duas fórmulas mágicas que lhe permitiriam romper a estrutura que o degrada: o poder do saber linguístico, instrumento de conhecimento do mundo que permite ao homem atuar sobre ele e modificá-lo; e o poder da violência, sob a forma de adesão ao cangaço, para destruir os opressores: “Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homens que dirigem o soldado amarelo. Não ficaria um para semente” (p. 42). Se a primeira saída lhe foi vedada, a segunda implica abandonar a família. Portanto, ele continuará dependendo da sorte: se um dia acabarem as secas, então seus filhos poderão romper com a herança trágica de várias gerações.

“Há uma relação entre o conhecimento linguístico de um indivíduo e seu grau de desempenho”.

A consciência linguística de Fabiano reduz-se às funções mais gerais da língua. Muitas vezes não consegue juntar uma sequência sonora a um conceito, um significante social ao seu significado. Da mesma maneira, não consegue unir o fator biológico ao cultural e obter uma síntese, ou seja, uma identidade humana. Em última instância, há uma dissociação de forma e conteúdo. Por não conseguir ver-se como indivíduo, não se realiza como ser social. Trabalha, produz, mas nada recebe em troca. É fruto de uma sociedade injusta, que com sua dinâmica cria seres mutilados e, assim, mantém a “indústria da seca e da fome”.

Inegavelmente nosso “herói” é um homem, e como tal possui aptidão linguística, um potencial que pode ou não ser desenvolvido, dependendo dos fatores externos. Tal aptidão se realiza numa competência e numa performance que variam em função do meio social. Quanto maior for o conhecimento do sistema linguístico, de suas possibilidades, de suas formas, melhor será a competência do indivíduo e, consequentemente, o seu desempenho.

Isolado da comunidade linguística, nosso personagem carrega uma história em que o silêncio é uma contingência. Fabiano é fruto de um sistema de educação pragmática, cuja meta é a preservação da vida biológica. Tem certeza da inutilidade da palavra no contexto em que vive, e por isso estabelece para os filhos o mesmo padrão de comportamento verbal – evita que eles alcancem respostas para questões linguísticas que os desviariam da luta pela subsistência, obrigatória para uma perfeita adaptação ao ambiente hostil. Essa educação exclui o desenvolvimento da linguagem verbal para além dos limites em que estão confinados os personagens. Não exclui, todavia, o sonho e a perspectiva utópica de viverem num mundo no qual, tendo sua sobrevivência assegurada, lhes seria possível realizarem-se como homens e falarem a sua linguagem em igualdade de condições.

Vidas secas possibilita pelo menos mais duas leituras. Uma determinista, no nível da denotação, na qual o meio, a raça e a história seriam os elementos responsáveis pela situação de carência do “herói”. No nível da conotação, que responde pela atualidade da obra, pode-se interpretá-la como uma denúncia social: trata do problema do abandono do nosso homem do campo, do desenvolvimento do aparato tecnológico voltado apenas para os grandes centros industriais, enquanto se eterniza o problema da seca e do desvio das verbas destinadas aos flagelados.

A problemática que levou Graciliano Ramos a escrever Vidas secas, obra publicada em 1938, permanece como uma realidade não superada, nem superável num futuro próximo. Com extraordinária capacidade, o autor concretizou o inferno da seca, o drama humano do retirante e a miséria que o Brasil desenvolvido procura ignorar. A história que Graciliano considerou “mesquinha”, certamente não é apenas ficção.

* Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Este trabalho teve a colaboração de Vicente Francisco da Silva, mestre em linguística pela FFLCH/USP.
** A primeira parte deste artigo, “Consciência linguística de Fabiano”, foi publicada no número 32 da revista Princípios.

Bibliografia
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COUTINHO, C. N. Literatura e humanismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967.
RAMOS, C. Mestre Graciliano – Conformação humana de uma obra. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979.
RAMOS, G. Linhas tortas. São Paulo, Livraria Martins, 1976.
_________. Vidas secas. São Paulo, Livraria Martins, 13ª edição.

EDIÇÃO 34, AGO/SET/OUT, 1994, PÁGINAS 68, 69, 70, 71, 72