Contraponto à epopéia e às histórias de aventuras
O trabalho de Márcia Helena tem a marca da contemporaneidade; alia, à reflexão sobre uma obra singular, o romance O Louco do Cati, de Dyonélio Machado, a intertextualidade a que todo esse texto remete ao leitor. A doutoranda de Teoria da Literatura da PUCRS dialoga com a crítica e o mercado editorial que, com raras exceções, mantiveram a produção de Dyonélio no exílio do silêncio. Ela provoca os que o deixaram engavetado por sua condição de comunista ou porque ele se afastou do padrão estético do regionalismo. O questionamento também se dirige aos que o acusaram por não se enquadrar no realismo socialista. Sua interpretação tem ainda outro mérito: rompe com a imagem cristalizada do escritor gaúcho como o grande autor de um livro só, Os ratos.
Quais os vínculos entre as epopéias de Ulisses e as aventuras de Robinson Crusoé com a história de um homem que, à falta de nome, recebe a alcunha de Louco do Cati? Márcia os aproxima por meio da noção de paródia legada por Mikhail Bakhtin (1895-1975). Ao contrário do conceito de ridicularização divulgado pelos dicionários correntes, para Bakhtin parodiar é “falar a linguagem do outro, invertendo sua orientação semântica original”. Essa noção se combina com sua visão de romance: “o único gênero inacabado, ainda em fase de evolução, motivo pelo qual se realiza como paródia dos demais gêneros literários”.
Os vínculos paródicos do romance O Louco do Cati com a epopéia e o relato de aventuras estabelecem, como mostra Márcia, um processo simultâneo de aproximação e afastamento em relação a essas formas. Na instauração do processo paródico Dyonélio se vale dos fenômenos da loucura e da metamorfose que envolvem o protagonista. Ao associá-los, ele se coloca, conforme a teórica da literatura Regina Zilberman, “de um lado, na esteira de clássicos como D. Quixote, de Miguel de Cervantes, de outro, na linguagem de Kafka; é uma vanguarda artística do século XX”.
O Louco do Cati se estrutura sobre a viagem e a busca, ao mesmo tempo em que, parodicamente, deles diverge.
O exame das divergências, que se verificam nos planos da história em si e da composição, constitui núcleo da análise. Um trabalho minucioso, que sustenta a conclusão sobre os recursos complexos que Dyonélio utiliza para colocar em questão o sistema capitalista e a ditadura do Estado Novo. Ao mostrar, com base em Bakhtin, o caráter polifônico da obra de Dyonélio, Márcia reconhece seu imenso potencial de renovação.
Na apresentação do estudo de Márcia, a crítica literária Maria da Glória Bordini lembra que, no passado, a “narrativa de feição caótica e o tema aflitivo (de O Louco do Cati) produziram mais silêncio do que palavras em nosso meios intelectuais”. Estamos, portanto, diante de um livro que reverte essa tendência, pois recupera as vozes da obra de Dyonélio e as torna audíveis para o leitor atual.