História Nova do Brasil
Em 1993 apareceu nas livrarias de São Paulo, a reedição de uma obra que, ao ser publicada inicialmente, em março de 1964, antes do golpe militar, provocou verdadeiro furor entre os meios direitistas: a História Nova do Brasil, um esforço coletivo, dirigido por Nelson Werneck Sodré, de revisar em profundidade a história brasileira, recontando nosso passado em novas bases, numa obra que fosse ao mesmo tempo um instrumento de conhecimento, de desmitificação de idéias conservadoras e de luta para as forças políticas progressistas que. naquele momento. confrontavam-se com a reação interna e externa.
História Nova foi projetada para ter dez títulos: O descobrimento do Brasil, A sociedade do açúcar, As invasões holandesas, A expansão territorial, A decadência do Regime Colonial, A Independência de 1822, Da Independência da República (evolução da economia brasileira), O sentido da Abolição, O advento da República e O significado do florianismo. A Editora Brasiliense reordenou-os em seis volumes e acrescentou mais dois títulos (República oligárquica e Revolução brasileira), que seriam publicados a partir de 1965. Apenas dois volumes foram publicados, sendo apreendidos por ordem do comandante do segundo exército, em São Paulo.
A repressão à História Nova foi uma ignomínia. Os exemplares apreendidos foram destruídos e seus autores presos, torturados, exilados. “A história é isso mesmo”, diz Nelson Werneck no texto que escreveu para a atual edição, “uma singular mistura do grande e do pequeno”. E ele tem razão. Ao esforço enorme e meritório de, num pioneiro trabalho de equipe, produzir um relato da história do Brasil que ajudasse a luta da libertação de nosso povo, correspondeu a pequenez dos alcaguetes intelectuais, gente como Américo Jacobina Lacombe, antigo dirigente integralista, cuja família é ligada à mineradora Paranapanema, ainda hoje autora de campanhas difamatórias contra a soberania nacional e contra os interesses de nosso povo, particularmente dos direitos dos povos indígenas. Gente como Wanderley Pinho, um historiador ligado à oligarquia baiana cujas raízes se perdem no passado colonial, defensor do latifúndio e de uma concepção de história que justifica os privilégios de sua classe, ao mesmo tempo em que tenta embalar nessa lenda o espírito popular, amortecendo sua rebeldia.
Para falar sobre a História Nova, escolhemos o historiador Ricardo Maranhão devido a uma dupla qualificação, além de marxista e velho militante das lutas populares, ele e Antonio Mendes Jr. também dirigiram nos anos 1970, um esforço semelhante, concretizado na obra Brasil História, também coletiva, destinada a recontar a história do Brasil sob a luz do materialismo dialético, cujo alvo eram os professores, estudantes e militantes da luta política do povo. Ironicamente, uma década depois da apreensão da edição de História Nova aparecia, pela mesma editora Brasiliense, em 1976, o primeiro volume de Brasil História. As idéias não morrem!
José Carlos Ruy
Princípios – O relançamento da História Nova do Brasil, projeto iniciado por Nelson Werneck Sodré e uma equipe de historiadores em 1963, e duramente reprimido pela ditadura militar, recoloca em circulação um marco da historiografia – foi, me parece, a primeira tentativa sistemática de se redigir, para uso de professores, estudantes e do público leigo em geral, uma história do Brasil contada sob uma perspectiva científica. Qual sua opinião sobre esse empreendimento?
Maranhão – Quando o pessoal liderado por Nelson Werneck Sodré resolveu escrever uma História Nova do Brasil, a situação da historiografia brasileira era muito mais grave do que hoje, sob o ponto de vista dos interesses de uma historiografia mais científica e da representação política dos interesses de todo o povo e das classes populares, e dentro de uma reconstrução ideológica do passado.
Não tínhamos nada disso. Na verdade, só tínhamos pioneiros, aquela série de pioneiros importantíssimos que tentaram fazer uma historiografia dentro de uma perspectiva que não fosse apenas da historiografia oficial e da ideologia oficial, mas que não se constituíram num corpus grande num grupo social diferenciado e forte. Esses pioneiros eram os já da década de 1930. Particularmente Caio Prado Junior, Sergio Buarque de Holanda e Nelson Werneck Sodré. Seguramente o próprio Nelson que, ao tomar essa iniciativa, já tinha a sua história própria, particular, de um historiador inovador que procurou resgatar uma história científica sem se subordinar a uma ótica ideológica administrada pelas classes dominantes e pelas velhas elites.
É bom lembrar também de Gilberto Freyre. De uma outra perspectiva porque, embora ainda muito vincado o seu trabalho por uma visão aceitável pelas classes tradicionais do Nordeste, mesmo assim é um homem que tem uma contribuição muito grande no sentido de desmistificar a teoria do heroísmo das elites nordestinas, e dessa coisa rançosa do século XIX, essa historiografia rancorosa de Varnhagen, a historiografia colonialista dos historiadores oficiais do antigo Instituto Histórico e Geográfico.
Mas, mesmo com essa ressalva, é importante notar que não havia quase nada, principalmente em termos de livros acessíveis ao grande público. Toda historiografia didática era absolutamente repetidora de velhas teses racistas e colonialistas, de velhos chavões sobre a cordialidade do povo brasileiro. Na verdade, repetiam-se os velhos mitos de que o índio era preguiçoso, o negro infantil e o mestiço indolente… Isso quando se falava alguma coisa sobre a história social, veja só, porque nem se preocupavam muito com isso.
Princípios – Lembro da obra de gente como Pedro Calmon, Rocha Pombo, que repetem, de certa forma, na sua organização, os esquemas que vinham do Império…
Maranhão – Mas é claro. Na verdade, depois de Robert Southey, que é até melhorzinho, até por ser estrangeiro, por não ser um homem tão comprometido com a elite do Império. Realmente, depois dele há o esquemão do Varnhagen, do nosso Visconde de Porto Seguro, que não é alterado substancialmente em nada. A construção histórica do Instituto Histórico e Geográfico é depois muito repetitiva. Na verdade o que se tem são formas de dourar ainda mais a pílula. Basta lembrar Pedro Calmon que, ao narrar os episódios da Independência, mantém a mesma perspectiva de criação de um Império por uma elite aristocrática que – nós sabemos – era mera transposição de uma burocracia portuguesa aos trópicos, fugida da invasão napoleônica, e que já tinha dentro de si – desde a queda de Pombal – traços de total decadência como organização política. Enfim, essa historiografia sobre a fundação do Império, que tenta valorizar D. Pedro etc., em Pedro Calmon virou um delírio, um delírio romântico, em que ele começa a criar um príncipe, arrebatado, chegando a sugerir para o leitor o momento da proclamação da Independência como um momento de bravura, assistido à distância por um povo embevecido com as ações daquele magnífico imperador… Tudo cascata, conversa fiada, sem base em documentação nenhuma.
“Calmon, ao narrar a Independência, mantém a idéia de criação de um império pela aristocracia”.
Voltando então à iniciativa de Nelson Werneck Sodré, ela é importante também pelo seguinte: ele encarou a necessidade de fazer uma história nova como tarefa política de um momento da modernidade brasileira, em que se colocavam condições para uma luta política de caráter moderno e mais avançado das classes trabalhadoras brasileiras. E, como tal, não se propôs apenas a fazer o trabalho. Propôs-se a reunir uma equipe – é muito importante destacar o caráter coletivo da obra. Não por uma valorização ideológica extrema do coletivismo de trabalho. Não vamos cair em ilusões. Tem obras coletivas que são porcaria também. Mas o importante é trazer para o processo de trabalho mais gente, para dar conta da grande complexidade que é a história brasileira, que não é tarefa para um historiador sozinho, nem para uma equipe, nem para uma geração. Principalmente porque, até aquela época, final dos anos 1950 e começo dos anos 1960, quando surgiu a proposta de História Nova, tínhamos um atraso muito grande, monstruoso, em matéria de construção de uma bibliografia acessível às classes populares, aos alunos, às escolas, às universidades.
Então, aquele projeto era uma coisa de longo prazo. E, por isso, tinha de começar de imediato com uma equipe. E, é importante destacar, desse trabalho, desse cadinho de discussões para se produzir uma nova história, surgiu uma série de intelectuais importantes, cujo trabalho foi valioso para o crescimento da cultura brasileira. Nesse ponto, quando muitos anos depois, Antonio Mendes Junior e eu resolvemos repetir a perspectiva de ampliar e atualizar a história do Brasil em nossa obra, nós não tivemos dúvida: temos que juntar equipe, botar gente a discutir. E felizmente, dezoito anos passados desde então, temos orgulho em dizer que muita gente que participou do início hoje também contribui para a cultura brasileira. A equipe pioneira de História Nova tem gente como Joel Rufino dos Santos, autor de uma série de trabalhos tanto de historiografia quanto de obra ficcional importantes. É um homem que colaborou, também, na luta pela libertação do negro brasileiro. Temos o Rubens César Fernandes, Maurício Martins de Mello, Pedro de Alcântara Figueira, temos o Pedro Celso Uchôa Cavalcanti Neto. Não vamos nos estender sobre isso, mas o trabalho historiográfico em equipe abriu a cabeça das pessoas que dela participaram.
“A História Nova foi desde o início um instrumento de luta. Surgiu para atender a essa necessidade”.
Princípios – Como o surgimento do projeto da História Nova se liga ao contexto sócio-político brasileiro da época?
Maranhão – O final dos anos 1950 foi um momento extremamente importante de retomada em profundidade das lutas democráticas dos trabalhadores brasileiros. Isso me parece decisivo. Na conjuntura dos anos de Juscelino Kubitschek, a própria euforia do desenvolvimento capitalista criou as condições objetivas materiais, de aumento do peso do proletariado na sociedade brasileira. As contradições agravadas pelo próprio processo de desenvolvimento, sem reforma agrária, sem mudanças estruturais, um desenvolvimento acelerado que mantinha as estruturas mais injustas, aprofundando algumas iniquidades e, além disso, o choque de um capitalismo que cresce como sendo nacional, mas aprofunda sua dependência externa, essas contradições, agravadas pelo próprio volume do processo de desenvolvimento, ampliaram muito a necessidade de organização e de luta dos trabalhadores. E a essas necessidades objetivas começou a haver uma resposta subjetiva de organização dos trabalhadores brasileiros, inclusive do campo, onde havia um atraso muito grande nesse nível.
Nessa conjuntura, em que o trabalhador rural começa a se organizar de maneira diversificada, desde o crescimento dos sindicatos até as ligas camponesas etc., a demanda por instrumentos de elaboração de uma consciência política dos trabalhadores, uma consciência política democrática, é muito maior, e isso torna mais angustiante o fato de haver carência desse material, carência de uma historiografia com um mínimo de compromisso. Assim, o projeto é mesmo político, ideológico, engajado, militante e essa é sua característica. O que, evidentemente, do ponto de vista de alguns, pode ser visto como algo negativo. Você vai fazer ciência mesmo, vai fazer uma coisa séria, ou vai criar um panfleto, um instrumentozinho de luta? Na verdade, essas coisas não são opostas nem incompatíveis. Na verdade, se no calor da luta pode-se dar tiros para o ar, tiros errados, às vezes até ferir algum companheiro de trincheira, sem armas ideológicas também não existe luta. É necessário, é essencial, que você tenha uma meta desse tipo e procure construir seus instrumentos conceituais…
“A história é sempre uma ciência política, mesmo quando se tenta negar essa evidência”.
Princípios – E particularmente na história, que sempre é uma ciência política…
Maranhão – Exatamente, a história é sempre absolutamente política, mesmo quando se constrói para negar essa evidência, mesmo quando se tem como meta ideológica negar essa evidência, como essa teoria da microfísica do poder etc. que tenta negar a política e só faz política o tempo todo.
Bom, mas o fato é que, na condução desse processo, além do trabalho de equipe, há o papel a se destacar, específico, de Nelson Werneck Sodré, cuja obra realmente é importantíssima para a historiografia brasileira, com todas as críticas que possamos fazer a ela. Quem sou eu para avaliar a obra de Nelson Werneck Sodré? Não sou juiz de um trabalho tão importante, que trouxe tantas contribuições para a historiografia brasileira. O máximo que posso fazer é dizer, com a maior franqueza e espírito de companheirismo, que realmente Werneck Sodré, no seu processo de elaboração historiográfica, pela generosidade de suas posições políticas, também criou mitos. Foram os chamados tiros dados em direção errada. Um ele nem criou, mas apenas aprofundou um mito que havia sido formulado de maneira vaga e genérica, na década de 1930, sobre o feudalismo brasileiro, que outro marxista, como Caio Prado Júnior, nunca aceitou. Mas, enfim, os documentos políticos da III Internacional, que colocavam a existência do feudalismo e da necessidade da luta antifeudal, falavam na existência de feudalismo no Brasil. E Nelson Werneck Sodré foi buscar esse feudalismo, e fez uma análise que hoje em dia se considera realmente incorreta. Ele mesmo hoje em dia, creio que nem mais insiste tanto nesse assunto, quer dizer, na idéia de um feudalismo no Brasil. É um mito que ele apenas aprofundou, não que ele criou. E outro, que realmente criou, é o da vocação democrática do Exército brasileiro, num trabalho magnífico como a História militar do Brasil, um trabalho ótimo, excelente. Ninguém até então tinha aberto tão escancaradamente a verdadeira história do Exército brasileira, com suas mazelas e suas virtudes, sem dúvida muitas. Mas essa teoria do caráter democrático do Exército não se sustenta. Na prática, ela só foi sendo desmentida, frequentemente, e o nosso querido general insistiu nisso durante muitos anos. Muito mais do que a tese do feudalismo, ele insistiu na tese do caráter democrático, com vontade que seus companheiros fossem democráticos.
Não se trata do problema de o Exército ser ou não ser antidemocrático, mas sim de que não se pode atribuir a uma categoria social inteira uma virtude. Isso é anticientífico, é anti-histórico. Até mesmo os sonhadores do marxismo mais atrasado e vulgar do início do século, e toda aquela produção teórica de baixo nível daqueles divulgadores do marxismo – mesmo aquelas simplificações todas nunca chegaram a afirmar que todo proletariado é revolucionário, embora, no fundo, à boca pequena, os comunistas e marxistas dissessem isso e acreditassem. Mas, na verdade, chegar a escrever que todo proletariado é revolucionário é uma estupidez…
Princípios – Nesse caso, não precisaríamos de uma vanguarda!
Maranhão – Claro, exatamente. Na verdade, você atribuir a uma classe uma característica fixa é uma coisa anti-histórica, é uma loucura. Isso não tem nada a ver com todos os escritos de Marx, em que a virtualidade histórica de destruição do capitalismo pelo proletariado é uma meta possível. Mas isso não quer dizer que ele vai fazer isso, ninguém pode prever o futuro!
“Sodré foi o primeiro historiador brasileiro a levar em conta as fontes latino-americanas”.
Mas, tirando esses dois grandes mitos que Nelson Werneck trouxe para a historiografia brasileira durante muitos anos, e que realmente não são corretos, eu considero a obra dele importantíssima. Primeiro por tratar de uma maneira séria coisas como o Segundo Império, que ninguém tratou neste país – só agora, parece, alguns historiadores de formação marxista, ou com uma perspectiva mais crítica, estão tratando de novo desse assunto. Uma de suas obras mais importantes, Panorama do Segundo Império, detona uma série de mitos sobre o Império e é um trabalho, como muitos outros de Nelson Werneck Sodré, profundamente baseado em sólida documentação e rica bibliografia, inclusive buscada em outras fontes, como as latino-americanas, que sempre foram desprezadas pelos historiadores brasileiros. Porque sempre voltamos as costas à América Latina, ao continente, nunca tivemos uma noção muito clara da riquíssima historiografia sobre a Bacia do Prata. Werneck foi o primeiro entre os historiadores brasileiros a levá-la em conta. Claro, tem o trabalho de Joaquim Nabuco, que é um caso à parte. Nabuco teve acesso às posições expressas pelos platinos em função da participação de Nabuco de Araújo, seu pai, na luta política da época, e ele próprio era um diplomata.
Depois dele, ninguém mais leu nada do que se escreveu na Argentina, no Paraguai e no Uruguai sobre os conflitos platinos. E que Nelson Werneck Sodré foi buscar o magnífico ensaio que abre o livro Razões da Independência, que é um marco na historiografia brasileira. A partir dali é que começamos a ir buscar os argentinos, os paraguaios, importamos inclusive o Guerra del Paraguay, gran negócio, escrito por Leon Pomer, hoje professor da PUC de São Paulo. Eu mesmo só pude escrever o capítulo sobre a Guerra do Paraguai do Brasil História porque me iluminei por esse artigo de Nelson Werneck Sodré e fui atrás da bibliografia que ele apontava.
Princípios – Um amigo nosso, o Marcos Gomes, me chamava a atenção para o caráter sistemático da obra de Nelson Werneck Sodré. Ele diz que Werneck é um intelectual raro entre nós: ele tem uma história dos militares, uma história da burguesia, uma história da literatura, uma história disso, uma história daquilo…
Maranhão – É verdade. Isso mostra um trabalho sistemático de alguém que quer abranger a totalidade, e sabe que é preciso fazer isso com método, definindo muito bem o objeto, sabendo recortar o real. Na verdade, isso faz com que ele não seja como muitos outros intelectuais brasileiros da área das ciências humanas, que chutam grandes teorias. Ele vai aos documentos, vai aos fatos, é um historiador mesmo, de mão cheia. Mesmo quando erra. Não tem essa coisa fácil do intelectual brasileiro, de traçar grandes teorias, sem nenhum fato, e depois os alunos de pós-graduação que se virem para achar algum fato (risos…). Evidentemente, a partir da publicação da História Nova, há 30 anos muitas coisas aconteceram, inclusive a formação de uma duas gerações de historiadores que, bem ou mal, foram influenciados por ela, ou pelas suas decorrências, ou pelo trabalho de Nelson Werneck Sodré como um todo. É bom lembrar aqui que a História Nova foi muito reprimida, inclusive recolhida e proibida…
Princípios – E seus autores presos…
Maranhão – E exilados…
Princípios – E o Exército democrático…
“De 1964 em diante, até meados de 1970, História Nova era prova de crime. Isso limitou sua influência”.
Maranhão – Exatamente, o Exército democrático desmentindo seu defensor. O Estado caiu sobre a cabeça de todo mundo. A História Nova não influenciou mais porque foi recolhida, foi queimada, jogada fora, transformada em sucata. Ter História Nova em casa, de 1964 em diante, até meados de 1970, foi sempre argumento para aqueles famosos juízes militares, quando prendiam um cidadão suspeito de ser suspeito. Era prova do crime. É evidente que isso também diminuiu bastante a influência dela. Poderia ter muito mais influência se estivéssemos em uma democracia. Inclusive as influências negativas poderiam ter sido melhor discutidas.
Princípios – Penso que a repressão à História Nova marcou simbolicamente o desenvolvimento da historiografia brasileira, na medida em que se tem, de um lado, uma historiografia mais à esquerda, de resistência que se formou, e que a obra de vocês é um exemplo. E, do outro lado, a historiografia acadêmica, institucionalizada, que, com exceções, ficou à direita…
Maranhão – Uma boa parte. Se bem que isso até a segunda metade dos anos 1970. Nos anos 1960 e na primeira metade dos anos 1970, a repressão à História Nova, com suas consequências secundárias e terciárias, tirou do primeiro plano nas faculdades de História todo o pessoal de esquerda, isso quando eles não foram presos e mortos. Lembro muito bem que até mesmo a História da USP, quer tinha alguns nomes importantes da historiografia brasileira, só resistiu de 1964 a 1968, porque logo após o AI-5 houve de cara a cassação da Emília Viotti da Costa – uma perda importantíssima. Fomos enriquecer o conhecimento dos americanos sobre nós, ela foi para Yale. Mais uma vez os EUA se curvam… Demos de presente vários historiadores aos norte-americanos, eles estavam precisando, coitados…
A perda de Emília Viotti, o afastamento compulsório de outros, como Fernando Novaes, Maria Yedda Linhares, tudo isso criou, enfim, uma situação que deixou dentro das faculdades, em situação de mando, um pessoal muito conservador. Até mesmo um ou outro conservador de bom nível, como Eduardo de Oliveira França, que era um excelente historiador, um homem sério que, inclusive incorporou alguns aspectos da postura marxista em suas análises econômicas, mas que era acima de tudo um conservador. E feliz foi quem em suas faculdades de História ainda tiveram gente assim. O pior é que na maioria do Brasil ficaram os medíocres de direita. A mediocridade tomou conta de todas as cadeiras, inclusive na USP. Lembro-me muito bem como um fascistóide da TFP, chamado Cláudio de Cicco, que dava aula de história e era tão ruim que não conseguia sequer ser visto como historiador no Departamento de História da USP, foi para a Faculdade de Comunicações fazer sua pregação fascista. Nem lá foi aceito, embora o diretor da faculdade fosse um homem de extrema-direita. Mesmo assim os alunos conseguiram afastá-lo, pois não suportavam sua pregação fascista. No Brasil mais pobre, onde a mediocridade misturada com a bajulação é uma forma de se conseguir o poder nas universidades, isso foi pior. Foi um empobrecimento terrível.
Os out-siders, os historiadores de esquerda, fizeram de fora do sistema universitário, mas não deixaram de pressionar. Criaram canais de expressão e chegaram a atrair parcelas da opinião pública universitária. Por exemplo, a imprensa alternativa, que fez um pouco o papel da História Nova nos anos 1970. Era o jeito de se passar uma postura crítica, seja historiografia, seja nas outras áreas. Quantas vezes nós não publicamos artigos sobre história, ensaios, acolhemos os artigos dos excluídos da Universidade? Não é à toa que Nelson Werneck Sodré está lá na fundação do jornal Opinião. Com essa pressão, com o fato de as pessoas terem continuado a fazer um esforço enorme para publicar alguma coisa, a semente lançada pela História Nova não morreu. Na verdade, houve uma inevitável associação entre a resistência democrática contra a ditadura e uma historiografia crítica. Essa associação foi muito leve, matizada, sutil, mas houve. E com isso os conservadores, enquistados nas universidades, começaram a ter que ceder lugar, espaço, porque havia pressão por parte dos alunos. Nós vemos inclusive que com isso alguns bastiões de uma historiografia ultrapassada foram sendo lentamente desalojados, inclusive pelo funcionamento efetivo das associações como a ANPUH (Associação Nacional dos Professores Universitários de História), com seus congressos, os encontros dos estudantes de História, a organização de grêmios e centros de história. Tudo isso, constitui uma pressão, que criou o clima para que Antonio Mendes Jr., eu e toda uma série de colaboradores da coleção Brasil História, pudéssemos dar início, em 1975, à confecção dessa obra, com essa mesma meta de aprofundar o conhecimento histórico, democratizá-lo e torná-lo acessível às camadas populares. Exatamente os propósitos que, penso, animaram a equipe que deu início à História Nova do Brasil, nos anos 1960.
* Historiador e professor-titular do Departamento de Política da Universidade de Campinas.
EDIÇÃO 34, AGO/SET/OUT, 1994, PÁGINAS 22, 23, 24, 25, 26