A mídia e as eleições
A mídia teve, nas eleições presidenciais, um papel que se sobrepôs ao das instituições políticas? Se a mídia pode atuar dessa maneira, seria possível à população, num lance oposicionista, reverter a situação partidária ou de interesse encastelada nos poderes constituídos? Os meios de comunicação invadem e colonizam a vida cotidiana das comunidades locais e gerenciam os processos de formação de opinião para predeterminar resultados eleitorais nos planos local, regional e nacional?
Essas questões ficam respondidas, ao menos parcialmente, na medida em que analisamos o poder de fogo da mídia, seus elementos, sua estrutura e as armas que utiliza para influenciar a população. Também vale averiguar seus modos de atuação, segundo as funções institucionais que são dadas aos meios de comunicação pela Constituição e pelas leis do país, pela moralidade social e pelas exigências éticas da população.
O poder da mídia
A mídia brasileira hoje dispõe de 2.820 emissoras de rádio, que falam diariamente a 117 milhões de pessoas; de 226 emissoras de televisão, às quais se expõem durante três horas e meia por dia 115 milhões de pessoas; e de cerca de 2.000 jornais e revistas, sendo que o número de exemplares de jornais diários não ultrapassa a tiragem total de 5,5 milhões.
Essa estrutura está presente em todos os cantos e recantos do território e ocupa uma parte considerável da vida das pessoas durante o seu dia-a-dia, relacionando-se com elas em coisas importantes como novos produtos, os rumos da vida, o preço do leite e da carne, a barra de ouro, os políticos condenáveis e os políticos honestos, e assim por diante.
“A mídia assume espaço privilegiado na vida pública. O que nela não aparecer pode deixar de existir”.
A força da mídia não vem apenas de seu porte ou de seu papel num país de características continentais. Na verdade, a grande tela da mídia assume um espaço privilegiado na vida pública. O que nela não aparecer corre o risco de deixar de existir. Além do mais, a relevância da mídia vem de sua exclusividade. Afora a mídia, o que existe no Brasil como meio para a formação do saber, de valores e de opinião sobre as coisas da vida pública? Se pensamos em outras instituições – como a família, a escola, as igrejas, os livros, o teatro, o cinema, o folclore, as culturas regionais –, veremos que nas últimas décadas elas vêm sofrendo um esvaziamento progressivo de seu papel cultural (e, portanto, político e econômico), e esse esvaziamento tem ocorrido em benefício da mídia, fortalecendo seu papel político.
Com isto estamos afirmando que o modelo brasileiro tem favorecido uma certa elefantíase da mídia em detrimento das demais instituições, com base numa estratégia de privilegiar, em especial, os meios eletrônicos – como o rádio e, sobretudo, a televisão, que praticamente se tornou um poder constituído no país.
É inegável a constatação empírica de que os meios de comunicação eletrônicos substituem a linguagem comunicativa do cotidiano das pessoas, podendo, a partir daí, realizar o controle social, apropriar-se da vontade dos eleitores e da soberania popular, com poder de predeterminação de resultados eleitorais. Na pior hipótese, o poder de desempatar uma eleição.
Deve-se levar em conta que, mesmo onipresente e onisciente, a mídia não pode determinar tudo de maneira mecanicista. Também é preciso levar em consideração o cenário geral em que ela atua, com agravantes e atenuantes a seu favor, por causa da debilidade em que se encontra a maioria da população.
Modo de atuação
Comparada com a de outros países e confrontada com as necessidades culturais e econômicas do Brasil, a estrutura da nossa mídia é modesta. Na realidade, o país comporta o dobro de rádios e mais do que o dobro ou o triplo de emissoras de televisão. O problema que se coloca é a atuação das emissoras e o conteúdo de sua programação, que não estão a serviço do país e de sua população mas, ao contrário, servem aos interesses particulares de seus detentores.
O fato é que a mídia se “comporta” de modo desabusado, numa zona que poderíamos caracterizar, do ponto de vista jurídico, como “terra de ninguém”. Em 1967, uma Constituição federal, um Código de Telecomunicações e uma Lei de Informação (“lei de imprensa”) foram baixados pelos militares. Todos vigoram até hoje e constituem a regra do jogo para a mídia, contaminada pelo conceito de segurança nacional, com suas estratégias de controle, de inimigo interno e de guerra fria. Em 1988 uma nova Constituição veio à tona derrogando os velhos conceitos, com um capítulo inteiro para a comunicação social democrática. Mas os novos princípios constitucionais não foram regulamentados, o que permite à mídia continuar com a velha regra do jogo quando é de seu interesse.
Induzir a um jornalismo mercantilista e mercenário é o papel da “lei de imprensa” no Brasil
A “lei de imprensa” de 1967, por exemplo, por um lado, impõe uma atitude de segurança aos meios de comunicação, mas, por outro, lhe permite, por lacuna legal, os mais variados tipos de expediente para lucrar à custa da credibilidade dos usuários. Com a força de ser a legislação em função da qual, em última instância, são resolvidos os mais pesados conflitos de interesses, a “lei de imprensa” realiza assim o papel de indutora de um jornalismo mercantilista e mercenário.
Alguns exemplos. Por mais contundentes que sejam os fatos sociais sobre uma determinada temática, os veículos podem se omitir de publicá-los, isoladamente ou em bloco – e essas omissões reduzem-se, no fim, a interesses financeiros. Cada veículo pode publicar uma série de reportagens, notícias e editoriais como se fossem informações de peso, quando, na verdade, está sendo pago, por baixo do pano, para fazê-lo. A lei permite, ainda, que alguém seja promovido sem base real para tanto, com a divulgação de falsas qualidades. Inversamente, se alguma entidade da sociedade civil quiser divulgar a realidade dos fatos, os veículos podem rejeitar sua versão, ainda que a entidade queira publicá-lo como matéria paga, anúncio publicitário caracterizado. Nem pagando em dobro. Outro expediente é a prática de confundir informação com opinião, ficção, propaganda, desconversa ou contra-informação, carregando o conteúdo das programações de intenções mercantis, que se tornam “partidárias” devido à origem dos recursos e favores e dos alinhamentos políticos, em benefício dos poderes econômicos e oficiais.
Dessa maneira, o modo de atuação da mídia escapa tanto à moralidade social como às determinações constitucionais orientadoras e, ainda, aos grandes princípios éticos que vinculam, intencionalmente, a atuação da instituição do jornalismo aos objetivos racionais da construção democrática da sociedade. Depois das Diretas Já!, da Constituição de 1988, do Fora Collor, do Movimento pela Ética na Política, da Caça ao PC, da Ação pela Cidadania, Contra a Fome e a Miséria e pela Vida e da CPI do Orçamento, dir-se-ia que as eleições presidenciais de 1994 seriam também presididas pela insurgência ética da população.
Lula x FHC
Antes das eleições, a questão era saber se a mídia ganharia o pleito, como havia ocorrido em 1989, quando deu a vitória a alguém absolutamente despreparado do ponto de vista moral e político para a presidência da República.
Seguidores de Lula apostavam em suas Caravanas da Cidadania. Mas o que são essas caravanas se comparadas a uma bateria de notícias e de opiniões favoráveis, durante uma semana, de quatro mil veículos de comunicação, em todos os pontos do país? Afinal, não foi apenas uma semana, foram quatro meses de impressionante e redonda unanimidade simultânea, toda a mídia a favor de um candidato, toda a mídia contra o outro candidato.
Fernando Henrique tinha a seu favor não ser um despreparado, pelo contrário, e o fato de ter sido vendido como o autor do Plano Real, com um passado político à esquerda, apesar de ter se aliado aos coronéis da política (PFL e PTB), dos bancos, da indústria, do comércio e da mídia.
A legislação eleitoral substitui a de 1967. Acontece que, na prática, ela não “pegou”
De qualquer modo havia uma legislação eleitoral, que passou a vigorar em 1º de junho e manteve-se até o dia 3 de outubro. Uma legislação que suspendeu, durante o processo eleitoral, as velhas leis de 1967, subordinando o rádio e a televisão a normas legais dignas de um país civilizado. Em sua programação normal, nenhuma emissora de rádio ou televisão podia: a) difundir opinião contrária ou favorável a qualquer candidato, partido ou coligação; b) manifestar preferência em favor de um candidato ou em detrimento de outro. Penas respectivas: suspensão por uma hora ou suspensão por 24 horas, mais detenção do diretor responsável e multa de até 10 mil UFIRs. Ainda no rádio e na televisão, houve o horário eleitoral gratuito, segundo as normas da proporcionalidade, da reciprocidade e da igualdade no direito de expressão.
A legislação eleitoral (com vigência marcada para até 31 de dezembro, quando voltam a vigorar as velhas leis de 1967) determina ainda que todas as emissoras de rádio e de televisão são obrigadas a dispensar tratamento equânime a todos os candidatos, partidos e coligações. Na prática, isso significa, por exemplo, que um candidato ou seus correligionários não podem falar sozinhos, pelo rádio ou pela televisão, devendo sempre o outro candidato ou seus correligionários ter o direito de falar também, tanto nos noticiários quanto nos programas de debates ou de variedades. Mas a legislação eleitoral não “pegou”.
A razão e o álibi
O sucesso momentâneo das promessas do real, aliado ao apoio da máquina oficial e às habilidades do candidato Fernando Henrique, foi suficiente para que a mídia fizesse um coro e criasse um batuque que poderia crescer e comandar o ritmo do processo eleitoral. No mesmo crescendo, Lula foi sendo demolido por todos os lados como despreparado, como barbudo, como mafioso, como xiita, como perdido, como derrotado.
O controle do processo pela mídia – funcionando como um tribunal que arbitra instantaneamente sobre o bem e o mal, o que é bom e o que é ruim, quem deve ganhar, quem deve perder – atingiu seu auge usando todas as atenuantes a seu favor e aproveitando as agravantes contra o adversário.
Como poderia a população, em sua via crucis de insurgência ética, aceitar mais uma enorme trama da mídia contra a vontade dos eleitores e a soberania popular?
O álibi da mídia nas últimas eleições foi habilmente forjado: de forma orquestrada, a mídia vendeu a imagem de que estaria atuando a favor da vontade dos eleitores e da soberania popular, na medida em que apenas defendia os interesses do povo, da população, para quem interessa acima de tudo uma moeda forte, a estabilidade da economia.
“A via da legalidade foi abandonada no rádio e na TV, e os princípios éticos não são observados”.
Ora, o Plano Real é uma meta de governo e, como tal, o governo pode estar certo ou errado. Nesse contexto, há dois fatores a ser considerados: de um lado, a população parece estar convencida da necessidade de uma moeda forte, da estabilização da economia; de outro, a mídia deve ser o espaço para a discussão pública das grandes metas governamentais. Esses dois fatores são a base de uma razão moral, atendem às necessidades cruciais da população.
Essa razão moral foi então aproveitada pela mídia como um motivo necessário e suficiente para barbarizar. A meta governamental foi apresentada como realização nacional, a via da legalidade foi abandonada pelo rádio e pela televisão em sua programação normal e os princípios éticos norteadores foram para o espaço. A mídia virou uma máquina de influência sobre a vontade do eleitor.
Um dos primeiros resultados desse fenômeno foi a criação de um processo de “exclusão eleitoral”, apontado por Herbert de Souza, o Betinho. Baniu-se do diálogo político qualquer um que não considerasse bom o Plano Real. Através da mídia o processo chegou a todos os eleitores, e se algum deles não gostasse do real que não dissesse em público, muito menos se tivesse pretensões eleitorais.
A máquina oficial foi na mesma direção, em apoio ao candidato, e a mídia a socorreu o quanto pôde. Quando, no fim de setembro, o juiz Scartezini, corregedor eleitoral de Brasília, denunciou o presidente da República por exportar o mau exemplo para os estados, ele foi bastante claro: “Dessa maneira, não haverá um embate eleitoral, mas o esmagamento de um lado pelo outro, através do uso da máquina oficial”. O juiz Scartezini chegou até a dizer que o candidato chapa-branca não precisava disso, mas que a Justiça Eleitoral precisava funcionar. Pois bem, a entrevista do juiz corregedor foi divulgada por quase toda a imprensa, durante três dias; no entanto, as dezenas de milhões de eleitores que vêem apenas a Rede Globo nada ficaram sabendo a respeito, pois a emissora não a veiculou.
A mídia, que deveria informar a população para que vencesse o melhor aos olhos dos eleitores, do mesmo modo que os candidatos do pleito também estava fazendo política. No começo de outubro, já não adiantaria a Lula e aos seus seguidores falar alguma coisa, expor alguma idéia ou plano: o que quer que dissessem poderia ser revertido contra eles, inclusive apoiar o real. A mídia gerenciou a repercussão do plano, controlou a produção de opiniões e influiu decisivamente no processo eleitoral.
O que ocorreu quando o ministro Ricupero, em suas confissões parabólicas, se apresentou merecedor de um castigo exemplar? Foi absolvido nos dias seguintes pela mídia. E Lula terminou sendo o culpado…
Comunicação e democracia
À parte considerações sobre más intenções políticas com a implementação do Plano Real, vamos enfrentar uma hipótese: e se, por mais bem-intencionado e por mais honestamente implantado, o Plano Real não der certo, para onde vai a moral da mídia, que assim também agiu com os planos do Cruzado e com a candidatura e o governo Collor? E para onde vão a credulidade social e a popular? E o valor legal das leis? E os princípios éticos que fundamentam a própria razão de existir da mídia e da profissão de seus recursos humanos?
Por maior a “certeza” da eficácia de uma meta governamental, isso não seria razão suficiente para entregar uma instituição a manipulações estratégicas da opinião pública, à ilegalidade nos processos de radiodifusão e ao esquecimento de objetivos maiores da sociedade política e do país.
O que se entende hoje por democracia vai passo a passo com o que se entende por comunicação social. Nos dois casos buscam-se os interesses maiores da sociedade e do país, que podem ser obtidos apenas mediante ações orientadas por critérios civilizados de igualdade, reciprocidade e representação legítima. Isso inclui a exposição de idéias e sua demonstração, a conquista da opinião com base na verdade dos fatos e na formação ideológica racionalmente fundada.
Não é possível dizer, hoje, que as eleições presidenciais de 1994 seguiram esses parâmetros de racionalidade, de conduta democrática e de respeito à vontade soberana dos cidadãos e cidadãs. Mais uma vez, estribando-se em álibi aparentemente perfeito, a vontade eleitoral pendeu decisivamente para um dos lados, influenciada para isto por alegações emotivas ou meramente simbólicas. Mais cedo ou mais tarde a população em seu conjunto sofrerá os subsequentes infortúnios.
A questão que se coloca agora é saber como livrar o país dessa engrenagem imprestável para a construção democrática.
* Professor de Ética e Legislação do Jornalismo na Universidade de São Paulo e coordenador do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.
EDIÇÃO 35, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 12, 13, 14, 15