Capitão América, herói da lei e da ordem
A escolha dos quadrinhos como objeto de análise da concepção de Estado pode parecer estranha à primeira vista. Os quadrinhos já foram exaustivamente estudados pelos pedagogos, que pinçaram em suas páginas vestígios de uma influência deletéria e eminentemente ideológica, e por extensão também pelos teóricos da comunicação, que tentaram estabelecer relações entre os quadrinhos, o poder e a indústria cultural.
Historicamente, além de reproduzirem as contribuições pictóricas, estéticas e literárias advindas das mais diferentes épocas, os quadrinhos espelham de maneira desconcertante a realidade social, psicológica e política que os interpenetram contemporaneamente. Para limitarmos o amplo painel de referências possíveis, vamos nos deter na produção quadrinística norte-americana produzida a partir da década de 1980. Nesse mundo, construído sob o que se convencionou chamar de “modo de vida americano”, as coordenadas políticas são determinadas pelo tripé formado pelo individualismo, liberalismo democrático e pluralismo. Desse triângulo de forças, parte virtualmente todo o “espírito” das HQ – nos Estados Unidos, evidentemente, não só a concepção de darwinismo social, que proclama a tese de que somente os fortes podem sobreviver à corrida pelo sucesso, mas a brutalidade da coexistência dos contrários, que é disseminada através da padronização conceitual e psicológica dos quadrinhos. Os heróis, personagens dotados de autodeterminação e espírito comunitário sacrificial, são os suportes desse esforço de domesticação dos insurretos e racionalização de uma cultura narcisista, etnocêntrica e essencialmente competitiva.
Evidentemente, esse desempenho tem consequências políticas. O Estado Liberal, identificado como pilar de sustentação das liberdades individuais, é assegurado. Nas HQs luta-se pelo reordenamento do equilíbrio da dinâmica social e pelo restabelecimento da coesão; jamais pela mudança das estruturas. O Estado, apesar disso, mantém-se ainda como um mecanismo de controle social, assim como o governo é o instrumento imperativo no interior de seu território. O que tentaremos mostrar é que nos quadrinhos, embora o Estado tenha sido apresentado repetidas vezes como um mal necessário ou como um organismo corroído pelo corporativismo, é uma estrutura que deve ser salvaguardada para evitar que a sociedade atinja a sua dissolução.
American Flagg (1), do norte-americano Howard Chaykin, inscreve-se como uma linha crítica dessa concepção. O enredo transcorre no ano de 2031, quando os Estados Unidos encontram-se desmantelados pela crise política e social. A Califórnia desapareceu após um acidente nuclear e a União Soviética, como Estado, não existe mais. Novos países hegemônicos surgiram para ocupar o espaço político deixado pelas antigas superpotências. Uma delas é a União Brasileira das Américas. A corrupção tornou-se regra em todos os escalões da sociedade, infiltrando-se no poder manipulado ostensivamente pela Plex, um grandioso conglomerado de empresas e burocracias governamentais, que deslocou todas as suas operações para Marte em 1996. De lá continua influindo sobre os acontecimentos sócio-políticos através de seus shopping centers e de sua rede de tevê. Chaykin critica, em sua obra futurista, a interferência dos setores econômicos na esfera pública, evidenciada nos Estados Unidos da atualidade. Ao situar-se no futuro mítico, American Flagg projeta a decadência dos valores ansiosamente preservados em sua “aura de inviolabilidade”. O seu protagonista, Reuben Flagg, na linha de heróis de Chandler, Hammet, e Phillip K. Dick, é um aventureiro urbano, falível, liberal e defensor dos ideais democráticos. O cinismo de Chaykin é incontrolável, principalmente quando demonstra a decomposição das virtudes proclamadas pelo governo e destroçadas na intimidade pela corrupção.
Nas HQ modernas, o Estado é inevitavelmente comprometido com o capitalismo e seus braços econômicos. Nesse sentido, o papel dos heróis é fundamental para assegurar as boas relações entre as premissas liberais, o governo e a sociedade civil. Primado do individualismo bem-sucedido, os heróis das HQ consagram-se na mediação social, evitando que os conflitos entre as polaridades econômicas provoquem a desagregação total da sociedade. Mas são psicologicamente incapazes de transformar a realidade na qual se inserem, apesar de todos os poderes.
“Nas HG, luta-se pelo restabelecimento da coesão social, jamais pela mudança das estruturas”.
Segundo um código de honra hegemonicamente apropriado à sua identidade social, esses personagens investidos de poder não podem interferir na esfera pública; só na privada. Essa “orientação” é presente no Capitão América, paradigma do herói instrumentalizado pelo Estado Liberal. Criado durante a Segunda Guerra Mundial, o Capitão América serviu aos Estados Unidos com a alcunha de “A Sentinela da Liberdade”. Na realidade, foi um divulgador insidioso da Doutrina Monroe (“América para os Americanos”), que norteou o movimento de reconstrução cívica e justificou o avanço do imperialismo do país na América Latina e Central sob a influência da política do Big Stick de Roosevelt.
Jô Soares (2) observa que o personagem é uma figura típica do chauvinismo militar que imperava em 1941: “Ao esconder sua verdadeira identidade sob a figura pouco marcial do recruta Rogers, o Capitão América dá a entender claramente que, na sua opinião, o último lugar onde poderia se esconder um bom americano é atrás de um mau soldado. A própria escolha do uniforme, listrado e estrelado como a bandeira americana, deixa transparecer as suas intenções como a preocupação de deixar bem claro: America for Americans”. A própria arma escolhida pelo super-soldado é um paradoxo. “É estranho que um herói tão agressivo tenha escolhido para si um instrumento defensivo. Talvez queira ele, através do escudo, insinuar simbolicamente que só ataca para se defender. Essa imagem parece paradoxal mas, de certa forma, sintetiza todas as desculpas e tomadas de posição internacional frente aos conflitos de que participa. O personagem desaparece no vácuo da II Guerra para ressurgir, décadas depois, no conflito do Vietnã, enaltecendo os valores militares”.
Sonia Bibe-Luyten aponta desconcertantemente o Capitão América como um dos pioneiros da crise existencial dos heróis, com sua célebre frase: “Talvez eu devesse lutar menos… e perguntar mais”. O tema se torna recorrente nos anos 1980 com as séries revisionistas, como “Batman, O Cavaleiro das Trevas” (3), de Frank Miller, onde o herói encapuzado luta contra o Superman, cooptado pela Casa Branca para vencer guerras de conquistas imperialistas e acabar com a atividade de outros heróis nos Estados Unidos do século XXI.
“Como o Estado usaria os super-heróis se eles de fato existissem? Essa é sua crise existencial”.
Nessa história, escrita em 1987, Miller levanta um questionamento que se tornaria usual nos quadrinhos adultos: como o Estado utilizaria os heróis se eles realmente existissem? O inglês Alan Moore levou às últimas consequências essa questão com a sua minissérie Watchmen (4), em que desmascara a neutralidade política dos super-heróis. No universo construído por Moore, a década de 1950 marca o aparecimento dos primeiros super-heróis norte-americanos, alterando profundamente o curso da história mundial. A Guerra do Vietnã foi vencida graças ao alistamento do Dr. Manhattan, um cientista que chegou quase à onipotência devido a um acidente com um artefato nuclear. A história de Watchmen inicia-se anos depois, quando o governo, que havia utilizado os heróis para controlar os conflitos sociais decorrentes de uma crise sócio-econômica interna, decide transformar a atividade dos heróis em contravenção.
Moore estraçalha com a imagem de bom-mocismo dos heróis difundida pelas HQs norte-americanas desde a década de 1930, com Superman. A insanidade, em menor ou maior grau, é o traço que une todos os personagens de Watchmen. O Comediante, que lutou em diversas guerras pelos Estados Unidos, transformando-se em um símbolo a la Capitão América, era um psicótico homicida.
Rorschach, cuja máscara era um teste psicológico behaviorista em movimento, era um esquizofrênico sádico. O débil Nite-Owl foi caracterizado como um saudosista incapaz de se adaptar à realidade, enquanto Ozymandias, dono de um super-intelecto, era visto como um manipulador calculista, capaz de riscar cidades do mapa para garantir uma provável paz mundial. O mais fantástico deles, o Dr. Manhattan, ganhou a estatura de semideus amoral e complexo, alienado da vida banal dos seres humanos. Alan Moore transformou os heróis em “braços da coerção”, seres humanos falhos que se entusiasmavam com a idéia de combater o crime, embora não estivessem longe de praticá-lo em suas ações de vigilantismo.
O herói solitário e desprovido de poderes é a solução para os desmandos do Estado numa outra série de Alan Moore, V de vingança (5). Em 1997, a Inglaterra assume contornos absolutistas e orwellianos, depois de uma guerra nuclear desencadeada em 1988. Erguido dos escombros da democracia liberal em decadência, o novo Estado cria um assombroso aparelho policial responsável pela repressão, tortura, censura de opinião e controle da sociedade civil. Um Estado nazi-fascista, que será destruído pelas bases por V, um personagem enigmático, caracterizado como Guy Fawkes, um católico revoltoso que, no século XVII, participou da Conspiração da Pólvora, movimento que tentou explodir o parlamento britânico. Moore insinua que, destruindo o aparato coercitivo do Estado, é possível minar suas bases para construir uma nova sociedade.
Nessa história, entretanto, a “nova” ordem a ser retomada é a democracia liberal, destruída não tanto pela guerra nuclear, mas pela insanidade dos homens. Como produtos culturais, criados numa dada realidade histórica, os quadrinhos tentam “esfumaçar” o papel do Estado e as contradições fundamentais entre os sujeitos sociais, elevando a luta de classes para o plano da abstração. Em tal dimensão, o Estado funciona quase sempre num âmbito superestrutural, legitimado pelas ações corporativistas. Nesse sentido, as divergências no interior da burguesia traduzem-se não no âmbito político, mas nas relações entre sujeitos a-históricos. É nessa esfera que interferem os heróis, como mediadores dos conflitos horizontalizados.
* Jornalista. Este artigo foi publicado no jornal O Dia, de Teresina, Piauí, em 23-02-1994.
Notas
(1) American Flagg foi publicada originalmente no Brasil pela Editora Cedibra, em 1983. Em 1990 foi reeditada pela Abril Jovem.
(2) O artigo se encontra na obra Shazan, organizada por Álvaro Moya e publicada pela Editora Perspectiva.
(3) Batman, O Cavaleiro das Trevas, série encadernada, foi publicada no Brasil pela Abril Jovem em 1988.
(4) Watchmen, de Alan Moore, série em seis capítulos, foi publicada pela Abril Jovem em 1989.
(5) V de vingança, série em cinco capítulos escrita por Alan Moore, foi publicada pela Editora Globo em 1990.
EDIÇÃO 35, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 41, 42, 43