No último dia 5 de agosto, o egrégio Conselho Universitário da Universidade Federal da Bahia (UFBA) aprovou, por unanimidade, a concessão do título de Doutor Honoris Causa Post-Mortem ao cineasta Glauber Pedro Andrade Rocha, proposto pelo magnífico reitor Luiz Felippe Perret Serpa a partir da solicitação, expressa em abaixo-assinado e encaminhada por 216 membros da comunidade universitária, políticos, intelectuais e outras personalidades da vida baiana. O ato de outorga foi realizado em 26 de setembro de 1994, no Palácio da Reitoria da UFBA.

Esta homenagem reveste-se de grande importância por ser o reconhecimento da grande obra do cineasta por parte da Universidade que ele considerava seu berço acadêmico e fonte dos ensinamentos que resultaram em seus trabalhos fílmicos e literários. Na qualidade de membro da comissão de títulos honoríficos do Conselho Superior, fomos incumbidos de elaborar a defesa da proposta de outorga do preito, quando então tentamos sumariar o trajeto glauberiano a partir de suas principais obras cinematográficas e de outras contribuições.

Apesar da notoriedade deste grande artista baiano, o que temos notado nos últimos anos é um certo grau de desconhecimento, por parte da juventude brasileira, em torno de seu trabalho e do papel desempenhado por ele na história recente do país. A partir desta constatação, acreditamos ser importante trazer para um número maior de leitores as informações por nós conseguidas.
Glauber Pedro Andrade Rocha, filho de Adamastor Braúlio Silva Rocha e Lúcia Mendes de Andrade Rocha, nasceu em 14 de março de 1939 em Vitória da Conquista, Bahia. Atuou em diversas áreas culturais e deixou uma vasta obra artística. Tentar sumariar sua vida e carreira não é tarefa muito simples, entretanto, tentaremos apresentar aqui um roteiro de todo o importante trabalho desenvolvido por esse intelectual, cuja obra é mundialmente consagrada e eleva o nome do Brasil, da Bahia e, em particular, o de sua Universidade.

A vida artística de Glauber Rocha iniciou quando ele, aos nove anos de idade, aluno do Colégio Dois de Julho em Salvador, foi o ator principal da peça El hilito de oro, encenada naquele colégio sob a direção do professor Josué de Castro. O futuro cineasta transferiu-se mais tarde para o Colégio Central da Bahia, onde cursou o clássico e tornou-se líder de uma geração de jovens brilhantes. Em conjunto com Fernando da Rocha Peres, Fernando Rocha, João Carlos Teixeira Gomes, Antônio Guerra Lima, Paulo Gil Soares, Ruy Simões, Calasans Neto e outros, em 1955 Glauber criou o grupo Jogralescas, que marcou profundamente a vida intelectual soteropolitana. Os neojograis reuniam, em atos teatrais, recitações de poesias brasileiras de autores como Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles, Godofredo Filho, Carvalho Filho e outros. Ainda naquele colégio o jovem Rocha co-escreveu o balé Sefanu.

“O “período das luzes” influencia o mundo provincial baiano e o fenômeno Glauber”.

Para entender um pouco mais o fenômeno Glauber Rocha, é necessário situar o mundo provincial baiano a partir do sempre lembrado “período das luzes”, iniciado, possivelmente, no governo de Otávio Mangabeira, em que se notabilizou o grande educador Anísio Teixeira, secretário de Educação e Saúde.

A criação da Universidade da Bahia, graças ao empenho de seu primeiro e mais duradouro reitor, Edgard Rego Santos, mudou definitivamente o ambiente artístico-cultural da velha Bahia. De acordo com o acadêmico e arquiteto Paulo O. de Azevedo, o renascimento baiano surgiu dentro de um contexto plural, em que se interligavam a derrota do nazifascismo e as lutas de emancipação colonial, no plano mundial; o término da ditadura de Vargas e a Constituição de 1946, no plano nacional; o levante de jovens intelectuais baianos, o advento do governo democrático de Mangabeira e a criação da Universidade da Bahia, no plano estadual. Esses eventos provocaram o grande movimento cultural baiano, que se tornou reconhecido em todo o país, atraindo para a capital da Bahia grandes nomes das artes e da cultura. Muitos desses visitantes ajudaram a modificar sensivelmente o panorama cultural soteropolitano e interagiram com o nosso cineasta.

Em 1957, quando entrou para a Faculdade de Direito da UFBA, então regida pelo magnífico reitor Edgard Rego Santos, Glauber manteve contato com uma fase esplendorosa das artes. Interagiu fortemente com diversas unidades universitárias, dentre as quais a Escola de Teatro, sob a direção do célebre Eros Martim Gonçalves, que muito o ensinaria. Ele também interagiu com membros dos Seminários Livres de Música, dirigido por Hans Koellreuter; com a Escola de Dança, cuja grande estrela era a dançarina de origem polonesa Yanka Rudzka, e também com a arquiteta e cenógrafa Lina Bo Bardi, que vivia entre o Museu de Arte Popular e o Museu de Arte Moderna, criados por ela naquele período. Além destes, muitos outros artistas e intelectuais atuaram com o futuro cineasta, dando-lhe ciência de suas próprias realizações. Glauber participou àquela época da fundação da Editora Macunaíma, da revista Mapa e da Yemanjá Filmes; e mais adiante trabalhou como jornalista em O Movimento, na revista Ângulos (da Faculdade de Direito) e no seminário Sete Dias, fundado por Ariovaldo Mattos e Rosalvo Barbosa Romeu. Neste último jornal escreveu sobre cinema, arte que lhe daria renome mundial.

O início da ligação com a arte cinematográfica remonta à sua fase infantil, quando em Vitória da Conquista começa a sonhar com filmes westerns. Aos dez anos, já em Salvador, graças à proximidade da loja Adamastor de propriedade de sua progenitora, com a Livraria Civilização Brasileira, na Rua Chile, entrou em contato com muitos futuros cineastas e homens de cultura, dentre os quais o bacharel e crítico cinematográfico Walter da Silveira, fundador do Clube de Cinema da Bahia, e, reconhecidamente, seu grande mentor intelectual.

Em 1956 o desejo de fazer cinema o fez procurar o político Rosalvo Barbosa Romeu (vice-governador da Bahia em 1994), à época o secretário da Prefeitura de Salvador, de quem recebeu apoio, emprego na prefeitura e uma dotação no orçamento municipal para a criação da cooperativa Yemanjá Filmes. Neste período ele visitou alguns membros da famosa “escola” da Crítica Mineira de Cinema, e de lá seguiu para o Rio de Janeiro, onde se tornou assistente de direção no filme Rio Zona Norte, do cineasta Nelson Pereira dos Santos. Retornando a Salvador participou da fundação do Jornal da Bahia, assumiu a direção do “Suplemento Literário” e introduziu o movimento concretista na Bahia. Mais tarde fez crítica de cinema no Jornal do Brasil e trabalhou na coluna “Krista”, do Diário de Notícias, ao lado de sua primeira esposa, a atriz Helena Ignês, e do futuro cineasta Paulo Gil Soares.

Em 1959 Glauber lança sua primeira obra cinematográfica, o curta-metragem Pátio, baseado no conto de sua autoria Olhos armados de ódio, publicado no Diário de Notícias. Seu segundo trabalho fílmico permaneceu inacabado: o curta-metragem Cruz na praça, baseado no conto glauberiano “A retreta na praça”, publicado no Panorama do conto brasileiro e lançado em 1959 por Vasconcelos Maia e Nelson Araújo.

O primeiro grande momento do cineasta surgiu com o longa-metragem Barravento, do qual ele era inicialmente produtor; por motivos extras foi forçado a dirigir esse filme e a modificar um pouco o roteiro original. Por esse trabalho recebeu o prêmio Opera Prima do Festival de Karlov-Vary (antiga Tcheco-Eslováquia).

“Deus e o Diabo na Terra do Sol é considerado um dos dez melhores filmes do mundo”.

Barravento tornou-se um marco do Cinema Novo, do qual Galuber foi o grande líder, maior teórico e realizador. Jean-Claude Bernardet disse, mais tarde: a “importância fundamental de Barravento na história do cinema brasileiro vem do fato de ser ele o primeiro filme que ajudou a captar os aspectos essenciais da atual sociedade brasileira”. Barbosa Romeu, enfaticamente, escreveu: “Este filme tenta reorganizar a mitologia negra segundo a dialética religião/economia. Religião, ópio do povo. Abaixo o Pai. (…) Abaixo a reza. Abaixo o misticismo”. Este primeiro longa-metragem inspirou críticas que o compararam a La terra trema, de Visconti, a Que viva México, de Eisenstein e a Tabu, de Murnau. O interessante é que estas obras do cinema mundial ainda não eram de seu conhecimento àquela época.

Em 1963 Glauber lança um clássico da literatura cinematográfica: Revisão crítica do cinema brasileiro, no qual tenta buscar uma raiz para o movimento Cinema Novo e redescobre o pioneiro Humberto Mauro, o famoso precursor de Cataguazes, Minas Gerais. Neste texto ele afirma: “De fato, é nossa opinião que, no presente momento, a mais eficiente política é estudar Mauro, e por este processo repensar o cinema brasileiro, não no contexto de uma indústria, mas em termos de filmes que sejam expressões do homem”. Em paralelo a essas realizações o cineasta baiano participou da produção dos filmes A grande feira, Tocaia no asfalto e Um dia na rampa, todos rodados na Bahia por outros diretores.

Naquele mesmo ano, iniciaram-se as filmagens do famoso Deus e o Diabo na Terra do Sol, que recebeu aplausos da crítica mundial e é hoje considerado, pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, um dos dez melhores filmes da história do cinema. Influenciada pela arte de Eisenstein, Ford e Buñuel, inspirada em Euclides da Cunha e José Lins do Rego e com música de Heitor Villa-Lobos, esta obra-prima do cinema moderno define o verdadeiro estilo glauberianao, que influenciou cineastas do mundo inteiro.

“Só a violência do oprimido faz o colonizador perceber a vida do colonizado”.

Ao relatar o drama de Manuel e Rosa, mais uma vez ele fundiu os grandes aspectos da cultura popular e mostrou ao mundo a tragédia dos sertanejos famintos. A injustiça, a fome, o escapismo, o misticismo – enfim, a desgraça que atinge aqueles homens – ganharam na concepção glauberiana um tratamento literariamente antológico e visualmente fantástico. Ao cruzarem a sua louca caminhada com o beato Sebastião (Deus Negro) e o cangaceiro Corisco (Diabo Louro), Manuel e Rosa vivem o drama que serve de pretexto para a grande discussão dicotômica do diretor. Lembramos que, ao enfocar o uranismo latente na relação Manuel/Sebastião, bem como aquele quase explícito em Rosa/Dadá, o cineasta aponta a dualidade bem/mal, Deus/Diabo e a possibilidade de inversão no papel de cada um deles. Ao estudar estes aspectos, disse Ciment: “O cinema de Rocha em Deus e o Diabo é profundamente dialético e a oposição de dois lados que se cancelam conduz a uma nova consciência. (…) O conflito entre as duas forças produz uma terceira”. Este filme, rodado nos sertões de Cocorobó e Monte Santo, foi lançado em 1º de julho de 1964 no Rio de Janeiro e ovacionado no Festival de Cannes (França). Recebeu ainda o Grande Prêmio no Festival Internacional de Cinema de Porreta Termi (Itália); o prêmio da crítica no Festival de Acapulco (México); o Grande Prêmio Latino-americano em Mar del Plata; e vários prêmios no Brasil. O roteiro foi publicado na coleção Cineform (Itália) e em livro de Paulo Perdigão (Brasil).

Com essa obra, Glauber iniciou a célebre teorização em torno da violência, que resultou, em 1966, no famoso manifesto A estética da violência, publicado na Europa e no Brasil e que chamou a atenção do mundo intelectual europeu para a denominada “estética da fome”. Neste trabalho ele enfatiza a violência como uma reação natural do oprimido, pois é somente a partir dela que o opressor pode se aperceber de sua presença. Em torno deste tema ele escreveu outros artigos, e no seu “Culture de Faim” afirmou: “O comportamento normal de um homem faminto é a violência, mas a violência de um faminto não é primitivismo; a estética da violência, antes de ser primitiva, é revolucionária; e é este o momento em que o colonizador se apercebe da existência do colonizado”. Com referência a este aspecto de seu trabalho, Ciment comentou: “a natureza da arte de Rocha é melhor entendida a partir do seu tratamento da violência. Violência é, para ele, como é para Engels, o meio pelo qual a história avança”.

No período 1965-1966, Glauber Rocha dirigiu os documentários Amazonas Amazonas e Maranhão 66, em que denunciou a miséria maranhense em paralelo às festividades do político Sarney, então governador. É nesta época que prepara o roteiro e a produção de mais uma obra-prima do chamado cinema político, o clássico Terra em transe, conhecido internacionalmente como Land in Anguish, sobre o qual comentou: “É um filme sobre o que existe de grotesco, horroroso e pobre na América Latina”. Neste filme ele também analisa a situação incômoda do intelectual latino-americano: “Nos países subdesenvolvidos a miséria do povo é muda, o povo não tem consciência de sua miséria, e as únicas pessoas que tomam conhecimento do subdesenvolvimento, da miséria do povo, são os intelectuais”.

“Dragão da Maldade, consagração definitiva no Festival do Cinema de Cannes, em 1969”.

Fiel à teorização da violência, Terra em transe situa-se no imaginário Eldorado, onde alguns personagens marcantes nos levam à reflexão. Um deles é o intelectual Paulo Martins, que oscila entre seu chefe, o líder conservador católico e golpista Porfírio Diaz, e o líder popular reformista Felipe Vieira, governador da província de Alecrim. Com referência a este personagem, disse Glauber: “Ele representa um comunista típico da América Latina, coloca-se a serviço do partido quando este o pressiona, mas gosta da burguesia a serviço da qual ele está. No fundo despreza o povo”. Ao analisar este trabalho, Stam afirmou tratar-se de “um estudo explosivo de arte e política no Terceiro Mundo, o filme mais pessoal de Rocha, assim como sua contribuição mais brilhante para o cinema político”. Terra em transe recebeu as seguintes láureas: Prêmio da Crítica Internacional no XX Festival de Cannes; Prêmio Luiz Buñuel da crítica espanhola; prêmio de Melhor Filme da crítica cubana. Recebeu oito prêmios no XX Festival de Locarno, na Suíça; prêmio da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci); além de inúmeros prêmios no Brasil. O roteiro foi publicado em L’avant scène du cinéma e na revista alemã Film (1968).

Em 1968 Glauber Rocha dirigiu o documentário 1968 e o média-metragem experimental Câncer. Preparou também seu quarto longa-metragem, O dragão da maldade contra o santo guerreiro, filme que o consagrou definitivamente e pelo qual recebeu, das mãos do célebre cineasta italiano Luchino Visconti, o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes de 1969. Neste novo filme o diretor trouxe de volta o “matador de cangaceiros” Antônio das Mortes, o mais famoso de todos os seus personagens, desta vez lutando contra a tirania dos coronéis. A presença de Antônio das Mortes em Deus e o Diabo na Terra do Sol, seu segundo longa-metragem, é ao mesmo tempo ambígua e poderosa. Ao matar os miseráveis beatos e cangaceiros, pago pela Igreja e pelos coronéis, ele tinha consciência do que fazia, mas isto não o preocupava. Para seu criador era um bárbaro, um primitivo, uma consciência em transe.

Por este novo trabalho (O Dragão) Glauber recebeu outros importantes troféus: o Prêmio Luiz Buñuel; o prêmio da Fipresci; o prêmio da Confederação Internacional de Cinemas de Arte e Ensaio; o prêmio máximo no Festival de Plovaine (Bélgica); e inúmeros outros prêmios no Brasil.

O filme foi exibido no Canal 2 da TV francesa e abriu-lhe as portas internacionais. Iniciou-se então a “fase tricontinental”, e seu trabalho expandiu-se por Europa, África e América Latina. Em Congo Brazzaville, na África, ele filmou Der Leone has Sept Cabezas, em que “o tema fundamental é a reflexão sobre a possibilidade de um cinema político do Terceiro Mundo”. Neste célebre trabalho ele teoriza e conclui que a maior contradição do cinema é sua própria linguagem, além de denunciar a opressão imperialista sobre os povos do Terceiro Mundo. Neste trabalho o cineasta baiano demonstrou magistralmente uma tremenda sensibilidade no tratamento dos aspectos mais belos da iconografia iorubana. Apresentou-nos ainda uma sensualíssima loura passeando nua, representando o próprio imperialismo, ao lado de um agente da CIA, um negro serviente às multinacionais, negros revolucionários organizando-se e um padre branco, representando o sentimento cheguevariano do diretor naquilo que ele pressentia ser a ajuda não-descartável de algum consciente de fora. Além destes personagens há ainda o português colonizador.

“Terra em Transe é uma obra bastante atual que denuncia a cultura política brasileira”.

Com referência a Der Leone disse Glauber: “O leão é um filme popular, produto de uma cultura popular. Ele é antiimperialista. Ele é revolucionário. Ele chora e grita porque o intimismo não é a linguagem da revolução. A razão pura é um privilégio da opressão, mas através da dialética da violência podemos chegar ao lirismo. (…) Somente um miserável como eu pode dizer que meus filmes são produtos da dor, do ódio, de um amor frustrado impossível, da incoerência do subdesenvolvimento”. O outro grande evento desta fase foi o filme rodado nos arredores de Barcelona, Espanha, o Cabezas Cortadas.

Após estes trabalhos surgiram em torno do cineasta grandes polêmicas, que o deixaram com sentimento de perseguição. Com a prisão de seu cunhado, o cineasta Walter Lima Júnior, no Brasil, Glauber Rocha optou pelo auto-exílio. No exterior, além de realizar filmes viu seu primeiro livro editado na Espanha. Na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, foi convidado para discutir seu novo manifesto, A estética do sonho. No Chile realizou o documentário Definição, sobre os brasileiros exilados. Trabalhou como ator no filme Vent d’est, de Jean-Luc Goddard (França) e em O rei dos milagres, dos cineastas Joel Barcelos e Barceloni. Rodou dois super-8, Mossa no Marrocos e Letícia. Transferiu-se para Cuba, onde iniciou o longa-metragem História do Brasil, concluído em Roma em 1974, com a co-direção de Marcos Medeiros e a produção de Renzo Rosselini e da RAI. No Uruguai, em 1972, reencontrou Darcy Ribeiro e o presidente deposto Jango Goulart, de quem afirmou ter recebido sinais de crença na possibilidade de abertura política no Brasil. Rodou, em super-8, Super Paloma, e neste período foi lançado pela Editora Minard um livro de Michel Esteve sobre seu trabalho. Uma tese doutoral sobre a obra de Glauber foi defendida por Rogério Luz, na Universidade Católica de Louvain (Bélgica). Em 1974, o crítico René Gardies defendeu uma tese de doutoramento, na Universidade de Paris, sobre sua filmografia e lançou o livro Glauber Rocha, cinéma d’aujourd’hui. A partir de então intensificaram-se na Europa os estudos em torno da obra do cineasta baiano.

“A possibilidade de abertura política gerou desde o início imensa controvérsia”.

O início da grande crise que envolveu Glauber Rocha deu-se a partir da célebre carta enviada por ele ao jornalista Zuenir Ventura e publicada na revista Visão. Este documento histórico, que hoje serve de reflexão para todos aqueles que não o entenderam, revela sua face de intelectual maldito e profeta. Após receber de João Goulart, no Uruguai, algumas aulas sobre o pensamento político brasileiro, Glauber ousou acreditar no projeto de abertura política do general Ernesto Geisel e afirmou que não admitir a possibilidade de uma abertura política seria uma ação insensata. Também argumentou com Fidel Castro, por carta, que a guerrilha urbana não era solução para os problemas políticos de seu país. Somente após sua morte prematura, aos 42 anos de idade, é que suas palavras começaram a ser compreendidas e tidas como premonitórias.

Em Roma ele escreveu o roteiro O nascimento dos deuses (La nascita degli dei), cuja primeira parte se intitula Ciro, lua do Oriente e a segunda parte, Alexandre, sol do Ocidente. Retornando à América Latina, em 1974, realizou pesquisas para seu projeto “América nuestra”, e de volta a Roma filmou em 15 dias o longa-metragem Claro.

Após sua estada na Universidade de Berkeley, na Califórnia, decidiu interromper o auto-exílio. Meses depois, no Brasil, presenciou a morte de seu velho amigo, o pintor Di Cavalcanti. Dirigiu o documentário Di Cavalcanti e triunfou novamente ao receber, por este trabalho, o prêmio especial do júri do XXX Festival de Cannes, em 1977. A irreverência com que enfrentou o tema da morte trouxe-lhe problemas com a família do morto e, como consequência, veio a interdição judicial do filme. Este trabalho, que tem mais dois títulos – Di-Glauber ou Ninguém assistiu ao formidável enterro de sua última quimera, somente a ingratidão, essa pantera, foi sua companheira inseparável –, é hoje considerado um clássico do cinema antropológico.

Naquele mesmo ano Glauber lançou o romance joyceano-rosiano Riverão Sussuarana, em que aproveitou para recontar delirantemente a morte trágica de sua irmã, a atriz Anecy Rocha, encontrada morta num poço de elevador. As dificuldades nesse período foram imensas, mas mesmo assim realizou o média-metragem Jorjamado no cinema, escreveu para o Correio Brasiliense e viu sua obra novamente discutida em livro e em retrospectivas, tanto no Brasil como no exterior. No final daquele ano iniciou seu derradeiro filme, A idade da terra, possivelmente seu mais ambicioso e incompreendido projeto de vida, que lhe trouxe reconhecimento póstumo, mas dissabores em vida, particularmente no Festival (Mostra) Internacional de Veneza de 1980. Antes, porém, no Brasil, comandou o programa televisivo Abertura, na antiga TV Tupi, debatendo os mais diferentes temas, inclusive a abertura política que tanto defendeu.

“Morto, Glauber Rocha deixa atrás de si tremendo vazio no mundo na Sétima Arte”.

A morte de seu pai, Adamastor, em 1980, os problemas com seu último filme, a incompreensão de muitos companheiros, as críticas daqueles que confundiam suas palavras e a falta de perspectivas no país levaram-no novamente à Europa, onde conheceu o isolamento, a incompreensão e a falta de ajuda para realizar novos projetos. Reconhecido internacionalmente como “o maior cineasta latino-americano de todos os tempos”, paradoxalmente viveu os últimos anos isolado, escrevendo torrencialmente. Seu último livro, Revolução do Cinema Novo, é praticamente um testamento artístico, no qual descreve sua vida, enfatiza o grande amor pelo Brasil e pela Bahia e dedica várias passagens à fase utópica juscelinista da “renascença baiana”, que tinha a Universidade da Bahia no centro, graças à visão do reitor e à qualidade de seus docentes.

Tentamos até aqui sumariar o trabalho fílmico de Glauber Rocha, apesar de reconhecermos muitas lacunas nestas relembranças. Dedicamo-nos à sua contribuição à cultura mundial, o trabalho fílmico, apesar de acharmos injusto não termos discutido um pouco suas outras facetas. Além de cineasta, Glauber Rocha será lembrado como crítico de cinema e literário, colunista mundano, jornalista político, repórter policial, teórico do cinema, criador de roteiros, compositor e poeta, teórico da violência, escritor, teatrólogo e contista premiado, produtor e técnico cinematográfico, militante político, ator, intelectual anarco-político e também exemplo de nacionalista exacerbado, cuja obra perdurará para sempre. Nela encontramos referências a seus ídolos Jorge Amado, Carlos Gomes, Villa-Lobos, Castro Alves, Euclides da Cunha, Lins do Rego, Guimarães Rosa, Edson Carneiro, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Di Cavalcanti, Nelson Pereira dos Santos, Humberto Mauro, Clementina de Jesus, Sérgio Ricardo, Mário Peixoto, Drummond de Andrade, Augusto dos Anjos, Haroldo e Augusto de Campos, Ferreira Gullar e também Serguei Eisenstein, John Ford, Che Guevara, James Joyce, Jean Luc-Goddard, Pier Paolo Pasolini, Orson Welles, Luiz Buñuel e os povos do Terceiro Mundo.

Morto, Glauber Rocha deixou atrás de si um tremendo vazio no mundo do cinema, nos mais diferentes níveis, e na vida cultural brasileira. Cidadão do mundo, ele viveu intensamente uma das fases mais ricas e conturbadas deste século: os anos 1960, aqueles que coincidiram com sua explosão inicial, revelaram-lhe diferentes utopias, tão raras em nosso tempo. Viveu dialeticamente, brigando e sorrindo. Seu cinema é grandiloquente, energético, carnavalesco, trágico, operístico e, acima de tudo, glauberiano. Ele se fez escola pelo simples fato de ter sido um verdadeiro autor cinematográfico, característica que o imortalizou. Quando Alex Viany, Pereira dos Santos, Visconti, Buñuel, Kurosawa, Martin Scorcese e tantos críticos e mestres da arte cinematográfica reverenciaram sua contribuição para a Sétima Arte, sempre deixaram evidente a figura do autêntico autor de cinema. Pela consciência em torno do cinema que criava pôde teorizar e entender toda a riqueza da linguagem fílmica cinemanovista: “Nosso sistema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova, e por isso mesmo nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa”.

“Glauber encarna um dos momentos mais altos da cultura não-colonizada da América Latina”.

Agora damos um corte e nos lembramos de algumas falas delirantes de Glauber Rocha, quando adoentado, em Portugal, ele afirmou: “Sou um sebastianista (…) Em meu filme, o nome do profeta visionário, o beato, é Sebastião. E Sebastião é um nome forte no Brasil. Deixou de ser aristocrático. (…) É como se o rei tivesse desaparecido dentro das tripas do povo para renascer vomitado pela coletividade terceiro-mundista e tropicalista. Então, tudo me conduziu a Portugal, numa viagem metafórica, uma viagem poética”. Ao afirmar tais coisas, Glauber talvez não desconfiasse de que seu fim estava se aproximando e que, sem querer, faria em estado quase comatório, a bordo de um Boeing, o trajeto Portugal-Brasil, para morrer no dia 22 de agosto de 1981. Naquele sábado, de manhã cinzenta, encerrou-se a longa agonia.

Transcrevemos as palavras de Gabriel García Marquez ditas no Encontro de Intelectuais pela Soberania dos Povos da Nossa América, em Havana (Cuba): “Glauber Rocha encarna na vitalidade atual e futura de sua imagem um dos momentos mais altos da expressão cultural não-colonizada desta nossa América”.

* Diretor do Instituto de Física da UFBA, PhD em Física Teórica pela Universidade de Essex, UK e DIC em Física Matemática pelo Imperial College, de Londres. É autor do livro Glauber Rocha revisitado e co-autor de Introdução ao cálculo das funções elípticas jacobianas.

Bibliografia

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EDIÇÃO 35, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 59, 60, 61, 62, 63, 64