O cinema brasileiro vai bem, obrigado. Passou por maus pedaços desde que Collor de Mello assumiu o governo do país e acabou com as leis e as entidades de defesa do cinema nacional. Mesmo assim, 1993 terminou com sete filmes novos prontos e 26 em produção – pouco perto do que se produzia antes de Collor. Mas bastante o suficiente para deixar claro que o cinema brasileiro não foi quebrado pela insânia neoliberal.

Um dos principais títulos dessa leva é Lamarca, coração em chamas, de Sérgio Rezende, que fala a Cloves Geraldo sobre seu filme e o cinema brasileiro e polemiza uma noção de vanguarda muito difundida e que não tem nada a ver com a reflexão a respeito do país e de nosso povo.

Rezende: Tenho 42 anos, nasci no Rio de Janeiro. Casado, três filhos. Estudei três anos de Direito, parei. Estudei quatro anos de Comunicação, parei. Comecei no cinema em 1973, com meu primeiro curta-metragem. Em 1975 fiz o primeiro curta mais profissional, chamado Leila para sempre Diniz. Depois fiz mais alguns curtas. Em 1979 e 1980 trabalhei no meu primeiro longa-metragem, Até a última gota, um documentário sobre o comércio de sangue humano na América Latina. Um filme muito difundido no exterior e premiado na Espanha. Em 1983 fiz O sonho não acabou, sobre a primeira geração de Brasília. Em 1985 rodei O homem da capa preta, lançado em 1986. Doida demais foi filmado em 1988, mas só estreou três anos depois. Em 1991 filmei The Child from South, em Moçambique, com produção inglesa. Agora estamos aí com Lamarca, coração em chamas.

Cloves: Vamos começar com Lamarca. Como nasceu o projeto?

Rezende: Ocasionalmente. Uma vez, numa livraria, me caiu nas mãos o livro Lamarca, o capitão da guerrilha, de dois jornalistas baianos, Oldack Miranda e Emiliano José, antigos militantes da AP. Eles tinham sido presos e na ocasião conheceram Odorico Campos Barreto, que era irmão de Zequinha, companheiro de Lamarca. O livro que escreveram é muito bom, extraordinário. Através dele tomei conhecimento da história de Lamarca, com detalhes que eu desconhecia. Percebi que ali havia uma grande história e um grande personagem que poderia render um bom filme. Isso foi em 1990. No ano seguinte viajei para a Europa e para a África, e quando voltei ao Brasil retomei o projeto. Estávamos em pleno governo Collor. Um momento de cinismo, de um governo do reino mineral, em que a sensibilidade e a cultura haviam desaparecido, tudo o que era brasileiro estava desvalorizado, desde o carro, até a roupa, a cultura, o pensamento… Achei que era oportuno fazer um filme sobre um brasileiro que não abriu-mão de seu país, que lutou desesperadamente para transformar o Brasil – e ficou aqui –, que era oportuno contrapor a sinceridade desse homem ao cinismo reinante naquela época. Aí mergulhei de cabeça. Procurei a família de Lamarca para resolver a questão dos direitos e procurei levantar verba para a produção. Foi nessa época que você esteve no Rio e conversou comigo sobre a possibilidade de contar com o apoio do governo do Espírito Santo.

Cloves: Além de ler o livro você teve que desenvolver pesquisas. Como foi esse processo?

Rezende: Foi uma coisa interessante esse momento de luta armada no Brasil, geralmente feita por pessoas de alto nível intelectual. Eram estudantes, jornalistas, intelectuais. Esse pessoal todo refletiu muito sobre isso e muitos livros foram escritos. Há uma vasta literatura sobre esse momento. Fernando Gabeira, Alex Polari, Alfredo Sirkis, muita gente escreveu sobre a luta armada. Fora os historiadores. Um livro que teve uma importância enorme para mim foi Combate nas trevas, de Jacob Gorender. Dei sorte também de nesse momento estar saindo o livro Yara, de Judith Patarra, que traz muita informação sobre Lamarca. Também conversei com muita gente. Com Luís Eduardo Greenhalgh, que foi vice-prefeito de São Paulo no tempo da Erundina. Ele havia sido advogado da família de Lamarca – e parece que agora ganhou uma ação de pensão – e por isso conhecia bastante os militantes do MPR em São Paulo. Esse pessoal organizou um almoço, e fomos eu, Marisa Leão, a viúva Marina, os filhos de Lamarca e velhos companheiros dele. Depois, no Rio, também conversei com muita gente. Com Salgado, que havia sido dirigente da área popular, com Herbert Daniel… Todas essas pessoas me passaram uma admiração incrível por Lamarca. Herbert Daniel, que era o intelectual, depois se envolveu em outras lutas: a questão das minorias, dos homossexuais, da Aids… Ele dizia: “Nunca conheci um homem tão carismático quanto Lamarca. Não que ele fosse um ser humano perfeito, mas tinha coisas de cidadão, de idoneidade”. Eu fui me entusiasmando, conhecendo Lamarca através da literatura, da família, das pessoas que estiveram ao lado dele.

Cloves: Você sofreu alguma pressão para não fazer esse filme?

Rezende: Não. Na verdade não sofri nenhuma pressão direta, mas não encontrei muito apoio. Tivemos o apoio do Espírito Santo, que foi fundamental, mas não de empresários, de outras instituições. Tínhamos a Lei Rouanet e não conseguimos um tostão. Uma vez fui com Marisa Leão a uma festa, no Rio de Janeiro, e o dono da casa a chamou: “Vem cá que quero te apresentar uma pessoa”. Apresentou-lhe um cidadão e disse: “General, esta aqui é a produtora Marisa Leão, que vai fazer um filme sobre Lamarca”. Esse homem era o general Leônidas Pires Gonçalves, que tinha comandado o cerco ao Vale do Ribeira. Acabou a festa! O general urrava, espumava: “Como!? Esse homem é um traidor! Isso é um desserviço que a senhora vai prestar ao Brasil. A senhora não vai contar com apoio nenhum”. Mas Marisa foi persistente. “Precisávamos de apoio, de caminhão, armas, material do Exército. O Exército já cedeu material até para produções estrangeiras. Para Luar sobre Parador, filmado em Ouro Preto, cedeu tanque, armas, tropas. Vamos fazer um filme brasileiro sobre um brasileiro. Achamos que o Exército deveria…” Bem, fomos a Brasília, ao Serviço de Comunicação do Exército, e Marisa procurou um coronel para resolver o problema. Eles ficaram sensibilizados: “Aquele homem era um dos nossos, e nos traiu. Mas vou levar seu pedido às altas esferas no Rio, vamos ver…” Essas pessoas, que foram donas do Brasil em determinado momento, agora também pretendem ser donas da história do Brasil. Ah, não!

“Um brasileiro simples, filho de um sapateiro do exército, que sempre sonhou ser soldado”.

Cloves: Sabemos que a história oficial omite o que não interessa ao Estado. Dentro dessa realidade, qual a análise que você faz de Lamarca para as novas gerações e principalmente para a história real do país?

Rezende: Lamarca era um brasileiro, um homem simples, filho de um sapateiro do Estácio. Sempre sonhou ser soldado, tinha fascínio por aquela vida. Um soldado, não um intelectual. Nenhuma formação teórica sólida, nada disso. Mas tinha a capacidade humana de se indignar diante da miséria, do sofrimento do povo. E essa coisa patriótica de ser brasileiro, de lutar pelo Brasil. Acho que na trajetória política de Lamarca há alguns equívocos, muitos erros de avaliação. No varejo há uma série de pequenos equívocos, mas no atacado, ele é definitivamente mais um. As idéias de Lamarca – de justiça social, de transformação, de revolução – são cada dia mais necessárias, principalmente depois de sua morte. É preciso ver que existe uma necessidade de transformação profunda na sociedade brasileira. Saiu o PC e já apareceu o José Carlos Não-sei-do-que, e daí por diante. É uma elite permanente, que toma conta de tudo, se aproveita e se apropria do país. A meu ver, também essas coisas de que falamos antes – não abrir-mão do país, ser brasileiro, esse sentido mais alto de patriotismo – têm de ser resgatadas. Esse negócio de querer ir para Miami, Portugal, essa ilusão de que o Brasil pode caber em outro país não adianta nada. Como se nós todos pudéssemos abandonar o Brasil e viver em outro lugar!
Essa questão também me toca muito por causa do próprio cinema brasileiro. Nosso cinema é um pouco como foi a luta de Lamarca: uma coisa que aparentemente não existe e não tem chance por aí, que está fadada ao fracasso. Com aquele pequeno grupo de militantes, diante da força da repressão, daquela estrutura, Lamarca era uma coisa fadada ao fracasso – porque, numa análise fria, você sabe, aquilo não ia dar certo – e mesmo assim ele mergulhou na luta. É o lado trágico, de uma tragédia grega, a história de um sujeito que vai cumprir seu destino. O mesmo acontece com o cinema brasileiro. O cara olha e diz: “Esse negócio não vai dar certo, não tem a menor chance diante dessa avalanche do cinema americano, do poder das multinacionais. Não dá para fazer um negócio brasileiro, um filme sobre o Brasil”. Lamarca foi isso: erros e acertos nessa luta pela justiça social, pela transformação da sociedade brasileira. E a coragem de fazer isso, de ir até o fim.

Cloves: Acompanhando a sua cinematografia, observamos uma preocupação muito grande em retratar o Brasil. Você fez isso com Tenório Cavalcante. Depois foi à África expor o problema do negro. E agora fez Lamarca, refletindo uma outra face da história do Brasil. Você acha que é esse o papel do cinema?

Rezende: Sim. Tenho colegas que dizem: “Faço filme para mim e para os meus amigos”. Então pergunto: “Com que dinheiro?”. Com dinheiro do Estado. Da Embrafilme, na época. E o deputado Inocêncio de Oliveira? Com o dinheiro da seca fez uns poços na fazenda dele. Pô, o cara pega dinheiro para as obras da seca e faz poços na própria fazenda! Isso é um escândalo! Na área da cultura alguém pega o dinheiro do Estado e faz um filme, da mesma forma que um deputado se apropria do dinheiro dos nordestinos morrendo de sede.

“O cinema brasileiro não pode ser apenas entretenimento, tem que ser um veículo autônomo de reflexão”.

Acredito que o cinema brasileiro não possa resistir sem o apoio do Estado. É verdade que esse apoio oficial nos coloca uma responsabilidade social: fazer alguma coisa para a sociedade, e não para nós mesmos e para os amigos. Não é fazer simplesmente um cinema de esquerda, sem condições de enfrentar essa concorrência brutal. Mas o cinema brasileiro não é um cinema de entretenimento, não pode pretender ser isso. Primeiro porque não temos condições de realizar uma coisa assim. Temos aí o que vem de Hollywood, filmes de US$ 100 milhões, com camelos, dromedários, dinossauros. Isso aí já resolve o problema de entretenimento. Tem esse negócio que a televisão faz, as novelas. Por isso o cinema brasileiro tem, necessariamente, que refletir a sociedade, ser um veículo autônomo de reflexão sobre o Brasil.

No Rio você vê o Brizola jogando aqueles tijolaços no Roberto Marinho toda semana, mas a estagnação na área cultural continua. Aí a gente diz: “Qual a alternativa?”. A alternativa, penso eu, seria desenvolver o cinema, que é um negócio descentralizado, não um poder concentrado como a televisão. Tem vinte, trinta diretores fazendo cinema, com idéias, visões, e por isso poderiam se opor à posição centralizada da televisão. A meu ver, o cinema pode ser uma coisa potente, transmitir às pessoas, não digo uma mensagem, mas o conhecimento de uma história, gerar, proporcionar material para uma reflexão. E isso tudo feito com emoção. O momento da ditadura foi traumático para a vida brasileira. É pelos traumas pessoais que a gente vai ao psicanalista, e não adianta nada chegar lá e contar friamente: “Comeram mamãe!” É preciso reviver emocionalmente o fato. Mergulhar nele, chorar, urrar, berrar e se emocionar para recuperar alguma coisa. Creio que a ditadura procurou botar uma pedra de gelo naquela luta. Um homem não era um homem, era um subversivo, um terrorista. Os militares da época e a imprensa apresentaram Lamarca com essa frieza, quando na verdade ele era apenas um brasileiro tentando mudar as coisas. Neste caso é preciso nos voltarmos para a dimensão humana. O que aconteceu naquele momento não foi uma luta de um extraterrestre, uma guerra nas estrelas. Foi uma guerra aqui mesmo, no Rio de Janeiro, Vitória, Minas Gerais, Pará, no campo da Bahia. Uma luta travada por um brasileiro com pai, mulher, filhos, alegrias, sentimento, dor, desespero, por uma pessoa que vivia com o pensamento no seu país. Diziam: “Esses caras querem o comunismo no Brasil”. Isso também é uma maneira de esfriar as coisas. Quando Collor assumiu o poder, disseram: “Collor acabou com a cultura porque a esquerda não opinou… Collor está acabando com a cultura como revanchismo, porque a esquerda não o apoiou, a cultura é coisa de esquerda”. Mas não foi revanchismo. Afinal, quem poderia ser crítico? Quem poderia abrir o olho para o que ele pretendia fazer? Uma das peças eram os artistas. Então, de cara, viu que precisava descartar esses caras para fazer tudo o que fez. Um cinema brasileiro forte, capaz de refletir o país, de levantar questões, discussões, é fundamental. Essa é a função do cinema brasileiro.

Cloves: Você está afirmando que o cinema pode contribuir para um processo de se repensar o país. De que maneira isso poderia ser feito?

Rezende: Collor foi a uma festa do cinema americano na véspera de tomar posse em Brasília. No dia seguinte acabou com o cinema brasileiro. Em 1953, quando a Vera Cruz tinha toda aquela estrutura, Stone veio ao Brasil e jogou uma pá de cal em cima dela. A Vera Cruz tinha feito O cangaceiro, que ganhou um prêmio em Cannes e foi um estouro de bilheteria. A Columbia se aproveitou e pegou o filme. Adiantou um dinheiro por ele, ganhou milhões de dólares e enterrou a Vera Cruz. Isso já faz quarenta anos.

“Com o fim da Embrafilme e do Conselho Nacional do Cinema, o arcabouço jurídico do cinema desmoronou”.

Tem gente que diz: “Os Estados Unidos não estão ligando para o mercado brasileiro”. Estão ligando, sim. O mercado brasileiro é monumental. Qual é o país que tem 150 milhões de habitantes? Eu estava conversando com um amigo chileno, e ele me disse que um filme de sucesso em seu país, que é um país pequeno, tem 80 mil espectadores. E o Paraguai, a Bolívia? O Peru, a Colômbia, o resto da América Latina? Não sei. Hoje o Brasil está numa crise danada, as pessoas não têm dinheiro para isso, para aquilo, mas potencialmente é um mercado imenso para o cinema. Tubarão vendeu aqui 12 milhões de ingressos, a US$ 2,50. Isso significa que um único filme rendeu US$ 25 milhões. Então esses caras têm interesse, sim.

Na época em que tínhamos apoio do Estado, Dona Flor fez US$ 11 milhões. Lúcio Flávio teve quatro milhões de espectadores e Xica da Silva três milhões. O cinema brasileiro concorria efetivamente com o cinema americano. Isso acabou. Acabou a Lei da Obrigatoriedade, a Lei de Remessa e Lucros. A Embrafilme ficava com 25% do lucro que era enviado para o exterior. Com a nova Lei do Audiovisual, o que acontece é o seguinte: os 25% reservados para formar o fundo da Embrafilme podem ser usados numa produção. Quer dizer, estamos cedendo dinheiro às empresas estrangeiras, porque elas usam esse dinheiro para o investimento próprio. Outro dia li no jornal que a Xuxa vai fazer um filme de US$ 3 milhões nos Estados Unidos, que ela tem contrato com a Columbia, com a Warner. Não é a Columbia de lá, não é a Warner de Los Angeles, é a do Brasil. Eles vão pegar o dinheiro que devem de impostos e vão produzir filmes da Xuxa aqui. E ficam donos disso. É uma isenção fiscal absurda. Além de acabar com a Embrafilme, acabam com o Conselho Nacional de Cinema, que regulamentava o setor. E retomar isso vai ser difícil, mesmo com o apoio do Espírito Santo e de São Paulo. Mas o arcabouço jurídico do cinema brasileiro, a infra-estrutura tudo isso desmoronou. Quando isso vai voltar, se é que vai voltar, com esse regime neoliberal?

O único produto estrangeiro que tem o mesmo preço do nacional é o cinema. Se você quiser um carro brasileiro, é um preço; se quiser um importado, vai pagar mais. Se quiser um uísque nacional, é um preço; se quiser um importado, vai pagar mais. O filme estrangeiro que vem para o Brasil não é taxado, já o negativo que a gente usa para filmar sim. Pagamos imposto pelo negativo virgem, e o filme estrangeiro que vem para cá entra sem imposto algum e custa o mesmo preço do nosso. Então é um concorrência estapafúrdia. Isso é uma guerra, e não sei se teremos condições de vencer ou não.

Cloves: Você levantou questões muito importantes, relacionadas com a cultura e com o modelo político-econômico que está sendo imposto ao mundo inteiro: o neoliberalismo. E também a questão do Estado, única instituição capaz de fazer frente a isso. Há o exemplo da França, que faz grandes investimentos para se contrapor à avalanche dos audiovisuais norte-americanos. Hoje no Brasil, o modelo neoliberal impõe a total abertura do mercado para o produto norte-americano, tanto no cinema como na televisão, na literatura e por aí afora. O cinema brasileiro sempre refletiu a realidade nacional. Tivemos o Humberto Mauro, passamos pela chanchada até chegar a Nelson Pereira dos Santos e ao Cinema Novo. De certo modo a ditadura foi a grande predadora desse pensamento brasileiro. Aí entra uma questão: o cinema nacional sempre foi criticado pela qualidade de seu acabamento, o espectador não conseguia ouvir etc., mas apesar disso os filmes do Cinema Novo, e tantos outros, foram vistos pelo grande público. Por isso, pergunto: qual o papel das elites pensadoras nesse momento? Devemos fazer um cinema que reflita um compromisso com a realidade?

Rezende: Eu estava conversando sobre isso com o Paulo Betti. Temos agora no teatro Gerald Thomas, Moacir Goes, fulanos, beltranos e tal. É a vanguarda, é a vanguarda! Moacir Goes ganhou o Prêmio Shell e o Jornal do Brasil deu uma página inteira para ele. Um amigo me disse: “Eu não conheço um trabalho desse cara, ele é um gênio e eu não posso perder”. Ligou para o teatro: quero reservar um lugar para ver a peça dirigida por Moacir Goes, na quinta-feira”. Disseram que não precisava reservar, que teria lugar para ele. Meu amigo perguntou: “Quantos lugares têm o teatro?”. Então responderam: “Trinta, mas pode vir que tem lugar”. Pô, é uma loucura! O cara é um gênio e dez gatos pingados, três vezes por semana, vão ver seu trabalho. E o Brasil pegando fogo, compreende?

“Nelson Rodrigues diria: “Gerald Thomas adora ver sua mulher trepando. É um gênio do teatro!”

Li na revista Interview uma entrevista com Gerald Thomas, em que ele dizia: “Adoro ver minha mulher, Fernandinha Torres, trepando com outra pessoa”. Aí todo mundo diz: “Gerald Thomas é um gênio, ele adora ver a mulher trepando com outro cara!”. Era preciso que Nelson Rodrigues estivesse vivo para escrever uma de suas crônicas: “Gerald Thomas adora ver sua mulher trepando. É um gênio, é um gênio! É um gênio do nosso teatro” (imitando a voz de Nelson Rodrigues). A discussão da cultura brasileira é um negócio! O Brasil pegando fogo e meia dúzia de carinhas por aí com umas porra-louquices, fazendo charme. Um aparece pelado, o outro diz que gosta de ver a mulher trepando. Isso é um empobrecimento da cultura brasileira. Você pega um Euclides da Cunha, um Graciliano Ramos… Não é só uma questão de engajamento político, mas de qualidade, de dimensão artística. Eu me lembro que, quando adolescente, tinha acabado de ler Jorge Amado e foi um momento triste. É como comprar uva e ver acabar o cacho. Ficamos esperando o cara escrever outro livro. Tem esse lado da cultura brasileira, do cinema brasileiro. As pessoas querem ver. Mas fazer filme para passar na Estação Botafogo… Temos que partir para um negócio realmente voltado para o Brasil, ter um compromisso para o país, com a sociedade brasileira. Por que abrir-mão do nosso público? O Brasil é um país de 150 milhões de habitantes. Por que vamos deixar esse público para os americanos? Por motivos econômicos, culturais e políticos, temos que conquistar nosso mercado.

EDIÇÃO 35, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 44, 45, 46, 47