As eleições presidenciais realizadas no Brasil em 3 de outubro de 1994 não foram um acontecimento de significado e consequências restritos ao país. O embate que polarizou sobretudo os candidatos Lula, de um lado, e Fernando Henrique, de outro, terminando com a vitória deste último ainda no primeiro turno, teve também um enorme alcance internacional. Por isso é que, logo que se confirmou a vitória de Fernando Henrique, houve, no chamado Primeiro Mundo, uma verdadeira comemoração, refletida em matérias ou editoriais de publicações como The Wall Street Journal, Financial Times e The Economist, talvez os mais qualificados porta-vozes da alta finança internacional, e também nas declarações emitidas por autoridades ligadas a FMI, Banco Mundial e Tesouro dos Estados Unidos.

Uma vitória de Lula sinalizaria a possibilidade de um país de peso como o Brasil desenvolver um projeto alternativo ao chamado “ajuste” neoliberal, no sentido de buscar um modelo econômico e político próprio que visasse a integrar os milhões de brasileiros marginalizados, reforçar a soberania nacional e, com maior ou menor profundidade (dependendo do processo concreto da luta de classes), enfraquecer o poder das elites, que há séculos dominam os destinos do país. Esta vitória apontaria também, em termos de política externa, para o fortalecimento da articulação de um bloco anti-hegemônico pelos países do chamado Terceiro Mundo (ou, na linguagem mais atual, no contexto da contradição Norte x Sul, dentro do quadro de antagonismo que opõe hoje as nações super-ricas do Norte ao resto da humanidade, representado pelo Sul). Não se pode menosprezar os reflexos que a eleição do candidato da Frente Brasil Popular provocaria na América Latina, que hoje se transformou num dos principais palcos de experiências das fórmulas neoliberais e que regride aos piores períodos de submissão aos interesses norte-americanos. Assim, não há dúvida de que estas eleições foram acompanhadas de perto tanto pelos Estados Unidos e pelo Grupo dos Sete, como igualmente por todas as nações e forças que buscam uma alternativa ao que se denomina “nova ordem mundial”, esquema de poder planetário erigido pelos Estados Unidos e demais potências ocidentais e pelo seu mais sufocante braço, o capital financeiro internacional. Mas, no dia 3 de outubro, as forças da “nova ordem” colheram no Brasil uma estratégica vitória com a eleição de Fernando Henrique.

Se o que estava em jogo era algo, digamos assim, tão vital para os contendores, surge naturalmente a pergunta: que eleições foram estas? Os grandes meios de comunicação e até mesmo alguns intelectuais ligados ao partido de Lula, como Francisco Weffort, celebram as eleições como uma “grande vitória da democracia brasileira” e outras frases de efeito. Em nossa opinião, porém, a realidade dos fatos revela coisa bem diferente e, a rigor, o que houve no país não foi um processo eleitoral normal e democrático, mas um verdadeiro massacre montado pelas forças reunidas em torno da candidatura de Fernando Henrique, visando a reduzir a pó as chances de Lula, não importando os meios utilizados.

Consumada a queda de Collor, o anti-Lula de 1989, o principal objetivo das forças que o sustentaram e financiaram foi retomar o controle do aparelho do Estado, particularmente dos instrumentos definidores de política econômica, o que acabaram conseguindo depois de colocar o governo Itamar sob intensa pressão e desestabilizar três ministros da Fazenda (Gustavo Krause, Paulo Hadad e Eliseu Resende) em cerca de cinco meses, somente abrindo uma trégua com a posse de Fernando Henrique, no final de maio de 1993.

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“O PSDB passou a ser o representante, no Brasil, do ajuste neoliberal e do Consenso de Washington”.

O passo seguinte foi o de arquitetar, com Fernando Henrique e sua equipe, um esquema para a retomada do processo de “ajuste” da economia brasileira, interrompido com a queda de Collor e com a saída do ex-ministro Marcílio Marques Moreira, e que contemplasse:

1) O ajuste das contas públicas (corte do custeio e investimento público), garantindo, porém, o giro da dívida pública – fonte inesgotável de ganhos para o capital financeiros nacional ou internacional –, o que foi conseguido com a aprovação do Fundo Social de Emergência (que de “social” nunca teve nada, na medida em que retirou recursos vinculados às áreas de saúde e educação) (1);

2) o equacionamento do problema da dívida externa, sobretudo com o chamado Comitê dos Bancos Credores, o que foi feito com o acordo fechado pelo Brasil com este Comitê em Washington, em 15 de abril passado, nos mesmos termos já negociados durante o governo Collor pelo ministro Marcílio, acordo que “reescalonou” os pagamentos do principal e dos juros da dívida em bases generosas para os bancos credores, dentro do esquema previsto pelo Plano Brady;

3) a questão do combate à inflação, sobretudo pelo controle dos salários, que foram congelados pela média do período de novembro/1993 a fevereiro/1994, enquanto todos os demais preços permaneceram livres, o que garantiu enormes vantagens principalmente aos oligopólios e cartéis com capacidade de impor preços;

4) a questão monetária e cambial, o que foi feito com a plena dolarização da economia brasileira e a adoção de uma moeda – o real – ancorada no dólar, tendo como lastro as reservas internacionais do país, formadas sobretudo devido ao ingresso de capitais especulativos do exterior; e

5) o calendário eleitoral, o que foi conseguido com o cuidadoso planejamento das medidas e etapas do chamado Plano Real com o processo das eleições presidenciais, para que rendesse o máximo de dividendos a Fernando Henrique e revertesse a condição de favoritismo do candidato da Frente Brasil Popular.

Ungido candidato pelo mesmo bloco de forças que deu sustentação a Collor – a alta finança internacional, o Comitê dos Credores Externos, a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), as oligarquias agrárias e a Rede Globo –, Fernando Henrique se transformou no anti-Lula de 1994, com a tarefa de ganhar o que parecia uma difícil parada. Mas logo foi se vendo que a coisa não era tão difícil assim. Uma pressão irresistível deste bloco de forças tratou de “convencer” Paulo Maluf, até então o mais forte postulante da direita, a desistir de se candidatar. Em seguida, sempre com o objetivo de evitar qualquer desvio dos votos potenciais de FHC, cuidou-se de afastar da contenda o candidato do PL, Flávio Rocha, agregando-se este partido ao esquema que lançara FHC.

Ao mesmo tempo, os meios de comunicação abriram fogo cruzado para destruir a candidatura de Orestes Quércia (representante de um setor da burguesia que procurava articular um projeto próprio pelo PMDB, diferente do de Fernando Henrique), previamente auxiliados por setores do próprio PT de São Paulo, que passaram quase todo o ano de 1993 priorizando o combate a Quércia. Estes setores, embalados pelo “canto da sereia” da mídia, alimentavam a ilusão de uma aliança com o PSDB em torno da candidatura Lula, sem compreender a verdadeira natureza deste partido, ou seja, o partido mais credenciado e preparado para implementar, no Brasil, o projeto “modernizante” do capital financeiro internacional no contexto da “nova ordem mundial”. Enfim, era difícil não perceber que o PSDB se transformara no autêntico representante do “ajuste neoliberal” e do Consenso de Washington.

Lançada a nova moeda – o real – em julho passado, e com a natural queda dos preços depois do período de especulação desenfreada praticada pelos monopólios enquanto perdurou a URV (unidade real de valor), qualquer pessoa que levantasse a menor crítica ao plano passou a ser identificada como “defensora” da inflação. Seguiu-se uma enxurrada de declarações de banqueiros e grandes empresários estrangeiros “advertindo” os brasileiros de que o país perderia muito caso o plano não tivesse seguimento, isto é, se Fernando Henrique não fosse eleito. É claro que a própria direção da campanha da Frente Brasil Popular cometeu erros de avaliação, primeiro ao subestimar os impactos que o lançamento do real teria na campanha e, depois, ao se confundir na crítica ao Plano Real, seguindo um caminho de avanços e recuos que transmitiu aos eleitores uma idéia de vacilação. Mas este foi um fator secundário diante da cobertura monolítica dos meios de comunicação e de seu esforço em caracterizar Lula como o “candidato da inflação”.

Paralelamente, o ministro Rubens Ricupero, que substituíra Fernando Henrique no Ministério da Fazenda (e que declarara nada entender de economia), ocupava constantemente os espaços na televisão e na imprensa escrita para fazer propaganda do real e, como mais tarde confessaria, para esconder dados, mentir sobre o custo de vida, fazer manobras diversionistas para confundir a opinião pública e atuar como um verdadeiro cabo eleitoral de Fernando Henrique, em conluio direto com a Rede Globo. Isso tudo sob as barbas do governo e da Justiça Eleitoral, que assistiam a tudo impassíveis, inclusive sem reagir diante do fato público e notório das constantes reuniões do candidato Fernando Henrique com a equipe do Ministério da Fazenda encarregada de administrar o Plano Real (equipe toda integrada por economistas e técnicos do PSDB, como o próprio Ricupero declararia em seu famoso diálogo com o repórter Carlos Monforte, da Globo, e que seguramente passará à história do país como uma das mais inescrupulosas manipulações eleitoreiras na máquina do Estado) (2).

Após o famoso incidente da conversa de Ricupero na Globo, captada acidentalmente em virtude de falha técnica, ocorreu um dos acontecimentos mais impressionantes num país que acabara de depor um presidente por corrupção e comportamento antiético: em poucos dias, numa espécie de grande conspiração da imprensa com as forças pró-Fernando Henrique, o escândalo foi esvaziado e diminuído em sua dimensão, montando-se uma enorme farsa para a rápida retirada de Ricupero, depois de se encenar um ato de contrição do ex-ministro amplamente transmitido pelas redes de televisão. A responsabilidade de Ricupero como uma das autoridades máximas do país, como ministro da Fazenda que dissera alto e em bom som estar enganando a opinião pública para favorecer um candidato, foi transformada numa espécie de pequeno deslize, num simples pecadilho após um dia estafante.

Mas o final não parou por aí. Em vez de mostrar imparcialidade e isenção diante deste grave episódio – que, por si só, já comprometia completamente a lisura do processo eleitoral – e nomear para o lugar de Ricupero uma personalidade capaz de comprovar o distanciamento do governo e da máquina do Ministério da Fazenda do conjunto dos candidatos, o governo Itamar coloca naquele ministério Ciro Gomes, um dos mais exaltados dirigentes do PSDB, o mesmo partido de Fernando Henrique, suspeito de manipular toda a programação do Plano Real para beneficiar FHC. E como os meios de comunicação julgam esta nomeação? A maioria a considera uma jogada de mestre do presidente, revelando assim, neste autêntico “ato falho”, a verdadeira “ética” que reconhece, isto é, a ética da empulhação, da farsa e do vale-tudo, para derrotar qualquer um que se atreva a enfrentar os grandes interesses do establishment (3).

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“A eleição de 3 de outubro foi um rolo compressor para destruir qualquer chance de vitória de Lula”.

Todos estes fatos falam por si e revelam o que ocorreu no processo que culminou em 3 de outubro último: não se tratou de uma eleição normal e democrática, mas de um verdadeiro rolo compressor para destruir qualquer chance de vitória do candidato da Frente Brasil Popular. Isto porque o que estava em xeque no jogo eleitoral não era simplesmente o fato de se eleger este ou aquele candidato, mas de definir a escolha entre dois projetos antagônicos: o projeto das elites dominantes, do FMI/Banco Mundial, do Consenso de Washington, do “ajuste” neoliberal, representado pelo esquema PSDB/PFL e seus aliados, do qual o Plano Real é apenas a ponta do iceberg; ou o projeto democrático, popular e nacional, representado pela candidatura Lula e pela Frente Brasil Popular, de oposição ao neoliberalismo e de tentativa de construção de um caminho alternativo, tomando como referência os interesses da maioria do povo brasileiro e o princípio de fazer do Brasil uma nação plenamente soberana e capaz de desempenhar um papel ativo no cenário latino-americano e mundial.

O Brasil vive uma crise prolongada, que já dura mais de dez anos. A crise social e a marginalização de camadas inteiras da população atingiram níveis sem precedentes em nossa história. O governo Collor agravou a situação do povo especialmente pelo desmantelamento da máquina pública, na educação, na saúde, na previdência, sem nada construir no lugar. O governo Itamar acabou sucumbindo às mesmas forças e ficou refém de Fernando Henrique e da equipe dirigente do Ministério da Fazenda que comandou o Plano Real. A crise social vem piorando dia a dia e nada indica a reversão deste quadro (4).

Neste contexto, a vitória de Fernando Henrique, comprometido com uma agenda de cunho eminentemente neoliberal, é uma tragédia para o país, na medida em que se trata de uma agenda que aceita as regras impostas pelos Estados Unidos e pelo Grupo dos Sete na chamada “nova ordem mundial”, mantendo o Brasil como um país periférico e dependente do centro do capitalismo, reforçando o processo de modernização conservadora que marginaliza a maioria da população e concentra cada vez mais a riqueza, compromete a nossa soberania, destrói empregos, entope nosso mercado com produtos importados e desmantela cada vez mais o setor público. É impressionante como os ideólogos do PSDB não de dão mais ao trabalho de esconder sua perspectiva capitulacionista. Recentemente, Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro da Fazenda e tesoureiro da campanha de Fernando Henrique, defendeu abertamente a tese de que o Brasil não tem futuro se não se integrar no bloco dos Estados Unidos. Segundo sua visão, “o mundo está se dividindo em três grandes blocos: a União Européia, o Bloco Asiático (que é um bloco informal de produção) e o Bloco dos Estados Unidos, iniciado através do Nafta. Para o Brasil a alternativa é ou inserir-se neste último bloco ou fazer parte das nações excluídas dos grandes acordos preferenciais de comércio” (5).

A depender da evolução do processo político no futuro governo Fernando Henrique, as consequências de sua eleição podem ser tão nefastas para o país como aquelas provocadas pelo golpe militar de 1964. Naquela oportunidade, após um período de intensa mobilização do povo em prol das chamadas reformas de base (em que se sobressaía a reforma agrária), as elites dominantes e os militares desencadearam o golpe e destruíram as possibilidades de o governo Goulart implementar as reformas de base e seguir uma política externa independente. Assim, após o golpe, o país tomou outro rumo, de destruição da legalidade constitucional, de repressão ao movimento popular e de “modernização” e integração ao capitalismo mundial, de alinhamento quase que incondicional com a política norte-americana. Tratava-se, mais uma vez, de destruir quaisquer veleidades de o Brasil seguir um caminho próprio e de engatá-lo na composição puxada pelas potências imperialistas. Agora, numa conjuntura muito mais desfavorável aos países dependentes e periféricos, estas forças procuram “engatar” novamente o Brasil nos mesmos trilhos, esperançosas de poder transformar o país num oásis para os capitais especulativos e de realizar enormes ganhos, sem se preocupar com o preço que o povo e o país irão pagar. É isso que explica por que o jogo eleitoral foi tão pesado, violento e antiético, sob um aparente clima de calmaria.

Para o Brasil, como de resto para todos os países, principalmente da América Latina e da África, que vêm se submetendo ao receituário neoliberal, a perspectiva concreta é de mais crise social e até mesmo de destruição completa de suas identidades nacionais, abrindo caminho à barbárie. Na África, o que ocorre hoje é uma tragédia de grandes proporções, contando-se aos milhões o número de mortos devido à fome, às epidemias, às guerras e às calamidades, para as quais não há solução aparente. Nesta fase pós-guerra fria da “nova ordem mundial”, é um continente abandonado. Muitos dos países africanos (entre eles a Somália) submeteram-se, no decorrer dos anos 1980, às fórmulas neoliberais preceituadas pelo FMI/Banco Mundial, desmontaram o pouco que tinham construído em termos de aparelho estatal e hoje não dispõem de praticamente nada para enfrentar a gravíssima crise por que passam. E como a crise econômica e social é generalizada e também atingiu com vigor o centro do capitalismo – os países da União Européia têm, atualmente, cerca de 37 milhões de desempregados –, a tendência dominante no chamado Primeiro Mundo é a de fechar completamente as “portas do paraíso” aos indesejáveis migrantes dos países periféricos em crise, inclusive com o uso da força. A oligarquia financeira internacional baseada nos países imperialistas acumula e concentra uma riqueza descomunal, impõe aos países periféricos um receituário de terra arrasada por meio de órgãos como FMI/Banco Mundial, empurra milhões de seres humanos para a miséria e a barbárie e ergue hoje com rapidez um enorme muro separando os países imperialistas destes milhões de seres humanos “bárbaros” e indesejados”. O Primeiro Mundo não quer saber de africanos, árabes, cubanos, haitianos e latino-americanos em geral.

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“O Primeiro Mundo não quer saber de africanos, haitianos, árabes, cubanos e latino-americanos”.

Assistimos, agora em setembro, à ocupação militar do Haiti pelos Estados Unidos, invasão batizada pelo presidente Clinton com o pomposo nome de Operação Apoio à Democracia. Para muitos ingênuos, o propósito da invasão seria legítimo, pois se trataria de derrubar a junta militar que governa o país ditatorialmente e restabelecer o governo do presidente deposto, Jean-Bertrand Aristide. A questão para os Estados Unidos, no entanto, é completamente diferente. Em dezembro de 1990, Aristide foi eleito presidente do Haiti, derrotando o candidato apoiado pelos Estados Unidos, Marc Bazin. A partir de então, os Estados Unidos fizeram tudo para derrubá-lo, o que acabou ocorrendo em 1991. Mas a crise econômica e social do Haiti foi piorando tanto que os haitianos passaram a migrar maciçamente para os Estados Unidos em botes e barcos precaríssimos. Já durante o governo Bush, o problema do controle da migração dos haitianos passou a ser assunto prioritário. Na véspera da posse de Clinton, a Guarda Costeira norte-americana calculava que cerca de 200 mil pessoas estavam prontas para sair das praias haitianas e desembarcar com seus botes na Flórida. Clinton, que criticara a política de Bush de impedir que os haitianos chegassem aos Estados Unidos, deu uma guinada e ordenou que os haitianos passassem a ser levados para a base americana de Guantânamo (em Cuba) e para outros países do Caribe. Em junho passado, a Guarda Costeira dos Estados Unidos estava recolhendo entre 2.000 e 3.000 refugiados haitianos por semana e, em agosto, já havia cerca de 20 mil em Guantânamo. Em face desse quadro, o governo dos Estados Unidos apressou a operação de ocupação militar do Haiti e de “retorno” de Aristide. Além de procurar conter, com a invasão, o êxodo de milhares de haitianos para a Flórida, é evidente que a operação militar norte-americana também significa um ato de força e ameaça perante Cuba, cuja costa está a pouco mais 300 quilômetros do Haiti, e que continua sofrendo o bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos.

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“O resultado da eleição fortalece a tendência à submissão das finanças aos desígnios dos EUA”.

O Haiti está destruído, as instituições não funcionam, há fome e escassez de bens essenciais. O presidente Jean-Bertrand Aristide, assumindo o triste papel de fantoche do governo norte-americano, volta com um programa econômico acertado com Washington no mais completo receituário neoliberal, que prevê a privatização das oito maiores companhias estatais, o reforço da economia de “livre mercado” e, evidentemente, o controle do êxodo dos haitianos em direção aos Estados Unidos. E para ninguém duvidar deste programa, as tropas norte-americanas lá estão como garantia na “Operação Apoio à Democracia”!

A América Latina vive uma fase decisiva de sua história. Por toda parte o que parece prevalecer é a capitulação dos governantes e a mais completa submissão aos desígnios da oligarquia financeira norte-americana. A derrota de Lula, no Brasil, parece fortalecer esta tendência. Não se pode esquecer, porém, que o povo brasileiro tem uma longa tradição de resistência. Resistiu a mais de vinte anos de ditadura militar e, logo em seguida, resistiu ao governo Collor e o depôs, em memorável movimento que mobilizou a nação. Isso não significa somente um consolo para os que pretendem continuar resistindo, mas deve servir sobretudo de alerta aos poderosos, que pretendem empurrar o povo e o país para a barbárie e o inferno, tentando destruir qualquer esperança de construção de uma nova sociedade sem exploração e opressão.

* Economista e jornalista. Foi editor de economia dos semanários Opinião e Movimento e membro do Conselho Federal de Economia, de 1987 a 1989.

Notas
(1) Referindo-se aos apoios que o então candidato Fernando Henrique vinha recebendo em sua campanha, a revista Veja fez o seguinte comentário: “FHC maltratou a saúde pública. Agradecida, a Golden Cross, empresa de saúde privada, deu-lhe 450.000 reais”. Ver a matéria “O efeito-máquina”, Veja, 14-09-1994.
(2) O livro A história real – Trama de uma sucessão, dos jornalistas Gilberto Dimenstein e Josias de Souza, é um repositório vivo e detalhado a respeito do conluio do governo Itamar e, em especial, da equipe do Ministério da Fazenda, com a campanha de Fernando Henrique. Os jornalistas falam em “atenção milimétrica” na administração do Plano Real para beneficiar o candidato oficial. Citam inclusive a intervenção pessoal de Fernando Henrique em decisões estratégicas, como a escolha da data para o lançamento da nova moeda, o real. Segundo eles, havia três hipóteses de datas (1º de junho, 1º de julho e de 1º de agosto). E os jornalistas relatam: “Ricupero reuniu os assessores em sua casa, para a decisão, no dia 10 de maio às 21:00h. Lá estava Fernando Henrique, de olho no cronograma eleitoral (…) Considerou-se 1º de julho perfeito. Além do casamento com a campanha, uma vantagem adicional: a Copa do Mundo desviaria a atenção, que tenderia a desconsiderar os transtornos de qualquer plano, mudando contratos”. Ver Gilberto Dimenstein e Josias de Souza, A história real – Trama de uma sucessão, São Paulo, Editora Ática / Folha de S.Paulo, 2ª edição, 1994.
(3) Gilberto Dimenstein e Josias de Souza, no livro citado, narram o episódio de substituição de Ricupero por Ciro Gomes com um tom indubitavelmente elogioso a Itamar. Depois de revelar que Fernando Henrique, com a cópia da entrevista de Ricupero nas mãos, ligou imediatamente para o Palácio da Alvorada, eles relatam: “Invertendo os papéis, Itamar passou da condição de trapalhão à de administrador de trapalhadas. E teve um desempenho surpreendente. Em menos de 48 horas, ainda no domingo, antes da abertura do mercado financeiro, o Planalto anunciou o nome do novo ministro: o tucano Ciro Gomes, que trocou o marasmo de um tranquilo final de gestão pelo corre-corre da Fazenda”. Em nome da tão decantada ética, seria o caso de se perguntar: o que um presidente, que tivesse uma postura isenta diante das eleições, deveria fazer diante deste caso? Averiguar o gravíssimo teor das revelações de seu ministro da Fazenda ou simplesmente substituí-lo e tirá-lo de cena rapidamente, como o fez, numa atitude de “administrador de trapalhadas” para um candidato?
(4) Entre outras notícias negativas, constatou-se que, no decorrer de 1993, houve um significativo aumento da taxa de mortalidade infantil em vários estados do Nordeste. As causas apontadas pelo Ministério da Saúde para explicar este aumento foram a seca, o cólera, a desnutrição provocada pelo aumento do desemprego e, em especial, a crise do sistema de atendimento público de saúde devido à redução do investimento habitante/ano, que caiu de US$ 80 em 1987 para US$ 41 em 1993. Os dados estão citados no artigo de Lino Trevisan “Acompanhamento de temas sociais”, boletim Análise Conjuntural, Ipardes, Curitiba, maio-junho de 1994.
(5) Luiz Carlos Bresser Pereira, “Como vencer o apartheid social”, Folha de S.Paulo, 25-09-1994.

EDIÇÃO 35, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 4, 5, 6, 7, 8