A atividade teórica em torno do chamado “desenvolvimento” – e de seu antípoda/complemento, o “subdesenvolvimento” – está atravessando uma seríssima crise, sem que muitos tenham disso sequer se apercebido. Ironicamente, no momento em que se torna mais do que evidente a que tipos de beco sem saída a modernização capitalista conduziu o “Terceiro Mundo” (1) (destruição de culturas, crises de identidade, dependência internacional cada vez maior etc.), sem poupar também o próprio “Primeiro Mundo” (via “doenças da civilização”, como o estresse e a neurose urbana, o vazio de um consumismo frívolo e as perspectivas sombrias de ampliação do desemprego e de enfraquecimento do “estado de bem-estar” no âmbito das relações de produção típicas da Terceira Revolução Industrial), ameaçando, por fim, o planeta inteiro (degradação ambiental); ironicamente, neste exato momento, cai o muro de Berlim, injetando ânimo novo num modelo social corroído pelas suas próprias contradições. A derrota do “socialismo real” transformou, num passe de mágica ideológica, o sistema capitalista em vencedor, levando precisamente ao assanhamento de seus defensores mais retrógrados. O revigoramento dos postulados simplistas do liberalismo econômico é um exemplo cabal disto.

No que concerne às teorias do desenvolvimento, avanços analíticos importantes conseguidos nas duas décadas passadas, que apontavam para a possibilidade de um entendimento menos parcial e historicamente melhor informado das causas das situações de “subdesenvolvimento” – integrando mais fortemente fatores de “subdesenvolvimento” exógenos e endógenos e cada país ou região, articulando de maneira mais consistente as dimensões econômicas, políticas e cultural, rechaçando o etnocentrismo e preparando, assim, o terreno para a formulação de estratégias de desenvolvimento mais generosas e menos tacanhas –, vêm sendo eclipsados por uma onda de conservadorismo.

Alguns anunciam uma “teoria crítica da modernização” (Nohlen & Nuscheler, 1992), sem notar o paradoxo que isso representa: outros constatam, no fim dos anos 1980, um renascimento da economia neoclássica e um retorno ao simples estímulo ao crescimento econômico e, por fim, no começo dos anos 1990, uma grande desorientação (Menzel, 1992); outros, finalmente, salientam o maior destaque a ser dado hoje aos fatores do “subdesenvolvimento” endógenos a cada país (caso, por exemplo, de Wöhlcke, 1989), que interpreta o subdesenvolvimento latino-americano essencialmente como uma espécie de “patologia social” – morbus latinus –, sublinhando o seu caráter de “subdesenvolvimento feito em casa” [hausgemachte Unterentwicklung] (2)).

É verdade que os fatores endógenos, as famosas “responsabilidades (em princípio) internas”, foram, pelos autores críticos, muito frequentemente negligenciados, por conta de um hiperprivilegiamento de aspectos como as relações econômicas internacionais e de um certo temor de enfrentar questões como o papel da cultura. No entanto, aquilo a que atualmente se assiste corresponde menos a um avanço do que a um brutal retrocesso, científico e político, uma vez que os fatores exógenos passam a ser secundarizados, e problemas (em si mesmos evidentemente bastante reais), como a estreiteza das elites dos países terceiro-mundistas, a corrupção generalizada e a proverbial ineficiência dos aparelhos burocrático-administrativos, são deslocados do contexto mais amplo de sua produção e reprodução histórica. Na realidade, os fatores “endógenos” são vistos como que constituindo um compartimento bem delimitado, quase estanque, e não como processos que, ao longo da história, foram amiúde influenciados por fatores “exógenos”, muitas vezes também reagindo dialeticamente sobre estes. Com isso tem-se descambado, não raramente, para uma crescente e indisfarçada arrogância, possível ante-sala do racismo. Uma arrogância, diga-se de passagem, que não deixa de ter o seu toque de ridículo: numa época em que o paradigma da complexidade – e nesses marcos uma série de enfoques e teorias não-mecanicistas, como a termodinâmica não-linear, a Teoria do Caos e a sinergética – empola as ciências naturais, chega a ser constrangedor verificar que tantos pesquisadores sociais se deixam enredar num simplismo cartesiano, justo no que tange a um terreno essencialmente complexo como o “(sub)desenvolvimento”. Mas, decepcionante mesmo é ver que até para muitos intelectuais terceiro-mundistas, atemorizados com o decrescente interesse do Norte pelo Sul, fascinados por experiências como a sul-coreana e entusiasmados com as propaladas chances oferecidas pelo mercado mundial àqueles países que tiveram coragem de livrar-se de preconceitos e tradições e lançar-se à busca da produtividade e da competitividade, não há outro horizonte afora o do “desenvolvimento” capitalista. Esse discurso pseudo-renovado, de corte neoliberal, na maioria das vezes é bem conhecido na América Latina, embora se faça presente também em outras regiões do “Terceiro Mundo” (3).

“Causas internas do atraso, como a corrupção e a ineficiência estatal, ficam em segundo plano”.

Ironia das ironias: no mesmo instante em que a intelligentzia reacionária declara caduca a crítica do capitalismo (e todas as teorias de esquerda, da Teoria da Dependência ao enfoque wallersteiniano de formação do sistema mundial capitalista) e ensaia a volta do paradigma da modernização, um alemão, Robert Kurz (1992), chama a atenção justamente para o “colapso da modernização”, profetizando o aguçamento das tendências (auto)destrutivas do capitalismo e constatando a marginalização econômica crescente do “Terceiro Mundo” no cerne da verdadeira nova ordem internacional.

Conquistados, colonizados, pilhados, humilhados – e depois abandonados à própria sorte? Nem tanto; não será assim tão rapidamente que os países “subdesenvolvidos” cessarão de ter utilidade para o capitalismo internacional, ainda que no caso de alguns seja apenas como importadores de lixo tóxico.

Mas a complexificação do quadro de desafios é verdadeiramente um fato. Resta agora comprar os desafios, a começar pelos teórico-analíticos, principiando com uma reconstrução radical dos conceitos de “desenvolvimento” e “subdesenvolvimento”. O presente trabalho se pretende uma pequena contribuição neste sentido.

***

A redução do conceito de “desenvolvimento” ao desenvolvimento econômico – expresso através do crescimento econômico e da modernização tecnológica – já foi por diversas vezes criticada. Esse reducionismo, típico das teorias de modernização (que vêem os efeitos sociais positivos do desenvolvimento econômico como “consequências naturais” dos processos de crescimento e modernização, quase mera questão de tempo, portanto, sem admitir a necessidade de implementação de políticas de distribuição de riqueza e de combate à pobreza), não está extinto e pode ser observado justamente no campo prático das estratégias e políticas de “desenvolvimento” dos mais diferentes países do “Terceiro Mundo”. Por outro lado, a comunidade acadêmica já se encontra, em significativa medida, criticamente posicionada contra o tal reducionismo, e não somente da parte dos teóricos marxistas da dependência e do imperialismo. Críticas ao desenvolvimento mais estreito podem ser encontradas o mais tardar a partir dos anos 1970, como produto do crescente descrédito deste também entre setores não necessariamente integrantes de esquerda do espectro ideológico: vide, por exemplo, o enfoque redistribution with growth (Chenery et alii, 1974), ou a vertente enfatizadora da satisfação de necessidades básicas. Tornou-se cada vez mais aceito entre diferentes economistas não-socialistas que a erradicação da pobreza não depende apenas de altas taxas de crescimento e do progresso técnico, assim como também se tornou claro que alcançar determinados níveis de renda por parte de grupos-alvo bem delimitados (enfoque redistribution with growth) ou, ainda mais concretamente, a satisfação de necessidades básicas, representaria o verdadeiro objetivo a ser perseguido por uma política de desenvolvimento.

Crescimento e modernização, caso não sejam acompanhados (ou não proporcionalmente) por distribuição de riqueza socialmente produzida e atendimento de necessidades materiais e não-materiais elementares, não deveriam, por conseguinte, valer como indicadores do desenvolvimento strictu sensu. O que implícita ou explicitamente aí se coloca é a pertinência da substituição do conceito economicista de desenvolvimento das teorias da modernização por outro mais abrangente, “social”. Mesmo autores ligados à onda conservadora que atualmente assola o planeta, excetuando-se os casos aberrantes de analistas que retornaram a um fetichismo do crescimento, normalmente não desaprenderam que o crescimento econômico não é garantia de melhoria dos indicadores sociais.

“Intelectuais de países pobres, fascinados com o mercado mundial, não vêem saída além do capitalismo”.

Mas não é de modo algum suficiente criticar a idéia e as políticas de desenvolvimento herdadas das teorias da modernização. A concepção capitalista de desenvolvimento deve ser mais profundamente questionada, e não apenas porque a experiência histórica dos países desenvolvidos não se deixa imitar massivamente (contrariamente à crença embutida na ideologia modernizante, representada cabalmente por Rostow e seus “estágios do crescimento econômico” [Rostow, 1960], e à euforia amiúde associada ao sucesso econômico dos “quatro tigres asiáticos”), mas também porque os países ditos desenvolvidos merecem ter sua natureza modelar posta em dúvida – aliás em vários sentidos. Com isso se quer fazer referência, aqui, não somente aos males inerentes à civilização urbano-industrial “desenvolvida” (sem negar, em absoluto, as várias contribuição desta para o patrimônio cultural da humanidade e resvalar para uma “ruralofilia” nostálgica), como igualmente às já mencionadas “doenças de civilização”, sem esquecer do solapamento da qualidade de vida nos Estados Unidos e nos países europeus, na esteira das estratégias deslanchadas pelo sistema para adaptar-se à crise do capitalismo mundial iniciada no fim dos anos 1960 e início dos anos 1970 (4). A problemática da dialética do progresso científico e tecnológico, que conduz, de uma parte, a verdadeiros prodígios mas, ao mesmo tempo, a uma complexificação da alienação, dos fatores de desequilíbrio ecológico etc., remete, em última instância, à aporia da modernidade, imanente ao produtivismo antiecológico e ao consumismo característico do capitalismo e, particularmente, do capitalismo avançado. Essa aporia foi brilhantemente discutida por Theodor Adorno e Max Horkheimer no livro contundente e pessimista A dialética do esclarecimento (Horkheimer & Adorno,1986). O debate em torno dessa aporia foi mais tarde enriquecido por Castoriadis (1986). É válido, a essa altura, indagar: continuaria a modernização em estilo ocidental – com sua indiscutível eficácia técnica, econômica e militar, que tanto impressiona terceiro-mundistas como Kabou (1993) – a ser adorada no altar do “desenvolvimento”, se acaso esses intelectuais compreendessem os riscos inerentes à racionalidade técnica, à razão instrumental que embebe essa modernidade e auspicia a ascensão do capitalismo?

“O socialismo real acabou e o capitalismo não soluciona os problemas por ele gerados, como a injustiça social”.

Não se cogita, neste trabalho, exumar a apologia de um “socialismo” de corte autoritário. Pelo contrário, a derrocada do “socialismo realmente existente”, iniciada em fins de 1989, não deve ser em si mesma pranteada. (Pode-se e deve-se, sim, lamentar que 1989 e 1990, em contraposição a 1956 na Hungria ou 1968 na Tchecoslováquia, não tenham nos trazido uma revolução antiburocrática, mas essencialmente um sensível declínio da legitimidade de uma alternativa ao capitalismo na esteira do colapso do pseudo-socialismo; isso foi, todavia, em larga medida uma consequência lógica da auto-desmoralização do “socialismo real” e não somente da sedução pela ideologia consumista ocidental). No entanto, o fato de o “socialismo” burocrático ter implodido sem que, por outro lado, o capitalismo tenha dado solução aos graves problemas por ele mesmo gerados torna a retomada e o aprofundamento da discussão estratégica em torno da injustiça social e do caráter antiecológico inerentes ao nosso modelo civilizatório bastante oportunos.

Quanto ao “subdesenvolvimento”, ele só pode ser concebido em relação ao “desenvolvimento”; aquele surge apenas como subproduto deste. O subdesenvolvimento é uma deformação, uma caricatura criada pelos processos de colonização, ocidentalização e modernização. Não se trata em absoluto, de acusar moralisticamente governos e muito menos cidadãos do “Primeiro Mundo”, o que seria anticientífico e acrítico. Tampouco é intenção deste artigo recuar até o nível analítico de três décadas atrás, postulando, com Andrew Gunder Frank (1973), que a satelização e a internacionalização da economia nacional necessariamente bloqueiam ou dificultam o avanço econômico-tecnológico; seja como for, conforme decerto ficou claro, as preocupações do presente trabalho não elevam o desenvolvimento econômico, em sentido capitalístico, ao primeiro plano. Mas vem a pêlo, isso sim, reiterar a convicção de um fato, para alguns trivial, que a presente conjuntura ideológica de exaltação triunfalística do capitalismo tenta caracterizar como ultrapassado: o de que o “subdesenvolvimento” é um processo histórico situado no contexto de formação do sistema mundial capitalista (5). Os incas, os astecas, os maias os grandes reinos africanos e as esplendorosas civilizações asiáticas da era pré-colonial, como também as materialmente modestas comunidades de caçadores e coletores, não eram, certamente, “desenvolvidos”, mas nem por isso eram “subdesenvolvidos”, e denominá-los tradicionais não trai menos o etnocentrismo do analista. Eles eram, pura e simplesmente, eles mesmos, naturalmente expostos a influências externas, sem serem caricaturas deploráveis de alguém.

A Revolução Industrial e a nova dinâmica sócio-histórico-espacial, que têm na Europa Ocidental seu berço, são o divisor de águas histórico dos processos de “desenvolvimento” e “subdesenvolvimento” (ver, a esse respeito, Sunkel [1980]). Foi isso que emprestou um novo significado ao jugo, à dependência: à dependência relativamente a um centro de poder que se industrializa, por parte de uma periferia que não o faz, ou só tardia e deficientemente, além de forma espacialmente muito concentrada, sem impactos sociais positivos comparáveis àqueles encontráveis nos países centrais. Guerras, massacres, barbárie, domínio de uns povos sobre os outros, colonização; nada disso foi, é evidente, uma invenção da Europa do século XVI. Quando, porém, antes do capitalismo, colonização significou não apenas tornar-se tributário ou vassalo (mas com a possibilidade de, culturalmente, colonizar os colonizadores: os gregos perante Roma), mas uma caricatura, uma imagem deformada, marcada pela degradação da maior parte da população, por conflitos culturais e de identidade dilacerantes?

“Desenvolvimento só tem sentido hoje sem a conotação eurocêntrica e capitalista da palavra”.

Além dos obstáculos estruturais (propriedade privada dos meios de produção) existentes no âmbito do capitalismo ao desenvolvimento social, entendido esse como eliminação de barreiras postas à satisfação de necessidades materiais e espirituais e à concretização da tão decantada “igualdade de oportunidades” no interior de cada país, bem como superação efetiva dos mecanismos de opressão em nível internacional, resta o absurdo ecológico que reside na tese modernizante da propagação do estilo de vida ocidental “desenvolvido” no interior do “Terceiro Mundo” (6). Assim sendo, ou se admite a idéia de uma “ecoditadura” das grandes potências a serviço da manutenção dos atuais padrões de vida e nível de desperdício no “Primeiro Mundo” com a concomitante penúria do “Terceiro” (7), ou, se se disser um decidido não à hipocrisia, resta aceitar a idéia de que o “desenvolvimento” precisa ser repensado como desafio planetário.

Falar em “desenvolvimento”, nos dias atuais, só tem sentido se se afastar a conotação teleológica, etnocêntrica e capitalística que essa palavra tem carregado (8), a exemplo da idéia-irmã de “progresso”. O termo “desenvolvimento” sempre implica, decerto, um juízo de valor, a estipulação de um objetivo ou conjunto de objetivos – crescimento do PIB, “igualdade” ou outro que seja. O que não significa que os fins necessariamente representem um télos, um “estágio final”, nem que um determinado paradigma e uma determinada direção “evolutiva” sejam os únicos possíveis. É bastante difícil, reconheça-se, libertar o termo desenvolvimento de seu ranço historicista, de sua carga ideológica marcada pela idéia de uma missão civilizadora do Ocidente capitalista e industrial. Trata-se, entretanto, de uma tarefa necessária, pois carecemos atualmente de uma palavra melhor (9). É curioso que mesmo aqueles autores que, com competência e grande acuidade crítica, desvelam os comprometimentos da palavra em tela nem sempre dela abdicam (10). De modo semelhante, o termo subdesenvolvimento pode, com efeito, ser legitimamente empregado, à luz dos muitos problemas objetivos existentes e da questão do caráter caricatural das realidades submetidas à colonização e à modernização, todavia sob a condição de que o próprio modelo, o “desenvolvimento” (em sua imagem usual), seja posto em dúvida enquanto meta. Um conceito de desenvolvimento livre de ranço etnocêntrico precisa acentuar a idéia de que cada povo, cada grupo social deve possuir a autonomia necessária para definir o conteúdo deste conceito de acordo com as suas próprias necessidades e de conformidade com as suas características culturais, ou mesmo para nem sequer tematizar a questão (caso das sociedades tribais, ditas impropriamente “sem história”); o fundamental é que toda coletividade humana tenha oportunidade de evitar ou livrar-se do “subdesenvolvimento”, ou seja, da exploração, da opressão e da subordinação por parte dos interesses econômicos, poderes políticos e pasteurização cultural representados pelo modelo civilizatório capitalista (11).

Numa palavra, deixar de encarnar uma caricatura, com seus traços deformados produzidos pelo efeito de demonstração, pela perda de identidade cultural, pelo complexo de inferioridade, pela perda de auto-estima, pela degradação, pela pobreza e pelo desemprego engendrados contraditoriamente pela própria modernização. Um conceito de desenvolvimento despido de carga teológica não pode, é evidente, furtar-se a perseguir metas específicas, o que será, no entanto, concebido como um processo histórico de luta e negociação, de competição entre concorrentes visões de desenvolvimento num processo aberto à contingência (12). e onde o lugar da criatividade humana e da criação histórica (no sentido radical apontado por Castoriades, 1975) é bem maior do que admite a maioria esmagadora dos teóricos (13).

O desafio de se escapar à heterogeneidade estrutural (14), à perda de identidade cultural, à desagregação do tecido social etc. tem de ser enfrentado de modo diferenciado segundo o tipo de espacialidade social, segundo os países e as regiões.

“O subdesenvolvimento não será superado pela reengenharia social tecnocrática de um Estado auto-suficiente”.

A aplicação deste conceito de desenvolvimento – que talvez alguns se vejam tentados a apelidar de “pós-moderno”, seguindo o modismo terminológico atual – às realidades urbano-metropolitanas do “Terceiro Mundo”, em geral, e da América Latina, em particular, defronta-se, na verdade, com um espaço de manobra sensivelmente reduzido, uma vez que esta já é, em São Paulo ou Caracas, Cidade do México ou Buenos Aires, um tipo de realidade profundamente transformado pelo modelo civilizatório (não apenas pelo “modo de produção” em sentido estreito!) capitalista. Refletir sobre o papel das grandes cidades para o “desenvolvimento nacional” tem de passar não apenas pela crítica dos efeitos sociais e ambientais negativos da urbanização capitalista nacional, regional e, claro, local (alterações da qualidade de vida dos moradores das metrópoles), mas também pelo difícil esforço de imaginar formas de eliminar ou, mais realisticamente falando, ao menos “refuncionalizar” a especialidade urbano-metropolitana capitalista. A força de inércia do espaço herdado mostra-se, no caso das grandes cidades, nitidamente. É óbvio que não se poderá fazer tábula rasa dessa complexa materialidade. É razoável imaginar, porém, uma subversão da “lógica” de uma espacialidade que, fruto da concentração da acumulação de capital, é em si mesma um suporte para essa acumulação, em diferentes escalas.

Para tornar os grandes centros urbanos menos poluídos, massificantes e atomizados; para minorar a pobreza urbana e a segregação sócio-espacial; para permitir o acesso efetivo do conjunto da população citadina aos serviços oferecidos, coisa que hoje é privilégio, nas urbes do “Terceiro Mundo”, de uma minoria; enfim, para tornar as cidades, notadamente as metrópoles, mais humanas serão necessárias não apenas política e outras intervenções estatais inteligentes, mas uma liberação e um aproveitamento da criatividade popular, visando à solução de problemas básicos. É imprescindível uma sinergia positiva entre Estado e sociedade civil, com o objetivo de atingir uma massa crítica, política e intelectual que permita o enfrentamento e a ultrapassagem das dificuldades de forma duradoura e radicalmente democrática, rumo a tentativas cada vez mais ousadas de superação do modelo civilizatório capitalista. Para tanto, faz-se mister que o aparelho de Estado, tornado menos refratário a uma dinâmica própria do paradigma da democracia direta, prestigie o diálogo com a sociedade civil organizada e a participação popular, resistindo à sedução da cooptação de lideranças e movimentos sociais. Quanto aos movimentos sociais, é essencial que eles se apresentem pujantes e inovadores, capazes assim de pressionar o Estado na direção de uma transparência maior de suas ações e de uma mitigação dos efeitos sociais perversos da lógica excludente do mercado. Superar o “subdesenvolvimento” não é algo que se alcance por meio de uma “reengenharia social” tecnocrática pilotada por um Estado pretensamente auto-suficiente, até porque não é só o espaço social que comporta uma inércia, mas as próprias relações sociais, cimentadas pela cultura e pelas ideologias.

“Um debate se impõe: respeitar a autonomia dos povos para orientar suas metas e prioridades”.

O campo, em boa parte do “Terceiro Mundo”, nada mais é do que um espaço agrícola culturalmente menos ou mais urbanizado. Em certa medida, as mesmas forças de inércia culturais do meio citadino se fazem presentes, ainda que menos intensamente. De toda maneira, a inércia espacial é, aqui, menos atordoante, devido à menor complexidade material; essa inércia é mediada fundamentalmente pela dimensão política (resistências a uma reforma agrária).

Resta, por fim, decidir o que fazer com aquelas coletividades humanas que, material e culturalmente, não estão ainda completamente ocidentalizadas, “modernizadas”. Mas como “decidir o que fazer com elas”?! Coerente com um conceito de desenvolvimento fundamentado no princípio de autonomia, o que importa é desenhar uma política de não-intervenção que, recusando a idéia de uma missão civilizadora do Ocidente, não caia, por outro lado, num romantismo ingênuo, subestimando o fato de que a quase totalidade desses povos e culturas já vem sendo influenciada e modificada há décadas pela civilização capitalista ocidental, em diversas situações estando eles seriamente ameaçados de extinção. Essa trágica realidade, em que antes de modernização dever-se-ia falar de etnocídio, contrasta com aqueles universos culturais não-ocidentais que, não obstante a dependência internacional que atualmente os países nele inscritos têm de suportar, apresentam uma grande vitalidade (notadamente o Islã). A soberania desses povos, normalmente constituídos como Estados-Nações, não é desprezível, se bem que, sob o prisma da autonomia interna a essas sociedades e sob um ângulo de julgamento tributário de critérios ocidentais, o grau de liberdade individual (e das mulheres) seja em regra bem pequeno.

Cada uma dessas sociedades deve ser capaz, entretanto, de achar/ construir seu próprio caminho, reciclando tradições autóctones e influências ocidentais autonomamente e na medida em que as forças de inércia sociais e as constrições históricas o permitirem. Assim como não há um único conjunto de fatores que possibilite, em um nível de certa concretude, explicar toda e qualquer situação de “subdesenvolvimento”, ainda que determinados fatores tenham de fato um alcance muito geral, da mesma forma inexiste uma receita universal de desenvolvimento. O que pode haver é um princípio básico, o princípio de autonomia, que visa a garantir o direito de cada coletividade procurar orientar o seu destino e estabelecer metas e prioridades – desde, é lógico, que entre essas metas não se inclua a submissão de uma outra coletividade.

O esforço de crítica teórico-conceitual feito neste trabalho, se bem que extremamente preliminar, já deixa entrever a imensidão da tarefa teórica e de planejamento estratégico que deve derivar de tal tomada de consciência. É preciso aprofundar a formulação de estratégias e táticas, o que, no entanto, pressupõe um repensamento e uma atualização crítica dos objetivos e princípios do projeto revolucionário. Os obstáculos postos para a realização disso são, é certo, imensos, mas não se trata de uma empresa sem sentido, como a ideologia capitalista hoje, mais hegemônica que nunca, procura fazer crer. Afinal, se o Muro de Berlim caiu, ele não caiu sobre as cabeças daqueles que, há muito tempo e conscientemente, faziam uma crítica pela esquerda ao “socialismo real”. Ademais, o próprio edifício capitalista, com rachaduras e infiltrações cada vez maiores, está a demandar interdição.

* Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq.

NOTAS

(1) O desaparecimento do “Segundo Mundo” (“países socialistas desenvolvidos”) torna anacrônica a metáfora “Primeiro Mundo”/ “Segundo Mundo”/ “Terceiro Mundo” criada por A. Sauvy (cf. Lacoste, 1965). Mas tendo em mente que, a despeito do processo de diferenciação no interior do conjunto dos países ditos subdesenvolvidos, algumas características gerais continuam a ser compartilhadas por todos eles (sobretudo no que concerne aos níveis elevadíssimos de injustiça social), para facilitar a comunicação foi utilizada neste trabalho a expressão “Terceiro Mundo”, ainda que entre aspas.
(2) Wöhlcke parece não perceber que, nesse caso, o feitiço pode virar contra o feiticeiro: diante de duas guerras mundiais, da tragédia do holocausto e, nos dias que correm, das manifestações de racismo e xenofobia na Alemanha, o que ele acharia de teóricos latino-americanos, culturalistas e a-históricos que, como ele, se pusessem a falar de morbus germanicus?
(3) Sobre a África, ver o interessante livro de Axelle Kabou (1993), que tem o sugestivo título Et si l’Afrique refusait le dévelopment?. A autora, nascida nos Camarões, tece várias críticas importantes à hipocrisia, ao farisaísmo e aos complexos das elites africanas; pena que, ao constatar os atritos entre uma certa mentalidade africana e as exigências do desenvolvimento capitalista no que toca ao “capital humano”, ao espírito empresarial etc., Kabou condene, sem mais, o “atraso” e as tentativas de preservação de uma identidade cultural e capitule o mito antiecológico e, geopoliticamente, insustentável de que o desenvolvimento capitalista admite difundir-se por continentes e pelo globo terrestre inteiro, desde que os não-ocidentais se dispam de suas arcaicas mentalidades e se tornem tão europeus quanto os próprios europeus.
(4) A literatura em torno do modo de regulação e do regime de acumulação “pós-fordistas” e da “flexibilização” do mercado de trabalho em curso neste contexto vem se avolumando desde os primeiros trabalhos da Escola Regulacionista francesa, em meados e fim da década de 1970. Análises especialmente incisivas dos impactos sociais negativos da Terceira Revolução Industrial e de suas típicas relações de produção podem ser encontradas em Gorz (1986) e Hirsch & Roth (1986), autores influenciados pela Escola Regulacionista.
(5) Essa argumentação possui uma longa tradição, desde os teóricos clássicos do imperialismo (por exemplo, Lênin, 1982), passando pelos autores vinculados à Teoria da Dependência (por exemplo, Furtado, 1974; Cardoso & Faletto, 1984) e chegando às análises de Immanuel Wallerstein sobre a formação do sistema mundial capitalista (Wallerstein, 1979; 1986; 1989). (6) Sobre isso já havia externado Celso Furtado no começo dos anos 1970, rejeitando contudo o alarmismo – tão em voga entre ambientalistas primeiro-mundistas –, que adverte sobre os perigos ecológicos embutidos no desenvolvimento capitalista do “Terceiro Mundo”, superestimando de muito as possibilidades de difusão desse “desenvolvimento” e do estilo de vida consumista nos países ditos subdesenvolvidos e, além do mais, sem oferecer alternativas que contemplem os interesses dos tão citados três quartos da humanidade.
(7) Sobre a questão de uma “ecoditadura” nesses moldes, ver Greenpeace, 1993.
(8) Para uma “arqueologia” da idéia de desenvolvimento, ver Castoriadis, 1986: Esteva, 1993.
(9) Talvez o alemão seja uma exceção entre as modernas línguas ocidentais, pois, ao lado de Entwicklung (equivalente a desenvolvimento, development, développement, desarrollo etc.) há também o termo Entfaltung, passível de designar “desenvolvimento endógeno e aberto”, fruto do esforço (de um indivíduo, de um grupo social) para criar potencialidades e espaços e manobra e explorá-los. Para esta peculiaridade me chamou a atenção meu amigo Dr. Fridolin Birk.
(10) É este, por exemplo, o caso de Cornelius Castoriadis, ao desejar uma “transformação da técnica e do saber ocidentais de tal maneira que eles possam ser colocados a serviço na manutenção e do desenvolvimento [dévelopment; grifo de M. J. L. S.] das formas autênticas de sociabilidade que subsistem nos países ‘subdesenvolvidos’” (Castoriadis, 1986: 174).
(11) A propósito da autonomia como princípio norteador de um projeto político-social de conteúdo revolucionário, ver Castoriadis, 1983.
(12) A Teoria do Caos, oriunda da Física, encerra uma lição positiva para aqueles que repudiam a noção de desenvolvimento por crerem ser ela indescolável de uma matriz filosófica de raiz aristotélica, finalista: o processo de transformação e “evolução” de um sistema físico caótico é seu desenvolvimento, ainda que este seja, a rigor, imprevisível.
(13) O médico e biólogo Konrad Lorenz (1986) empregou, no contexto de sua crítica da teleologia na Teoria da Evolução, o termo teleonomia para expressar o aparecimento de realidades funcionalmente úteis mas, de modo algum, filogeneticamente predeterminadas. No terreno sócio-histórico, também tematizado por Lorenz em sua crítica à “falsa religião do progresso”, o “sentido utilitário” de que nos fala o cientista alemão e as suas metas perseguidas não são necessariamente universalmente consensuais, “objetivos”, mas sim valorações, variáveis conforme o universo cultural e mesmo no interior de um dado universo cultural, em função de fatores de ordem econômica ou política.
(14) O conceito de heterogeneidade estrutural, ultimamente bastante esquecido na esteira do ostracismo a que tem sido votada a Teoria da Dependência, não cessou, por essa razão, de ser um conceito valioso. A heterogeneidade estrutural pode ser vista inicialmente como abissais discrepâncias de produtividade – no interior de cada setor econômico: na agricultura, na indústria –, o que não poucas vezes tem a ver com uma heterogeneidade dos modos e das relações de produção. É razoável, ainda, estender um pouco mais o conceito, a fim de contemplar a heterogeneidade sócio-econômica e sócio espacial característica dos países “subdesenvolvidos”: elevadíssima concentração de renda, gritantes disparidades regionais etc.

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EDIÇÃO 35, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33