A acreditar nos livros de história vulgares, os protagonistas da conquista do Atlântico e do Novo Mundo foram heróis míticos, cantados por Luís de Camões no passado e Fernando Pessoa em nosso século, e louvados por legiões de historiadores. A julgar por filmes “históricos” que tratam daquela época (ou que tratam de navegações), eram homens incomuns, capazes de tarefas gigantescas e sacrifícios enormes em nome da honra, glória, fé ou da cobiça e da ganância.

Em O ponto onde estamos – Viagens e viajantes na história da expansão e da conquista (Portugal, séculos XV e XVI), publicado pela Scritta, o historiador brasileiro Paulo Miceli ajuda a conhecer melhor a vida e a aventura daqueles homens que, em embarcações inacreditavelmente pequenas e frágeis, lançaram-se àquela empreitada.

Embora a concepção de história delineada por Miceli na introdução e primeiro capítulo não seja exatamente aquela com o qual os marxistas concordam, quando o livro entra propriamente em seu tema, no segundo capítulo, as divergências vão sendo diluídas.

É impressionante a descrição da Lisboa manoelina, a miséria, a fome, doenças, o número crescente de escravos, o crescente desprezo pelos trabalhos manuais, numa das mais ricas cidades da Europa da época. Um autor citado por Miceli diz: “antes de 1515, os escravos quando morriam, eram lançados no monturro da Porta de Santa Catarina, e em outros lugares pelas herdades daí em redor (…), expostos à voracidade dos cães. Dom Manuel, em seu desejo de sanear a cidade, mandou à Câmara que fizesse abrir um poço, onde os cadáveres fossem consumidos em cal virgem. É a origem da denominação da rua do Poço dos Negros”.

No mar, a vida não podia ser diferente do que era na capital dos descobrimentos. Sobre os navios que partiam dali no começo do século XVII (dois séculos do auge das conquistas!), Pyrard de Laval escreveu: “vão para voltar, se é possível”, acrescentando que “se todos os navios, que lá vão, houvessem de voltar, não haveria quem os mareasse por razão de muita gente que morre nas viagens”.

As embarcações eram mal construídas e sua vida útil muito pequena – duas ou três viagens para as mais bem construídas; em geral, faziam uma única viagem e já não serviam mais. Além disso, as tripulações não eram lá das melhores, diz ele. Muitas das dificuldades enfrentadas nas viagens “vinham da insuficiente qualificação da gente do mar, já que nem sempre os profissionais que integravam as tripulações tinham experiência para enfrentar as mais elementares exigências da navegação, transformando a viagem numa aventura trágica, marcada desde o início por episódios que a ironia de alguns cronistas se encarregou de mostrar”. A corrupção generalizada, traduzida muitas vezes até mesmo na venda de lucrativos cargos nas embarcações (como o do piloto, por exemplo), punha profissionais inaptos em funções fundamentais para o bom êxito das viagens. Situação agravada pelo desprezo ante o sofrimento e a morte dos alheios; pelo descaso no provisionamento de gêneros e água nas embarcações etc.

Em Mensagem, Fernando Pessoa comemorou os feitos portugueses com uma nítida marca de orgulho nacional.
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
Pessoa escreveu sobre feitos que, na manhã dos tempos modernos, arrebentaram os limites estreitos do mundo antigo e deram os primeiros passos para a integração que hoje parece completar-se. Paulo Miceli conta a parte humana e trágica que a apologia histórica teima em esconder.