Quem vê um desenho do Fortuna não imaginaria o grau de perfeccionismo que existe por trás de seus traços aparentemente displicentes. Aquelas figuras rabiscadas com três ou quatro linhas muitas vezes são resultado de um infindável número de esboços e de uma pesquisa gráfica exaustiva. Palitos de fósforo em vez de pena e pincel, tinta de parede, colagens e os mais estranhos materiais eram os instrumentos de seu ofício. Mas quando alguém se espantava com todo o trabalho preexistente na realização de uma capa de revista ou de um cartum, Fortuna respondia com certo desdém: “Ao leitor não interessa como eu realizei o trabalho, se na prancheta ou no banheiro, se com papel ‘A’, ‘B’ ou ‘C’. O que interessa é o resultado e se a piada que fiz é engraçada ou não”, dizia ele.

Por vezes algum editor desdenhava seu esforço, querendo regatear o preço cobrado. “Você fez isso em quinze minutos”, era o argumento mais comum. Para esses, Fortuna tinha sempre uma resposta engatilhada: “Fiz em quarenta anos mais quinze minutos, que foi o tempo necessário para eu chegar a essa síntese que você vê aí”.

A maioria dos desenhos de Fortuna certamente foi feita em bem mais de quinze minutos, e o tempo de aprendizado se estendeu por 45 anos de vida profissional, desde o tempo em que assinava como Ricardo Forte, no final da década de 1940, quando chegou ao Rio de Janeiro.

Quase bancário

Reginaldo José de Azevedo Fortuna morreu aos 63 anos de um fulminante ataque cardíaco, no último dia 5 de setembro, em São Paulo. Nas quatro décadas e meia que esteve em atividade, destacou-se como um desenhista de humor de mão-cheia, um chargista contundente e um cronista exemplar. Seu primeiro desejo, aliás, não era profissionalizar-se como artista gráfico, mas como escritor. Este sonho foi acalentado desde os tempos em que economizava o dinheiro do bonde em São Luís do Maranhão, sua cidade natal, no início dos anos 1940, para poder comprar o semanário A Manhã, do Barão de Itararé, e se divertir. “Sou-lhe grato por ter amenizado as ladeiras que por sua causa tive que subir”, escreveu certa vez.

Mas aos 14 anos a morte do pai veio causar uma reviravolta na vida pacata daquele menino. Sem ter como tocar a vida, a mãe, costureira, resolveu se mudar com o filho único para a capital federal. E numa vila modesta do bairro da Lapa, onde já moravam a avó e uma tia, também costureiras, Fortuna iria iniciar sua carreira.

Evidentemente, o que as três planejavam para o futuro do garoto não tinha nada a ver com essa história de desenho e escrita. Queriam coisa segura, coisa “que só o concurso do Banco do Brasil pode dar”. Era demais para Reginaldo, um sujeito extremamente organizado, mas totalmente avesso ao trabalho monótono. Passar, quem sabe, vinte ou trinta anos atendendo clientes, checando saldos e balancetes, dia após dia, definitivamente não estava em seus planos. Resolveu, em vez disso, aventurar-se pela imprensa carioca, e em pouco tempo já publicava sua arte no Sesinho, revista infantil do Sesi, em A Cigarra e na Revista da Semana.

Humor e artes plásticas

O desenho do Fortuna dessa época ainda era muito conservador; parecia-se com os quadrinhos infantis norte-americanos e brasileiros, com seus bonecos redondinhos e de olhar travesso. A explosão de seu estilo só aconteceu lá pela metade da década de 1950, quando conheceu o trabalho de uma nova geração de artistas europeus surgidos no pós-guerra. Eram os franceses André François, Sempé e Bosc e o romeno Saul Steinberg. Este último é considerado por Millôr Fernandes “um artista do nível e da inventividade de Picasso”.

E o que tinha de tão excepcional nos trabalhos dessa gente? Simples, elas praticamente acabaram com as fronteiras existentes entre o desenho de humor e as artes plásticas. O abstracionismo, o cubismo e outras tendências em voga na época passaram a fazer parte dos trabalhos publicados em jornais e revistas, que abandonaram os modelos bem-comportados praticados até então.
No final da década o estilo inconfundível de Fortuna apareceria nas belíssimas páginas de uma revista que até hoje não encontrou paralelo em nossa imprensa e talvez na imprensa internacional: a Senhor da primeira fase.

Primeiro de Abril

Em março de 1964, dias antes do golpe, Millôr Fernandes resolveu reunir a nata do humor brasileiro – Ziraldo, Jaguar, Claudius, Sérgio Porto e, é claro, Fortuna – e lançar o quinzenário colorido O Pif-Paf. O jornal não poupou a ridícula quartelada de “Primeiro de Abril”, como eles gostavam de frisar, e apesar do relativo sucesso não conseguiu passar do oitavo número. Mas deixou a semente para a verdadeira revolução na imprensa brasileira, que aconteceria cinco anos depois, com O Pasquim.

Em setembro do mesmo ano, com o golpe ainda quente, Fortuna, Jaguar e Claudius reúnem seus trabalhos de O Pif-Paf e do Correio da Manhã e publicam o mais contundente e provocativo livro de charges já lançado em nosso país, o excepcional Hay Gobierno?, que contém, de quebra, um incendiário prefácio do hoje direitista babão Paulo Francis. Nada fica sem uma estocada no livro, desde Roberto Campos até Carlos Lacerda, passando pelos golpistas e pela classe média, temerosa da “comunização” do país. Em poucas semanas o livro estava esgotado.

Nos cinco anos seguintes, Fortuna atuaria como chargista no Correio da Manhã, um dos órgãos mais visados pela ditadura. Seu trabalho do período atinge uma síntese exemplar entre o rigor plástico que vinha cultivando desde a década anterior e a combatividade e o deboche que os novos e bicudos tempos exigiam. Eram charges feitas no calor dos acontecimentos e que mostravam ao leitor, impedido de exercer seu poder de voto, a conjugação correta do verbo “votar”: “eu voto, tu votas, ele veta” era a lição de um dia. Noutro a placa do Ministério do Planejamento era mudada para “Planejaumento”, ironizando os inícios da inflação galopante. Uma síntese deste material foi reunida no volume Aberto para balanço, publicado em 1980 pela Editora Codecri. O segundo volume aguarda editor até hoje. O Pasquim

Paralelamente Fortuna exerceu o cargo de chefe de arte da Enciclopédia Barsa, na época editada por Antonio Callado. Quando o Correio da Manhã foi extinto no final dos anos 1960, Fortuna estava entrando na grande aventura do semanário O Pasquim, produzido por ele, Tarso de Castro, Millôr Fernandes, Ziraldo, Paulo Francis, Luis Carlos Maciel, o novato Henfil e dezenas de outros colaboradores. A influência do jornal do “rato que ruge”, como escrevia Jaguar, em alusão ao ratinho Sig, mascote do semanário, é sentida até hoje na imprensa, que desde então tirou o terno e a gravata e passou a usar a linguagem falada nas ruas e nos bares.

No início dos anos 1970 a barra pesou e Fortuna mudou-se do Rio para São Paulo e assumiu o posto de diretor de redação da revista Cláudia, onde passou a dar conselhos às leitoras sob o pseudônimo Ana Maria. Em seguida tornou-se editor de arte e capista da Veja, onde ficou até 1975.

Por essa época, uma nova geração de desenhistas em quadrinhos aparecia em São Paulo e no Rio em revistinhas universitárias de pequena tiragem, entre eles Luiz Gê, Paulo e Chico Caruso, Laerte, Cláudio Paiva e Nani. Fortuna decidiu então reunir essa tribo no primeiro gibi moderno produzido no país: O Bicho. Em suas páginas, Fortuna lançou o quadrinho mais surreal já produzido por aqui, “Madame e seu bicho muito louco”, onde uma matrona histérica contracenava com o absurdo cachorro de bigodes em diálogos do mais puro nonsense. O Bicho teria vida curta. Em 1977 Fortuna vai para A Folha de S.Paulo fundar com Tarso de Castro o suplemento “Folhetim”, uma espécie de pasquim encartado no grande jornal, e lá iniciou uma nova fase como chargista editorial. Nesse período manteve uma página semanal no Folhetim, onde além de publicar seus textos sob o pseudônimo de Prof. Reginaldo começou a brincar com as marcas das grandes empresas, criando a seção “Diz, logotipo!”.

Mas o trabalho que julgava mais importante era o de chargista. “Quem publica uma charge tem funções semelhantes às de um editorialista”, costumava repetir, acrescentando que o desenho não comportava determinadas acrobacias verbais próprias do texto, no qual, em linguagem sinuosa, qualquer afirmação feita num parágrafo pode ser seguida, no parágrafo seguinte, de “mas, porém, contudo, todavia”. A charge não; a charge é direta e não admite subterfúgios”, completava. Muito em função disso, Fortuna saiu da Folha em 1984, logo depois da campanha das Diretas, para ficar um longo tempo fora da grande imprensa. “Só volto quando ela se modificar”, sentenciava.

Grande ano

“O telefone do seu estúdio ficou mudo por seis anos”, lembra Izilda Alves, sua esposa. Fortuna ficou sem trabalho. Por não retratarem as figuras do meio político – ele não era caricaturista –, sua charges não interessavam aos jornais. No período editou Diz, logotipo!, pela Studioma, e Acho tudo muito estranho, com seus textos do “Folhetim”, pela Anita Garibaldi. Contribuiu em jornais sindicais e no órgão central do PCdoB, A Classe Operária.

Os volumes projetados sobre o Barão de Itararé e o primoroso Dababu, uma história infantil de 1961 que antevia a grande revolução que o livro infantil conheceria nos anos 1970, não se concretizaram. Reginaldo não era homem de se lamuriar com dificuldades. “Às vezes ele ficava calado”, lembra Izilda, “mas não reclamava”.

As coisas começaram a mudar de um ano para cá. Fortuna voltou à grande imprensa, apesar de ela não ter sofrido modificações substanciais como gostaria, desenhando uma charge semanal para a Gazeta Mercantil. Iria ser homenageado em Ilhabela e diversos jornais voltaram a procurá-lo. Além disso, estava tentando reeditar o histórico Hay gobierno? e havia regularizado sua contribuição à imprensa sindical. E, finalmente, estava realizando um grande sonho: o de produzir uma retrospectiva de sua carreira, com duas exposições simultâneas, uma no MASP, em São Paulo, e outra mo Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro.

“Este foi um grande ano para ele”, conta Izilda. Ironicamente, no dia em que faleceu, sua filha iria ligar do Rio com a resposta afirmativa do Banco do Brasil sobre o pedido de patrocínio para a exposição.
Morreu um perfeccionista, um dos “cem melhores cartunistas do mundo”, conforme apontado em 1977 pela Casa do Humor e Sátira de Gabrovo, da Bulgária. Morreu também um homem raro, que tinha “um gênio filho da puta”, segundo Jaguar, mas que nunca abdicou de suas opiniões para assegurar o emprego. Morreu um artista de espinha ereta.
Tchau, Fortuna!

EDIÇÃO 35, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 23, 24, 25, 26