“Os Estados Unidos podem ajudar a minimizar as acusações de que são agentes imperialistas encobrindo-as com o apoio às atividades demográficas e afirmando, reiteradamente, que esse apoio deriva-se do interesse pelos direitos dos indivíduos de decidirem livre e responsavelmente seu número de filhos e o momento de engravidar”**.

Nos dias 5 a 13 de setembro de 1994, às margens do Nilo, representantes de 183 países de todo o mundo, mais de 15.000 pessoas, reuniram-se na Conferência Mundial de População e Desenvolvimento, promovida pela ONU.

A exemplo da ECO-92, para a questão do meio ambiente, no Rio de Janeiro, e dos Direitos Humanos, em Viena, essas conferências – as duas últimas sobre população realizaram-se no México, em 1984, e em Bucareste, em 1974 – são momentos em que, de década em década, os representantes dos governos dos países-membros da ONU aprovam documentos gerais, grandes declarações consensuais, que passam a representar recomendações da ONU aos governos de todo o mundo, no que se refere às políticas populacionais. Esses documentos têm como pano-de-fundo a tentativa de conciliar interesses do Sul e do Norte, de pobres e ricos, buscando representar um certo acordo de convivência pacífica, a vigorar no período entre as conferências.

O mesmo ocorrerá em Copenhague em relação ao tema “desenvolvimento”, no início de 1995, e em relação às mulheres, em setembro do mesmo ano em Pequim.

Reuniões tão abrangentes entre “gregos, egípcios e troianos”, para buscar a aprovação de documentos consensuais sobre temas tão candentes, certamente é uma tarefa que envolve, no mínimo, boa dose de talento teatral e, quem sabe, para os mais otimistas, de ingenuidade.

A tentativa de colocar no mesmo rol de preocupações países pobres e ricos, muçulmanos e católicos, países com taxas de crescimento abaixo dos níveis de reposição e outros com taxas de crescimento positivas – ou seja, realidades e interesses tão díspares – pode terminar se assemelhando à desastrada história de acertar os quatro pés mancos de uma mesa que, de tanto ser aparada, termina por se transformar em um banquinho.

Na busca de convergências e afinidades, muito mais de aparência do que de fundo, descaracterizam-se os problemas centrais e os principais temas de discussão. O produto final pode acabar sendo um relatório genérico, insípido e evasivo, mas cheio de armadilhas e dubiedades nas entrelinhas. E, ao final de tudo, são recomendações que os países seguirão, ou não, se quiserem. Como afirmou um porta-voz do Vaticano, mais do que o debate e a busca de soluções para os graves problemas mundiais, esses encontros são “uma luta para determinar quem vai estipular os valores da sociedade moderna e conduzir a opinião pública” (1). 1

E em termos de opinião pública, a Conferência do Cairo sobre população merece uma análise em profundidade sobre seu significado.

O noticiário sobre o Cairo foi marcado pela enorme divulgação dada às conquistas do feminismo, no que se refere à igualdade entre mulheres e homens. Vale lembrar que, se a luta das mulheres por igualdade já não é nova para nossos machistas latinos-tupiniquins, o mesmo não acontece em todos os 183 países lá reunidos. Entre os representantes desses países havia, desde a avançadíssima Gro Harlem Brundtland, chefe do governo da Noruega, que se tornou a porta-voz da defesa da liberação do aborto (2), 2 até rancorosos governantes que não aceitavam, por exemplo, que a igualdade valesse para o sistema de heranças ou para os vários tipos de família. Os islâmicos conseguiram mudar no documento final as formulações de “sistema igualitário” para “sistema justo” de herança, assim como “outras uniões” para “vários tipos de famílias”, pois entre os muçulmanos as mulheres recebem metade do que recebem seus irmãos, quando da partilha de bens herdados. Também, na sua opinião, o termo “outras uniões” pode ser interpretado como um estímulo ao homossexualismo (3).3

Não obstante essas resistências, com a aprovação final do documento, em que muitos avanços foram registrados, a legitimação da luta pela igualdade entre mulheres e homens, que já era tendência mundial, a partir de muitas lutas e conquistas, passa agora a ser reconhecida como direito fundamental e universal por todos os 183 países signatários do documento.

“Religiosos de todas as fés impuseram, de forma artificial, 1/3 da agência dos debates da Conferência”.

Na esfera das questões populacionais, no entanto, ocorreram as principais efervescências da Conferência, mas nem sempre em torno do epicentro da questão. Alguns debates foram mesmo catalisados e ampliados artificialmente, embora não seja nada artificial que seus principais protagonistas sejam duas das forças hegemônicas do mundo hoje, no tocante ao controle populacional e direitos reprodutivos: a Igreja e os Estados Unidos. Situa-se nesse grupo de eventos, por exemplo, a derrota das posições retrógradas do Vaticano em relação às questões do aborto e saúde reprodutiva. A Santa Madre Igreja, as delegações oficiais de Argentina, Equador, Venezuela, Guatemala, El Salvador, Nicarágua, Malta, líderes radicais islâmicos do Irã (alguns países islâmicos recusaram-se a participar), autoridades muçulmanas da Arábia Saudita e extremistas de direita dos Estados Unidos conseguiram tomar um terço do tempo da Conferência nas discussões sobre aborto, planejamento familiar, maternidade segura e saúde sexual e reprodutiva, não aceitando sequer abordagens como educação sexual para jovens e uso de camisinha para prevenção da AIDS (4). 4

As vedetes políticas deste final de século – as Organizações Não Governamentais – desta vez tiveram um significado maior e de nova qualidade, cumprindo papel importante na derrota sofrida pelo Vaticano e seus aliados. Articuladas num fórum paralelo, a exemplo do que vem ocorrendo desde a ECO-92, as ONGs participaram, desta vez, muito mais através do intercâmbio e pressão junto às delegações oficiais do que em fóruns marginalizados. Mesmo antes do Cairo, nas três reuniões preparatórias da
Conferência, em Nova Iorque, esse espaço da chamada sociedade civil vem tendo uma intersecção muito mais efetiva e amena com as representações governamentais. Isto pode significar maior ressonância das reivindicações populares e do mundo acadêmico nas esferas de poder, mas pode significar também administração e abrandamento dos conflitos para que eles se tornem mais manipuláveis. Pequenas e caras conquistas podem ser atingidas, em troca de questões mais estruturais e de fundo, que são decididas discretamente e que nem sequer passam por esses fóruns.

“Após a transição demográfica, 82% dos países europeus crescem lentamente”.

No tocante ao tema central de população e desenvolvimento, cabe lembrar que qualquer reunião como essa – e no Cairo não poderia ser diferente – tem como cenário de fundo importantes conflitos entre os países presentes, embora todo o curso da reunião tenha procurado ignorar essa palpável realidade, pelo que se observa no noticiário e no relatório final.

Uma parte do mundo, como é o caso de 82% dos países da Europa, já sofreu sua transição demográfica no início do século e vive hoje um perfil de crescimento que se situa abaixo dos níveis de reposição de 2,1 filhos por mulher (Berquó, 1993). Do outro lado estão os países pobres que, a despeito de assistirem a um declínio sistemático de sua fecundidade nas últimas décadas e apresentarem realidades demográficas distintas, contribuem com um crescimento populacional de 1,9% ao ano. Deste total, a África contribui com 16%, a Ásia com 73% e a América Latina com 12%.

Enquanto as populações dos países ricos decrescem e se constituem cada vez mais de idosos, a África cresce anualmente 2,9%, a Ásia e a América Latina 1,9% e 2% respectivamente (Berquó, 1993) (5). 5 É muito diferente falar em saúde reprodutiva na África, com mortalidade materna que chega em algumas regiões a 4.000 mulheres para cada 100 mil nascidos vivos e tem uma esperança de vida ao nascer de 52 anos, ou no Brasil, com mortalidade materna de cerca de 270 mulheres para cada 100 mil nascidos vivos e esperança de vida ao nascer de 67 anos, ou na Suécia, com índices de morte materna de 5 mulheres para cada 100 mil nascidos vivos (6). 6

Enquanto isso, formulações que foram tema de calorosos debates no Cairo em torno da liberação do aborto – como “liberdade de escolha”, de um lado, e “direito à vida”, de outro – podem ser palavras vazias, se não se especifica de qual realidade estamos tratando. Podem ter um significado bastante diferente para uma mulher que viva na Noruega e uma que viva numa tribo africana ou no sertão do Piauí. Os problemas populacionais e de direitos reprodutivos expressos nessas formulações nem sempre têm como centro de preocupação a mulher e podem ser falsos dilemas. Cultura, condições econômicas, qualidade de vida, acesso à saúde e educação, índices de mortalidade infantil, esperança de vida e formas de desenvolvimento da economia doméstica e social podem determinar diferentes concepções de liberdade de escolha e de direito à vida, assim como o significado de maternidade segura.

Estar submetida a serviços de saúde precários no momento de um aborto, usar métodos anticoncepcionais pouco conhecidos e experimentais e ter contato tão constante com a morte prematura podem ter um conteúdo bastante diferente para uma mulher do Terceiro Mundo, enquanto liberdade de opção pode ser uma questão essencial para uma mulher americana ou européia – o que nos faz perguntar se as questões debatidas no Cairo o foram na perspectiva de promover de fato a mulher a uma condição superior à atual.

Isto se liga a um outro fato inegável: as questões ligadas ao planejamento familiar e à saúde reprodutiva vêm bastante carregadas de uma preocupação alarmante para os países ricos: no ano 2.020, se continuarem as atuais taxas de crescimento citadas acima, os países pobres abrigarão 80% da população mundial (7).

“EUA: é preciso controlar os países pobres, para que seus recursos naturais sirvam aos americanos”.

Vandana Shiva, uma estudiosa dos problemas do meio ambiente e da mulher do Terceiro Mundo, escrevendo sobre o Cairo, cita um interessante artigo publicado pelo Washington Quarterly, um periódico do Center for Strategic and International Studies (Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais dos Estados Unidos), a respeito de um estudo do Departamento de Defesa norte-americano de 1989, divulgado recentemente, sobre os efeitos das tendências demográficas mundiais e a capacidade de os Estados Unidos influenciarem os acontecimentos dos outros países (8). 8
O informe do Departamento de Defesa afirma:

“Mesmo que se trate de tarefa difícil e com poucas chances, as autoridades responsáveis e os estrategistas deste país não terão, nas próximas décadas, muito mais opções do que a de prestar atenção às tendências demográficas, suas causas e efeitos. Os Estados Unidos já estão vivendo uma época de recursos limitados. Por isso, é imperativo fazer tudo o que dê o máximo de retorno a cada dólar investido na segurança nacional. As autoridades responsáveis devem prever os eventos e as condições antes que eles ocorram. Devem empregar todos os instrumentos da arte de governar que tenham à sua disposição (tanto de assistência como de desenvolvimento e planejamento demográfico, como novos sistemas armamentistas)”.

Já o artigo do Washington Quarterly é mais explícito, ao comentar:
“A administração Clinton se apóia no meio ambiente, na população e nos direitos das mulheres como as forças-motrizes de sua política exterior para uma nova política mundial. É necessário controlar as populações do Terceiro Mundo porque os recursos naturais que utilizam devem estar disponíveis para o crescimento das empresas estadunidenses. Como previa o Estudo de Segurança Nacional, as populações cada vez mais numerosas criarão crescentes necessidades internas. Em consequência (…) as concessões às empresas estrangeiras têm muitas possibilidades de serem expropriadas ou passarem a estar sujeitas a uma interação arbitrária. Devido à ação estatal, aos conflitos trabalhistas, às sabotagens ou aos distúrbios civis, o fluxo tranquilo de matérias-primas correrá perigo (…) a economia dos Estados Unidos necessitará de grandes e crescentes quantidades de minerais do exterior, especialmente dos países menos desenvolvidos. Esta circunstância aumenta o interesse dos Estados Unidos pela estabilidade política, econômica e social dos países abastecedores” (9). 9

Não poderia haver maior clareza. A questão demográfica, a questão da mulher e dos direitos reprodutivos formam, hoje, um complexo emaranhado em que a “ameaça de invasão” que os países pobres representam para os ricos justifica uma espécie de “imperialismo demográfico”. Se tivermos atenção para esse aspecto veremos que o velho e conhecido controle populacional aparece no documento final do Cairo – Programa de Ação Agora – não mais de maneira explícita, mas na forma de garantia de acesso ao planejamento familiar para toda a população até o ano de 2015, o que não deixa de ser uma meta demográfica de contenção, disfarçada em acesso ao direito, que é de fato legítimo, aos serviços e à informação sobre contracepção. Lutar por serviços de saúde para a mulher – e que sejam integrais, de boa qualidade, públicos e gratuitos – passa, assim, a ser uma bandeira ainda mais legítima.

“Controle da reprodução e liberdade de escolha: uma luta de mulheres e povos de países pobres”.

A Conferência do Cairo se manteve ainda dentro dos marcos do atual jogo de interesses no plano mundial, sem questioná-lo ou causar-lhe rachaduras – embora tenha sido, reconhecidamente, um momento importante de aglutinação, intercâmbio e fortalecimento dos segmentos sociais marginalizados e dos países com governos progressistas; embora tenha significado a derrota de muitas idéias retrógradas que determinam ainda os conceitos de sexualidade, família e reprodução em nossa sociedade, idéias que se expressaram através da postura conservadora do Vaticano e de seus aliados. As questões ligadas ao desenvolvimento independente e à justa distribuição das riquezas a todos os povos e países, como condição para haver igualdade, não foram sequer debatidas.

Os países têm suas características demográficas próprias, em função de sua economia, seu desenvolvimento, sua posição no mundo, sua história. Em relação às metas populacionais, os interesses dos diversos segmentos sociais em luta também seguem essa dinâmica. Enquanto para os ricos interessa garantir o controle da reprodução, da família e da propriedade, atendendo à sua necessidade de acumulação e controle social, os povos dos países pobres e as mulheres – estas ainda com mais razão – lutam para resgatar o controle sobre essa mesma reprodução, seu corpo, sua liberdade de escolha e, também, para ter acesso à prosperidade, à produção, a uma mais justa distribuição de renda e ao poder político. Tais questões estão intimamente ligadas à situação das mulheres, sua luta e à conquista de seus direitos, no que se refere ao uso de seu corpo como instrumento de controle social. Por isso não se pode imaginar que, entre países tão diferentes, haja consenso em relação aos problemas referentes à população e ao desenvolvimento, sem que se aceite o desafio de enfrentar as divergências entre Norte e Sul, entre pobres e ricos, entre mulheres de países pobres e ricos. Se estes desafios não forem enfrentados, haverá sempre uma força hegemônica impondo suas soluções, de forma bem distante dos interesses das mulheres e das populações excluídas – esta é a política dos Estados Unidos, país interessado em definir as metas e os rumos do crescimento populacional do planeta para as próximas décadas. Infelizmente, a esse desafio o Cairo não conseguiu vencer.

* Médica sanitarista e diretora da União Brasileira de Mulheres.

Notas

(1) Veja n. 34, setembro de 1994, p. 50.
(2) Jornal do Brasil, 09-09-1994.
(3) Folha de S. Paulo, 09-09-1994.
(4) Folha de S. Paulo, 09-09-1994.
(5) Elza Berquó, “Cairo 94 e o confronto Norte-Sul”, julho de 1993 (mimeo).
(6) Relatório do Banco Mundial, 1994.
(7) Boletim Demográfico, CELADE, ano XXIV, n. 48, Santiago, julho de 1991.
(8) Revista del Sur, n. 37, Montevidéu, outubro de 1994.
(9) Idem.

** Estudo sobre Segurança Nacional do Departamento de Defesa americano, dado a conhecer recentemente no periódico Washington Quarterly.

EDIÇÃO 36, FEV/MAR/ABR, 1995, PÁGINAS 46, 47, 48, 49