De frente para o Brasil
Roniwater Jatobá (de Almeida) nasceu em 22 de julho de 1949 em Campanário, Minas Gerais. Aos dez anos foi morar em Campo Formoso, Bahia, onde concluiu, em 1964, o curso ginasial. Por alguns anos perambulou pelo sertão baiano, dirigindo um caminhão Ford e lendo nas muitas horas vagas. Em 1970, após servir o exército em Salvador, veio para São Paulo. Trabalhou como operário na Karman-Ghia, no ABC, enquanto morava ao lado da Nitroquímica, em São Miguel Paulista. Entrou para a Editora Abril no final de 1973, na área gráfica, e cinco anos depois, auxiliado financeiramente pela empresa, formou-se em jornalismo. Foi redator das publicações infanto-juvenis desta editora e da Rio Gráfica (hoje Globo), escreveu livros e colaborou em Versus, Folha de S.Paulo, Movimento, Escrita, Ficção e outros. No final dos anos 1970 viveu sete meses na Europa, num exílio voluntário. De volta ao Brasil foi redator do Nosso século, editor de textos de Movimento e Retrato do Brasil (fascículos), editor executivo de Saúde, Boa Forma e de publicações especiais da revista Corpo a Corpo; criou e dirigiu ainda a revista Memória e editou livros históricos na Eletropaulo.
Roniwalter Jatobá publicou Sabor de Química (contos, 1977, Prêmio Escrita de Literatura); Crônicas da vida operária (contos, 1978, Prêmio Casa de las Américas, de Cuba, em 1978); Filhos do medo (romance, 1979, adaptado para teatro); Viagem à montanha azul (novela juvenil, 1982, editado também nos Estados Unidos em 1983); Pássaro selvagem (romance, 1985); todos com várias edições.
Seus contos foram ainda incluídos em diversas antologias brasileiras e estrangeiras; com traduções para o alemão, inglês, sueco e italiano. Em 1988, traduziu o livro A cavalaria vermelha, de Isaac Babel, editado pela Oficina de Livros.
José Carlos Ruy
Princípios: Você veio do interior do Nordeste, foi motorista, metalúrgico, gráfico, jornalista… Como é que virou escritor?
Jatobá: A meu ver, dois fatores importantes me fizeram arriscar na literatura: muita leitura e vivência. Nasci em Campanário, Minas, em 1949. Meus pais eram baianos, estavam ali desde o final da Segunda Grande Guerra, quando buscaram o norte mineiro para tentar a sobrevivência. Eram tempos difíceis, época de desbravamento de uma inóspita região. Quando começou a chegar o progresso, por exemplo o asfaltamento da Rio-Bahia, minha família voltou para o sertão baiano nas proximidades da cidade de Campo Formoso. E essa volta foi importante para mim. Vivendo na casa de um tio, entrei num colégio protestante para fazer o ginásio e, aí, a descoberta da literatura. Nesta pequena cidade, por sinal, havia um oásis cultural. Cinema e teatro. Nunca me esqueço: os jovens, na grande maioria, brigavam para ver quem ia ler primeiro as novidades literárias que chegavam de Salvador. Havia ali um advogado e professor de geografia, Domingo Dantas, que colecionava livros autografados de autores brasileiros. Tinha todo mundo. Ele mandava buscar no Rio de Janeiro. Naquela época, e durante quatro anos, nos esbaldamos de ler Graciliano Ramos, José Lins do Rego e muita prosa americana. Em 1964, terminei o ginásio, mas meu pai não tinha condições de me enviar para Salvador para continuar os estudos.
“Num país que tem produzido uma “literatura” alienante, eu tento ver a vida de frente”.
Com quinze anos, a minha perspectiva era trabalhar na roça ou ajudar meu pai, que possuía um velho caminhão. Naquele período da nossa vida, o Ford amarelo servia para meu pai comercializar produtos industrializados (açúcar, bebidas) e também permutá-los por feijão, farinha etc. Fui, então, dirigir o caminhão. Como dizem no sertão que o único guarda de trânsito existente ali são os jegues, que teimam em pastar no meio das estradas de terra, não precisei de habilitação. Fiquei, assim, nessas andanças por quase três anos. O trabalho era agradável e me sobrava muito tempo. Enquanto meu pai cuidava dos negócios nos pequenos lugarejos, eu lia. Foi aí que conheci quase todos os títulos da pequena biblioteca de Campo Formoso e travei conhecimento com os textos de Dostoiévski, Gogol, Kafka e muitos outros.
Depois de servir o Exército em Salvador, vim para São Paulo, em 1970. Aqui fui morar em São Miguel, na casa de uma família, um exemplo de solidariedade. Casa, comida, roupa lavada e amizade. Era fevereiro. Até abril bati muita perna em busca de trabalho. Na Nitroquímica, a maior fábrica de São Miguel, e que empregava quase todo mundo que chegava da Bahia, não tinha vaga. Rodei a cidade inteira até que, um dia, consegui uma vaga de ajudante de almoxarifado na Karmann-Ghia, no ABC. Fiquei três anos empurrando carrinho cheio de peças para a produção. Em 1973, saí e entrei na Abril, como apontador de produção na gráfica. A partir daí, auxiliado pela empresa, fiz supletivo colegial e, depois, pude me formar em jornalismo. Foi na escola que comecei a escrever os primeiros trabalhos. Eram contos e, em todos eles, o cenário era a periferia paulistana ou os dramas dos migrantes na sua vinda. Virei, então, escritor e jornalista. Enquanto trabalhava em Versus, Movimento e publicações da Abril, continuei a escrever. Aí, um dia, mandei um conto para a revista Ficção, no Rio, e outro para a Escrita, em São Paulo. Ganhei os dois prêmios e não parei mais.
Princípios: Seus livros, desde o começo, denunciam essa origem e uma forte ligação com o drama da classe operária da periferia de São Paulo, formada em grande medida por migrantes. Como é que você se situa na literatura brasileira de nosso tempo, em que a problemática operária está ausente nas obras literárias, na crítica e mesmo em balanços importantes como o feito por Alfredo Bosi no livro Dialética da Colonização?
Jatobá: Sou um dos poucos autores que escrevem sobre o migrante nordestino. Não tenho intenção de mudar de assunto ou mesmo buscar modismos, o que é comum em grande parte dos escritores brasileiros. Muitos escrevem para onde o vento sopra. Tento, ao contrário, me aprofundar na temática e elaborar cada vez mais a linguagem, fugindo, claro, do ranço naturalista. Num país que, nos últimos anos, tem produzido sobretudo uma “literatura” de alienação (magia, auto-ajuda, trapaçarias psicoterapêuticas etc.), busco uma literatura que olhe a vida de frente. De certa forma, busco devolver ao leitor aquele Brasil que já esteve presente em nossa literatura de ficção, sobretudo a partir dos anos 1930, que tanto ajudou na formação de uma consciência nacional. Quanto à ausência da problemática operária nas obras literárias, o que esperar de uma universidade, de uma grande imprensa, de dirigentes que voltaram as costas para a situação da maioria do povo brasileiro? Quanto à crítica, faço minhas as palavras do escritor inglês V. S. Naipaul: “Se as pessoas não leram meu trabalho, isto quer dizer que não precisam dele. Se precisassem, teriam encontrado”. Assino embaixo suas críticas em relação aos escritores latino-americanos, aqueles que acham que não precisam ser realistas, e que não é necessário analisar a terrível história de sua terra.
“Essa gente não quer conhecer o complexo social em que o homem mora e moureja sem trégua”.
Princípios: Ficou fora de moda falar em realismo, temática social etc. O realismo está em baixa?
Jatobá: Vivemos entre vendedores oficiais de milagres econômicos, nos quais, apesar de todas as nossas terríveis experiências, teimamos em acreditar. São planos para 30 ou 40 milhões de habitantes. E o restante? Para essa elite que procura abocanhar os recursos do Estado não interessa saber de temática social. Não interessa uma visão crítica da nossa sociedade, propositalmente “esquecida” pela cada vez mais furiosa colonização estrangeira, especialmente norte-americana. Não interessa, a essa gente, conhecer o complexo social em que o ser humano mora e moureja sem trégua. E a maioria dos intelectuais caminha nesse rumo, estão perdidos, achando que é um assunto fora de moda. Onde está a crítica das universidades brasileiras aos livros produzidos nas últimas décadas? Fechados em redomas, professores se debruçam na tese produzida lá fora. Com raríssimas exceções, grande parte não produz nem resenha. Nesse sentido fico com as idéias do linguista norte-americano, Noam Chomsky, que prega que os intelectuais devem se engajar pelos pobres e oprimidos.
Princípios: A realidade social não aparece em seus livros de forma artificial, como discursos colocados arbitrariamente na boca de personagens que defendem “teses”. Ao contrário, há uma íntima ligação entre forma e conteúdo, entre a situação narrada e as idéias que você pretende transmitir. Em Tiziu, essa experiência literária é visível. Gostaria que você falasse um pouco a respeito.
Jatobá: Tiziu é, sem dúvida, o meu texto mais elaborado. Trabalhei quase oito anos para terminar 134 páginas de um romance denso, mas agradável de ler. A versão final, depois de muitas mudanças, foi publicada na primeira pessoa, com o personagem Agostinho narrando suas aventuras. Cortei muito. Fugi da pieguice, até mesmo das armadilhas ideológicas e do risco da defesa de tese em detrimento da ficção. É bom saber que, ao lidar com esse assunto, o perigo dos estereótipos espreita a cada página. Segui o conselho de Otto Maria Carpeaux, que dizia que o estilo é a escolha do que deve ficar na página escrita e o que deve ser omitido. É a escolha entre o que deve perecer e o que deve sobreviver. Cortei, assim, muita coisa. Exigiu muita paciência até encontrar o tom e o ritmo certos. Como você sabe, tiziu é um pássaro que se urbanizou, vive de restos de comida nas grandes cidades. O título, na verdade, é simbólico. É a história de Agostinho, que depois de 25 anos em São Paulo volta à sua terra de origem. É a história de um homem que vive a dura e descarnada história vivida por milhões de brasileiros, aqueles que nascem e vivem bem longe das benesses, e até mesmo dos mínimos direitos de um cidadão, lutando duramente pela sobrevivência e sonhando sonhos que, embora pequenos, não têm qualquer chance de realização. O enredo, no entanto, é a volta. A volta para encontrar a si mesmo em um lugar que não é mais o mesmo. Veja o que acontece quando Édipo volta a Tebas, quando Orestes volta a Argos. Nos gregos, em toda literatura de ficção, o ser humano não quer voltar, mas volta. É empurrado para trás, para buscar a si mesmo, e o que encontra? O nada.
“A imprensa brasileira é hoje o maior divulgador de porcarias do exterior. Tem papel triste nisso”.
Princípios: Quais os modelos para seus personagens? Tipos como Ciríaco, como o próprio Tiziu, como Dora, saem de onde? Como é a construção do personagem para você?
Jatobá: Nunca escolho o assunto dos meus trabalhos, às vezes tenho uma vaga intuição. Deixo rolar. São as personagens, no momento da criação, que delineiam o ritmo e o prosseguimento da história. “A vida de Ciríaco”, um conto que está no livro Sabor de química, é um exemplo. Numa viagem à Bahia, descobri que, em Bananeiras, onde vivem meus pais, não havia cães nas ruas, um fato incomum. Perguntei a meu pai por quê. Ele disse que alguém, durante as madrugadas, havia matado todos os cachorros vadios. Pesquisei, então, as diversas formas de matar o animal. Conheci as ervas que matavam instantaneamente, a técnica, a sutil aproximação com os bichos. Voltei a São Paulo com aquilo na cabeça. Uma noite, despejei tudo no papel. Ao alvorecer, tinha escrito quarenta laudas. Levei para um amigo na Abril e pedi para ele fazer uma leitura. Desde que foi publicado, não mexi em nenhuma linha. É uma história cruel. É uma crítica dura à situação do país, uma análise que é obrigação do escritor fazer. Por que amaciar ou maquiar a realidade do país? Isso seria uma desonestidade intelectual. Os personagens dos meus livros são pessoas que vagam num mundo próprio e recriado artisticamente. Ou seja, eles são criados para gerar um comentário emocionado sobre as condições do ser humano na face da Terra. São personagens que, como eu, estão preocupados, num mundo difícil de viver e conviver, em realizar-se plenamente como seres humanos, em assumir sua própria humanidade. Em Tiziu é assim. Agostinho foi criado como um personagem que, no final da vida, sabe que está voltando para uma desolação, para uma cidade natal que não existe mais. Acho que a saída dele de São Paulo, de ônibus, é cinematográfica. Quando a máquina do tempo se movimenta, acentua-se o pathos (no sentido grego, paixão que faz sofrer) do personagem. Está voltando para morrer, ele sabe. Por isso a revelação que São Paulo é uma ilusão, uma miragem. Agostinho, Ciríaco, Dora, portanto, refletem apenas o outro lado do sonho de desenvolvimento industrial do país. Gostaria que eles, às vezes patéticos, desesperados, mas humanos, iluminassem um pouco a miséria da nossa condição humana.
Princípios: Hoje em dia, quando se fala em integração do Brasil num mundo globalizado, tem muita “literatura” que copia modelos estrangeiros. Em sua opinião, como se dá a relação entre o nacional e o internacional na literatura? Em que medida a literatura de um país pode ser a expressão das necessidades, anseios, da vida de seu povo?
Jatobá: A globalização do mundo tem, não há dúvida, agilizado o contato de obras importantes para o público brasileiro. Acredito que quem lê apenas em português tem recebido uma vasta opção de textos traduzidos que saíram recentemente em seus países de origem. Isso é bom, claro. Só que atrás disso vem uma enxurrada de porcarias que, sem critério nenhum além do lucro, deseducam. E a imprensa brasileira, hoje o maior divulgador dessas besteiras, tem um papel triste na situação. Como sabemos, a maioria dos jornalistas lê pouco ou quase nada. Quem não lê não sabe avaliar. Seguem, nesse caminho, divulgando os trabalhos de editores que podem mais, os “beneméritos”, ou anunciantes. Sei que há jornalistas que são consultores de editoras. Claro que quando o livro chega às livrarias os consultores se transformam em divulgadores. As pequenas editoras, sem poder de fogo, dependem apenas da boa vontade. O ciclo é vicioso.
“Globalização significa vender sonhos a quem pode consumir e jogar no lixo a vida de quem não pode”.
Tenho acompanhado os maiores jornais de São Paulo. Parece-me que competem para ver quem mostra mais que o Brasil está aberto ao mundo. Tentam colocar o leitor a par do que acontece no Village, em Nova Iorque, e esquecem que tem coisas importantes acontecendo na Barão de Limeira ou no bairro do Limão. Também tem-se criado, nesses jornais, uma competição de “talentos”. Para cada um dos jornais, o melhor cronista, pintor, chargista ou escritor é aquele que colabora em suas páginas. Para muitos artistas, aqueles que não têm amizade ou compadres em nenhum deles, nem escreve quase de graça para encher de opiniões as dezenas de páginas diárias, não há vez. Analisando honestamente a produção cultural, não vejo ainda nenhuma intenção de diversificar. Vejo, sim, a clara vontade de colocar no limbo do esquecimento qualquer trabalho do mundo popular. Este a que editores e donos de jornais têm vergonha de pertencer. É o famoso espírito de “alto astral” que reina nas redações de jornais representantes da elite brasileira. Jornais que hoje se esmeram na divulgação das fofocas sociais e políticas, mas que esqueceram de (ou não querem) registrar a vida ou a arte que fala dos arrebentados do dia-a-dia. Integração do Brasil é isto aí: vender sonhos para os que podem consumir e jogar no lixo da história a vida dos que não podem nada.
Princípios: Como é que os escritores, os artistas e os produtores culturais, em geral, podem se engajar na defesa da cultura de seu país?
Jatobá: A meu ver, fundamentalmente, trabalhando, brigando pelos direitos de escrever. Foi por isso que, no final de 1994, publicamos um livro chamado Contralamúria, com o selo de um grupo ao qual eu pertenço, o Pindaíba. Fizemos uma edição de 75 exemplares e reunimos os cinquenta mais representativos poetas e contistas de São Paulo. Edição esgotada e pronto! Alguém pode dizer: coisa de marginal. É e não é. É, sim, o contra-espelho debochado de uma indústria cultural dependente de “ismos” de plantão. Contra uma minoria alfabetizada de intolerância, preconceitos e desonestidade e uma maioria analfabetizada de saúde, educação, comida e cultura. Nos anos 1970, por sinal, esta ousadia de financiarmos pequenos livros de poesia ou prosa custou aos membros do Pindaíba alguns convites compulsórios aos órgãos repressivos, que queriam saber quem financiava as edições: Albânia? Cuba? Moscou? Óbvio, vinha do inconformismo ante o arbítrio. Hoje, vem do inconformismo às maneiras sutis de sucatear a cultura brasileira. E sabemos que há espaço para operar este adverso e pobre pedaço do real sem contaminação, sem submissão. Alguns artistas – o exemplo melhor é Plínio Marcos – não hesitam em assumir o risco de buscar outros canais de divulgação de seus livros. Já conheço até mesmo autores que têm planos de formar cooperativas. Afinal, basta lembrar que Virginia Woolf e todo o grupo de Bloombsbury teve de fundar a Hogarth Press para lançar suas obras, já que sofriam restrições das editoras da época. Volto ao início da questão e reafirmo: a melhor forma de se engajar na defesa da cultura de seu país é trabalhar, e que a arte produzida seja expressão da vida brasileira.
“Acredito no socialismo, na esperança de uma sociedade nova, avançada, baseada no ser humano”.
Princípios: Como é que fica a luta pelo socialismo, e o engajamento de escritores, artistas, intelectuais nessa batalha, depois do fracasso das experiências socialistas do Leste europeu?
Jatobá: Apesar dos pesares, ainda acredito no sonho do socialismo. Não sou um teórico da questão, mas tenho esperança no ideal de conquista de uma sociedade nova, avançada, baseada mais no ser humano. Nos últimos anos, o mundo ocidental caminhou para uma concentração maior de poder nas mãos do grande capital, criando setores de grandes riquezas, mas, por outro lado, aumentando a legião de miseráveis. Na Europa e nos Estados Unidos cresceu a desigualdade. No Brasil, convivemos com esse drama no dia-a-dia, basta olhar para as ruas, praças e viadutos dos centros urbanos, com seus milhões de Agostinhos, como o personagem de Tiziu. Até quando?
EDIÇÃO 36, FEV/MAR/ABR, 1995, PÁGINAS 62, 63, 64, 65