O historiador mexicano Enrique Semo escreveu certa vez que, da mesma forma que a França era o palco privilegiado da luta de classes na Europa, o México o era na América Latina. Tanto em um como no outro, a transparência e a agudização das lutas sociais permitiam a emergência das contradições ao primeiro plano da cena política. Assim, acabaram por se transformar em referências e modelos dos processos revolucionários.

No Brasil, ainda desconhecemos grande parte da história mexicana (e da maioria dos países da América Latina) e a radicalidade das suas lutas políticas dos últimos dois séculos. O processo independentista, diferentemente do brasileiro, destacou-se pela ativa participação dos setores populares que, entre os anos 1810-1815, acabou por dar um colorido todo especial à luta contra a metrópole espanhola.

“Áreas fundamentais foram cedidas aos EUA, limitando o progresso mexicano”.
Hidalgo e Morelos, dois padres, enfatizaram a necessidade de profundas reformas sociais, entre as quais a reforma agrária, pois consideravam que não bastava simplesmente a separação da Espanha. Foram derrotados e o processo concluiu-se com a hegemonia dos setores dominantes: alto clero, grandes proprietários de terra e altos funcionários do Estado colonial.

Até a década de 1850, o país assistiu a um sem-número de governos, guerras civis e à amputação de dois terços do seu território por parte dos Estados Unidos, após a guerra de 1846-1848, que acabou por se apropriar de áreas que se tornariam fundamentais para o desenvolvimento capitalista norte-americano ainda no século XIX: o Texas, onde foi encontrado petróleo, e a Califórnia, onde já em 1849 foram descobertas minas de ouro, iniciando a ocupação em grande escala do Oeste, agora, americano.

A tragédia representada pela perda deste imenso território – seria como se o Brasil perdesse toda a Amazônia legal – acabou por provocar várias mudanças no panorama político mexicano: os liberais tomaram o poder derrubando os conservadores e iniciaram um programa de reformas. Desejosos de liberar o pleno desenvolvimento das forças produtivas, terminaram por se chocar com os grandes proprietários de terra, particularmente a Igreja, na época possuidora de cerca de metade das terras. O governo obrigou o clero a desamortizar seus bens e, como não foi atendido, acabou por nacionalizá-los.

Os conservadores iniciaram a resistência armada ao regime liberal negando-se a aceitar qualquer reforma. Depois de mais uma guerra civil, solicitaram o apoio de Luís Bonaparte, então imperador da França, para implantar um regime monárquico, conservador, e trouxeram o príncipe Maximiliano, da Áustria, para governar o país. Benito Juarez liderou a resistência nacional contra a aliança dos conservadores e estrangeiros. Depois de vários anos de guerra, os liberais expulsam as tropas estrangeiras, derrotam os conservadores e acabam fuzilando Maximiliano.

“Um país em grande movimento: transformações sociais, greves, motins, rebeliões e revoluções”.
O desgaste pelos longos anos de guerra acabou por enfraquecer Juarez. Depois da sua morte, acirrou-se a disputa pelo poder, que acabou em 1876 com a ascensão à presidência do general Porfírio Diaz, que tinha se destacado na luta contra os conservadores. Apesar da promessa de eleições limpas e da não-reeleição, Diaz ficou no poder por 35 anos. Neste período implantou um radical processo de expropriação dos camponeses, facilitou a entrada de capitais americanos (principalmente nas minas e ferrovias) e aterrorizou a oposição com prisões, torturas e deportações. Diaz acabou se transformando em um modelo para as classes dominantes latino-americanas. Campos Sales, em 1897, declarou que ficaria satisfeito em implantar no Brasil a ordem existente no México, considerando a ditadura porfirista um luminoso exemplo.

As transformações capitalistas terminaram por gerar uma crescente oposição: greves, motins e rebeliões deram o sinal de que a ditadura estava no fim. Em novembro de 1910, depois de mais uma reeleição de Diaz, Francisco Madero, um liberal, membro da elite e candidato derrotado na eleição, iniciou a revolução que almejava retirar o ditador do poder. Como todas as revoluções – e não há nada mais belo na história da humanidade do que estes momentos nos quais as contradições sociais não podem ser mais resolvidas ou ocultadas nas paredes dos Parlamentos –, a Revolução Mexicana fugiu ao controle dos que a iniciaram (os liberais moderados, como Madero), transformando-se num processo que arrastou milhões de camponeses para o centro da luta política. Agora, não eram mais meros coadjuvantes, manobrados pelos políticos das diferentes frações da burguesia, mas os atores principais das transformações sociais. Liderados por Pancho Villa e Emiliano Zapata chegaram a ocupar, em dezembro de 1914, a Cidade do México, no momento mais glorioso da revolução.

Por diversas razões, impossíveis de ser descritas e comentadas aqui, os camponeses foram derrotados pela facção burguesa da revolução, mas esta teve que realizar reformas sociais, pois sem elas não seria possível obter apoio popular, bem como o choque representado pela radicalidade da luta revolucionária tão recente (foram cerca de um milhão de mortos) obrigou a nova classe dominante a implantar um novo arranjo institucional (a Constituição de 1917), no qual foram contempladas diversas demandas populares, como o direito de greve, sindicalização, ensino laico, reforma agrária, entre outros.

O novo Estado, após eliminar as lideranças camponesas (Villa e Zapata foram assassinados, um em 1923 e o outro em 1919), buscou cooptar os novos líderes à máquina governamental, realizando a conta-gotas as reformas prometidas e reprimindo qualquer tentativa de mobilização política fora dos marcos oficiais, ou seja, impedindo a organização independente de operários e camponeses. A estruturação definitiva dos principais pilares do novo Estado ocorreu durante o governo de Lázaro Cárdenas (1934-1940). Foram desapropriados 18 milhões de hectares; criada a Confederação dos Trabalhadores Mexicanos (CTM), que atingia os operários, e a Confederação Nacional Camponesa (CNC), para instrumentalizar os camponeses; nacionalizado o petróleo; implantada uma reforma educacional, que impulsionou o desenvolvimento capitalista. Combinando uma retórica radical com o atrelamento da organização operário-camponesa ao Estado, o cardenismo acabou por representar a forma mais refinada de dominação burguesa na América Latina.

“Euforia dos petrodólares, corrupção e obras faraônicas conduziram ao endividamento externo”.
De 1940 aos anos 1960, os mecanismos desenvolvidos durante o cardenismo funcionaram relativamente bem. O Estado se apropriava do discurso da esquerda ao mesmo tempo em que reprimia operários e camponeses. Em 1968, as crescentes manifestações de estudantes contra o monopólio político exercido pela “família revolucionária” – denominação sarcástica dada pela oposição à elite política mexicana –, acrescidas de as atenções internacionais estarem concentradas para o país devido à realização das Olimpíadas, acabaram por aprofundar as contradições entre a parcela radical – os estudantes – e o governo. A 3 de outubro, na Praça Tlatelolco, no centro da capital, os estudantes são cercados e trucidados pelo Exército. Foram mais de 100 mortos, como se 400 anos depois tivessem sido restabelecidos os sacrifícios rituais astecas ou os massacres perpetuados pelos conquistadores espanhóis.

A crise política do Estado mexicano tinha se manifestado de forma clara e insofismável em Tlatelolco. Nos anos 1970 foram realizadas diversas tentativas em busca de um rearranjo político, mas a diversidade social e os interesses dos burocratas que se assenhorearam do Estado não permitiam qualquer acordo ou regresso a formas antigas de cooptação das lideranças radicais, como durante o período cardenista. A euforia trazida pelos petrodólares, a corrupção e as grandes obras públicas acabaram por conduzir o país a um crescente endividamento externo. Em 1982, o México suspendeu o pagamento do serviço da dívida externa – era o segundo maior devedor – e abriu uma grave crise no sistema financeiro internacional. Outros países, entre os quais o Brasil, também seguiram os passos do México. A América Latina preparava-se para uma década de crise econômica, de crescimento negativo, de aumento da miséria: foi a década perdida.

“Fraude eleitoral conduz Salinas à presidência: as elites consideram paradigma para a AL”.
Em 1988, Carlos Salinas de Gortari foi eleito presidente num pleito caracterizado pela fraude e por ganguesterismo eleitoral: o principal candidato da oposição, Cuahutemoc Cárdenas, vencia as eleições quando foi paralisada a apuração. Reiniciados os trabalhos, o candidato oficial, como num passe de mágica, tinha suplantado o opositor e acabou “vencendo” por uma margem confortável de votos. A oposição acabou por denominar este processo fraudulento de “golpe de Estado técnico”.

Logo ao assumir a presidência, em dezembro de 1988, Salinas iniciou uma série de reformas “modernizadoras”, que acabaram por se transformar no grande exemplo para as elites latino-americanas: todos tinham o México como o paradigma da modernidade e Salinas como o profeta do neoliberalismo que combatia os dragões do estatismo, do protecionismo e do antiamericanismo. No Brasil, como sempre, poucos conheciam a realidade mexicana, mas espalhavam aos quatro cantos as qualidades de “estadista” de Salinas e a excelência da sua política econômica.

Os acontecimentos de dezembro passado, e que continuam até hoje repercutindo nos meios financeiros, surpreenderam estes incautos observadores. A súbita desvalorização do peso, a drástica queda das reservas cambiais e o subsequente pânico financeiro jogaram por água abaixo a tão propalada modernidade salinista, demonstrando a inconsistência de seu programa econômico, mas, mesmo assim, os observadores tentaram imputar a crise ao reinício dos conflitos em Chiapas.

Com um eficiente esquema de propaganda e o beneplácito da imprensa internacional, particularmente a americana, Salinas vendeu a imagem de reformador, daquele tipo de político que todo grande capitalista internacional gostaria de ver à frente dos países latino-americanos. O governo Bush chegou a suspender a ajuda do Partido Republicano – intensificada durante os dois períodos presidenciais de Reagan – ao direitista Partido de Ação Nacional (PAN), pois não havia mais necessidade de usar um partido oposicionista para implantar uma política econômica sensível aos interesses do capitalismo americano.

“Neoliberalismo em ação: líderes sindicais sequestrados, presos, torturados e até mortos”.
Salinas assumiu o governo ainda sob os efeitos da crise de 1982. Tinha sido ministro do governo de La Madrid, que iniciou os “ajustes” para a “modernização” do país. Renegociou a dívida externa, privatizou dezenas e dezenas de estatais, cortou os gastos públicos (principalmente os sociais, ou seja, transporte, saúde e educação), liberalizou o comércio (com graves consequências à balança comercial), aproximou-se dos Estados Unidos preparando o caminho para o Tratado de Livre Comércio (TLC ou Nafta, em inglês) e diminuiu sensivelmente a inflação através do arrocho salarial.

Externamente, afastou-se da tradicional política diplomática mexicana de independência frente aos Estados Unidos: abandonou os sandinistas e os movimentos guerrilheiros da América Central à própria sorte, foi se distanciando de Cuba – o México foi o único país latino-americano que não aceitou as imposições americanas, na década de 1960, para romper relações diplomáticas com a ilha caribenha.

Só foi possível esta guinada nas políticas interna e externa devido ao controle que o Partido Revolucionário Institucional tem do Estado e da sociedade. O PRI – que, equivocadamente, já foi comparado à ARENA e ao PMDB – não é um partido no governo, mas um partido de Estado, que nasceu das suas entranhas. Fundado em 1929, com o nome de Partido Nacional Revolucionário, desde então vem dominando a vida política mexicana. Associado à CTM – cujo secretário-geral, Fidel Velazquez, está no cargo desde 1940, isto é, há 54 anos! – e à CNC, asfixia e aterroriza a sociedade civil há mais de meio século: é impossível alguém obter um emprego público sem estar filiado ao partido e toda a carreira pública está umbilicalmente ligada às relações que o funcionário estabelecerá com o PRI.

O panorama fica mais tenebroso quando analisamos os meios de comunicação de massa, especialmente a televisão. A principal rede, a Televisa, controla só na Cidade do México vários canais de televisão e tem um poder político muito superior ao da Rede Globo no Brasil. Seu proprietário, Emilio Azcarraga, controla também a Univision, rede americana de televisão destinada aos hispânicos que vivem nos Estados Unidos, um mercado de 30 milhões de telespectadores. Don Azcarraga não permite que na sua rede apareça qualquer político de oposição, qualquer notícia crítica ao governo, e a todo momento desqualifica a oposição. Só para situar melhor o problema, é possível considerar Roberto Marinho um democrata, um grande democrata, comparativamente a Azcarraga.

Tudo isso acabou permitindo aos governos de La Madrid-Salinas implantarem seu programa econômico. Quando os trabalhadores tentaram se opor, como na greve da Cervejaria Modelo, em 1990, tiveram seus líderes sequestrados, torturados e alguns mortos. No campo, vários líderes foram assassinados, sindicatos independentes foram fechados e as comunidades agrárias que não aceitaram o controle oficial através das organizações paraestatais e do próprio Estado não receberam crédito ou qualquer benfeitoria (empréstimos, subsídios, estradas e armazéns). Nos estados do Norte próximos da fronteira com os Estados Unidos, os traficantes, em associação com o PRI, passaram a aterrorizar os camponeses e todos aqueles que não se associassem com o narcotráfico.
“A grande imprensa só elogiava Salinas e o México. O projeto ruiu e revelou a fraude”.

Em 1º de janeiro de 1994, grupos de camponeses em Chiapas, no Sul do país, através de uma organização até então desconhecida (o Exército Zapatista de Libertação Nacional), ocuparam vários povoados e aldeias, exigindo eleições livres e sem fraudes, e diversas reformas econômico-sociais. Causaram um grande furor na imprensa, que então tinha declarado apoio integral a Salinas. Depois dos choques com o Exército mexicano e da morte de dezenas de civis, houve uma trégua entre os revoltosos e o governo. Mas a calma durou pouco: o candidato do PRI, Luiz Donaldo Colossio, foi assassinado durante um comício e os mandantes eram altas personalidades do PRI, segundo alguns ligadas ao narcotráfico.

Este quadro sombrio raramente aparecia na imprensa internacional: só havia lugar para elogiar Salinas. Seis anos depois, em 1994, o projeto salinista acabou da mesma forma como começou: como uma fraude, uma grande fraude. A estabilidade econômica não passava de um castelo de cartas que, na primeira lufada um pouco forte, ruiu. Tudo tinha sido obtido graças aos bilhões de dólares investidos ou emprestados pelos Estados Unidos.

Se Enrique Semo estiver certo, assim como a Revolução Francesa não ficou restrita ao seu território, a falência do modelo neoliberal mexicano também deverá atingir outros países do nosso continente. Na Argentina ocorreram alguns sobressaltos e o Plano Cavallo demonstrou sua fragilidade. Resta saber o que ocorrerá no Brasil, que tem uma economia muito mais dinâmica que a mexicana – o nosso PIB é quase três vezes maior que o do México –, mas onde o Estado não tem o controle da sociedade civil e muito menos um partido nos moldes do PRI. Um pânico financeiro no Brasil teria uma repercussão tão grande que deixaria os últimos acontecimentos mexicanos parecendo uma inocente brincadeira do Chaves ou do Chapolin.

* Professor de História da Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros livros, de A Revolução Mexicana (Ática, 1993).

EDIÇÃO 36, FEV/MAR/ABR, 1995, PÁGINAS 10, 11, 12, 13