Propriedade intelectual no GATT traz implicações para o Brasil
A Câmara dos Deputados tentou votar os acordos da Rodada Uruguai do GATT no final do primeiro semestre de 1994, sem qualquer discussão, a partir de um texto incompleto que lá chegou em 29 de junho sem o conhecimento de qualquer deputado. O protesto da liderança do PCdoB ganhou alguns apoios e a votação foi impedida. Na continuidade, a bancada comunista organizou um seminário sobre a RU do GATT, que terminou tendo um caráter oficial e uma participação significativa, exceto quanto ao número pequeno de parlamentares. Para subsidiar esse seminário, pedimos ao assessor do Senado Cícero Gontijo uma contribuição, que resultou neste artigo. Refere-se ao intitulado “Acordo sobre os direitos da propriedade intelectual relacionados com o comércio”, o TRIPS, do GATT.
A Rodada Uruguai do GATT foi o passo mais significativo dado até hoje para a estruturação comercial da chamada nova ordem mundial. Foi referida como a “Constituinte global”. Diferentemente das sete rodadas anteriores, esta, que durou oito anos, introduziu na pauta das regulações os denominados “novos temas”, os serviços, os investimentos e a propriedade intelectual.
As discussões encaminhadas a partir da iniciativa do PCdoB na Câmara, e que contaram com a participação de estudiosos, técnicos e representantes de entidades civis, acentuaram os graves riscos que correria o Brasil ao acatar os acordos propostos. Mostraram uma contradição basilar da Rodada Uruguai: todos os acordos relativos ao comércio de produtos industriais e agrícolas seguiam uma linha liberalizante, em que as tarifas e as barreiras não-tarifárias foram reduzidas e os fluxos comerciais incentivados; o acordo sobre a Propriedade Intelectual seguia linha oposta, de enrijecimento das normas e de restrição da troca de conhecimento, praticamente monopolizado pelas grandes potências.
À proporção que a representação do PCdoB na Câmara forçava a discussão dos acordos do GATT, o Itamarati, através de seu ministro Celso Amorim, passou a envolver-se pessoalmente na questão, apresentando-se, por um lado, disponível para prestar esclarecimento e, por outro, intransigente na defesa da urgência da votação e do não apoio a nenhuma emenda. A bancada do PCdoB votou contra o regime de urgência pedido pela votação. Mostrou que, com base nas resoluções do GATT, isso não impediria a incorporação do Brasil à Organização Mundial do Comércio. E apresentou uma emenda que, em três aspectos fundamentais, nos quais a Ata era deliberadamente ambígua, explicitava o entendimento brasileiro com base na legislação vigente. O regime de urgência passou e a Ata foi aprovada sem qualquer emenda. No Senado, com o apoio de Antônio Mariz, foi feita outra tentativa de aprovação da mesma emenda de três itens, com o mesmo resultado negativo.
Em declaração de voto na Câmara dos Deputados, a bancada do PCdoB disse que não parecia correto lutar para impedir a participação do Brasil em uma organização mundial de comércio da qual participariam 124 países mais importantes do mundo. Mas que protestava contra aquela aprovação incondicional e sem ressalvas da Ata Final, atentatória ao futuro soberano da nação. Concluiu dizendo que, na sua opinião, “a soberania não é contraditória, mas condição preliminar de um verdadeiro desenvolvimento econômico, político e social do país”.
Haroldo Lima Nas últimas três décadas, o comércio mundial assistiu ao aumento crescente da participação de produtos com alto grau de tecnologia e ao desenvolvimento de novas formas de processos produtivos. Bens como computadores, semicondutores, programas de computador, biotecnologias e fármacos já representam, no comércio internacional, o equivalente a cerca de 5% do PNB norte-americano (Meherro Jussawala, The Economics of Intellectual Property in a World without Frontiers, a Study of Computer Software 4, 1992).
Daí se explica o esforço vitorioso que os Estados Unidos, principal exportador desses produtos, vêm dedicando para impor aos demais países regras rígidas de proteção à propriedade intelectual. Numa economia crescentemente globalizada, a proteção à propriedade intelectual assumirá um papel cada vez mais vital para as nações industrializadas, que começam a passar de indústrias tradicionais para indústrias baseadas em conhecimento e pesquisa intensivas.
Nos anos 1980, a insatisfação dos Estados Unidos com o que consideram proteção inadequada à propriedade intelectual manifestou-se através de ações previstas na seção 337 da Lei de Tarifas de 1930, e nas mal afamadas Super 301 e 301 Especial, previstas na Lei de Comércio de 1974, pelas quais as medidas unilaterais de restrição de mercado são aplicadas para forçar países a negociar e a mudar sua legislação.
“A inclusão de acordo sobre a propriedade intelectual na “Rodada Uruguai” foi polêmica”.
Desde março de 1980, quando se reuniram em Genebra os chanceleres dos países ligados à OMPI, a fim de deliberar sobre as propostas de um novo texto para a Convenção de Paris – que flexibilizava alguns de seus princípios básicos em favor dos países em desenvolvimento, os países industrializados, além de bloquear a iniciativa – tentaram transferir para o GATT (General Agreement Tarifs and Trade – Acordo Geral de Tarifas e Comércio) as discussões que reforçam os mecanismos de proteção à propriedade intelectual. Já no final da Rodada de Tóquio, em 1979, fora apresentada a primeira proposta que visava a levar para o GATT os assuntos de propriedade intelectual, sem grande sucesso.
Na Rodada Uruguai do GATT, iniciada em 1986, a proposta de inclusão de um acordo sobre propriedade intelectual foi objeto de intensa controvérsia, e vários países ainda afirmam que ela excede os limites de mandato concedido ao GATT.
Houve resistência por parte de vários países, e sua inclusão na agenda anunciada da declaração de ministros de Punta del Este, em 1986, só foi efetivamente consolidada em 1989, após obtenção de concordância de vários países e, em particular da Índia, que insistia que a OMPI, e não o GATT, era o fórum adequado para a discussão de propriedade intelectual.
A proposta de acordo apresentada pela delegação norte-americana se estruturava em três pontos: a definição de regras-padrão mínimas, a introdução de mecanismos de aplicação para os países membros (procedimentos administrativos e judiciais) e a criação de um forte sistema internacional de solução de controvérsias. A União Européia acresceu à proposta discussões relativas a indicações geográficas e designações de origem. Complementando a proposta, as comunidades empresariais dos Estados Unidos, União Européia e Japão submeteram sugestões aos negociadores, entre elas a eliminação do conceito de obrigatoriedade de produção local como dever do titular da patente.
Propunham admitir-se a importação do produto como substituto e equivalente à produção local.
O texto final do TRIPS, aprovado em Marrakesch em 15-04-1994, manteve toda a substância da proposta dos países industrializados e foi dividido em três partes principais: 1) do artigo 9º ao 40 estão as regras-padrão relativas a existência, abrangência e exercício de direitos de propriedade intelectual; 2) do artigo 41 ao 61, regula-se a aplicação de normas (procedimentos administrativos e judiciais), extensiva a todos os países membros; 3) nos artigos 63 e 64, trata-se da prevenção e solução de controvérsias, cuja regulamentação detalhada acha-se nos artigos XXII e XXIII do GATT 1994.
Diferenças entre o TRIPS e a Convenção de Paris
Ao regular a Propriedade Intelectual com tamanha abrangência, o acordo TRIPS praticamente acaba com a Convenção de Paris, tornando-a um tratado auxiliar. Um dos mais antigos tratados em vigor no mundo (firmado em 1883), a Convenção de Paris, retirou o seu vigor e longevidade de uma receita simples: consagrou como regras básicas dois princípios – o tratamento nacional, em razão do qual nenhum país-membro pode dar aos naturais de outros países-membros tratamento diverso daquele que concede aos seus nacionais, e a garantia de prioridade, que concede aos titulares de direitos de propriedade intelectual um prazo de 12 meses para solicitar em outros países o mesmo direito já requerido em um dos países-membros da Convenção.
Fora daí, a Convenção de Paris deixa aos Estados-membros uma grande latitude para legislar, adequando os conceitos de propriedade intelectual aos seus interesses nacionais, ampliando-os ou restringindo-os segundo seus objetivos, permitindo aos Estados-membros usar a proteção à propriedade intelectual como instrumento de política econômica e tecnológica, com o objetivo de alcançar seu desenvolvimento e bem-estar da população.
Já o acordo GATT/TRIPS é um tratado extensivo, detalhado e sem flexibilidade, que atua como uma espécie de lei-tipo a que todos os países são obrigados a obedecer. No que se refere aos pontos substanciais, o GATT determina: a) prazo mínimo para proteção de patentes (20 anos) e marcas (10 anos), contado a partir do depósito (art. 33); b) listagem extensiva dos direitos dos titulares, com menção dos direitos em relação a terceiros (art. 28); c) obrigatoriedade de as licenças compulsórias serem não exclusivas (art. 31); d) transferência de ônus da prova para o acusado nas ações por contrafação referentes a patentes de processo (art. 34); e) obrigação de serem patenteadas todas as invenções, de produtos ou processos, em todos os setores (art. 27-1); f) ao permitir restrições ao patenteamento de seres vivos, obriga ao patenteamento de microorganismos (art. 27); g) impede que os Estados-membros exijam dos titulares da patente a obrigação de produção local, ao considerar as importações suficientes ao atendimento da exploração efetiva (art. 27-1); h) definição da extensão dos direitos das patentes de produto e de processo, ampliando a proteção do processo até o produto a que ele dá origem (art. 28).
Todas essas exigências não encontraram paralelo na Convenção de Paris e vêm num texto cujo artigo 72 estabelece que não poderão ser feitas reservas com relação a qualquer de suas disposições sem o consentimento dos demais membros.
Além das disposições substantivas acima listadas, os artigos 41 e 61 compõem uma sólida e bem construída cadeia de procedimentos administrativos e judiciais, aos quais os Estados-membros aderem e que tornam padronizado o processo nas ações por contratação nos diversos países, criando verdadeira legislação processual especial. O argumento utilizado para justificá-la era de que as novas normas necessitam de procedimentos padronizados para serem efetivamente cumpridas.
Completa a estrutura do acordo o sistema de solução de controvérsias a que se submetem os Estados-membros.
Implicações do acordo para o Brasil
As razões filosóficas que levam um grupo de países a propor e a insistir que outros países absorvam a aceitem tais regras aparentam ter por base o próprio direito natural, que assegura ao titular de direitos de propriedade intelectual direitos equivalentes aos de propriedade material. Do ponto de vista econômico, é razoável admitir que os autores de invenção merecem ser remunerados por seu arrojo e por seu esforço, o que lhes serve de estímulo para reinvestirem no desenvolvimento de novas técnicas e novos produtos. Alguns autores afirmam que as distorções provocadas por falta de proteção à propriedade intelectual constituem uma verdadeira barreira não tarifária àqueles que investiram no desenvolvimento de novos produtos.
Esses argumentos, entretanto, só analisam o ângulo dos produtores de invenções das empresas que comercializam produtos novos no mercado mundial. A situação dos países em desenvolvimento – seu esforço ingente para galgar degraus no aperfeiçoamento tecnológico e aumentar sua participação no comércio mundial – não é levada em consideração. A tão falada globalização da economia não tem propiciado aumento de bem-estar nos países menos desenvolvidos.
A proteção da propriedade intelectual, nos termos rígidos propostos pelo TRIPS, condena os países em desenvolvimento a um atraso tecnológico de no mínimo vinte anos, prazo de duração das patentes, ampliável na medida em que surgem outras inovações tecnológicas sobre o mesmo assunto protegidas por patentes. Ainda que isso possa interessar a umas poucas empresas nacionais, o reforço da proteção à propriedade intelectual como proposto no TRIP se encaminha contra os interesses econômicos dos países em desenvolvimento.
“Bush recusou-se a assinar o acordo de biodiversidade para proteger empresas multinacionais”.
Trata-se de um esforço para congelar as relações de poder econômico, mantendo os países avançados em situação privilegiada e os países atrasados condenados à estagnação.
É forçoso lembrar que o acordo TRIPS surge em total contradição com os demais acordos firmados no âmbito do GATT. Enquanto os demais se apresentam no sentido de liberação de barreiras, derrubada de monopólios e sistemas de subsídios, bem na linha liberalizante do comércio advogada pelos países industrializados, o acordo TRIPS aparece como esforço de enrijecimento de normas, imposição de padronização e consagração de monopólio, que incide justamente sobre o mais valioso dos agentes econômicos desse fim de milênio: o conhecimento humano. Abrem-se os mercados mas, por outro lado, consolida-se e fortalece-se o sistema existente de produção de novas tecnologias, concentrando-se não por coincidência nos países que exigem maior proteção para os titulares da propriedade intelectual.
O New York Times de 12 de abril de 1993 revela: “O Tratado de Biodiversidade permitiria exigir das empresas que compartilhassem suas pesquisas com os países em desenvolvimento. Por esta razão, o presidente Bush recusou-se a assiná-lo. O presidente Clinton, entretanto, afirmou que assinaria o Tratado se uma declaração interpretativa que protegesse os direitos de patentes fosse aceita e anexada”. Os Estados Unidos assinaram o Tratado em julho em 1993, anexando-lhe uma declaração interpretativa.
É claro que essas contradições não fugiram aos olhos argutos e competentes dos negociadores brasileiros envolvidos no Tratado GATT 1994. Durante muito tempo a delegação brasileira esteve ao lado de outros países e, desenvolvimento, manifestando-se contra a inclusão da Propriedade Intelectual no âmbito do GATT e contra a aprovação do TRIPS, conforme menciona Michael Doane em “Trips and International Intellectual Property Protection in an Age of Advancing Technology”, publicado no American University Journal of International law and Policy, 9 (2), p. 493.
Nota-se, também, total falta de entusiasmo pelo TRIPS na Exposição dos Motivos enviada pelo Executivo ao Congresso, na qual a referência ao acordo se limita a seis linhas, sem qualquer avaliação quanto aos benefícios ou prejuízos que dele poderiam advir para o Brasil (Mensagem n. 498, 1994, p. 4).
Analistas estrangeiros ressaltaram que a forma com que foi apresentada e negociada a proposta do TRIPS era uma demonstração do reconhecimento de que se tratava de um mau texto para os países em desenvolvimento: “Com o objetivo de fazer avançar as negociações em todas as áreas cobertas pela Rodada Uruguai, o diretor-geral do GATT apresentou o Texto Dunkel como uma declaração integral da situação das negociações. O diretor-geral apresentou esse documento como um acordo do tipo tudo ou nada, determinado a impedir que os membros dividissem as várias seções para adotá-las separadamente. Esta exigência comprovou-se útil para a obtenção do acordo TRIPS, pois os Estados Unidos e outros países industrializados podiam combinar concessões desejadas pelos países em desenvolvimento em áreas como agricultura e têxteis, para a obtenção de um adequado acordo TRIP” (Michael Doane, da Georgetown University Law Center, em “Trips and International Intellectual Property Protection in Age of Advancing Technology”, American University Journal of International Law and Policy. 9 [2], p.476).
Restaria crer que o Brasil e os demais países em desenvolvimento teriam cedido no acordo TRIPS em troca de ganhos importantes nos demais acordos do GATT, em particular nos da agricultura e dos têxteis, embora não pareça conveniente trocar o estratégico acesso ao conhecimento tecnológico que tem reflexos no futuro do país, por eventuais ganhos em participação nos mercados agrícola e têxtil.
Lamentavelmente, mesmo essa conclusão é negada, ao menos quanto ao Brasil, no documento Avaliação das implicações para o Brasil da conclusão da Rodada Uruguai, preparado pelo Ministério das Relações Exteriores. No que se refere à agricultura, afirma: “Pode-se dizer que os resultados da negociação agrícola foram mais modestos do que se desejava ou mais ou mesmo do que se poderia esperar” (p. 11). E, no que se refere aos interesses brasileiros: “Se do ponto de vista dos produtos industriais o benefício para o país é patente, no campo dos produtos agrícolas o quadro é menos claro. Paira sobre todo o acordo a nuvem da incerteza de sua aplicação, seja pelo casuísmo das interpretações possíveis das regras, seja pela ambiguidade de certos dispositivos de redução de subsídios” (p. 27).
Já no que diz respeito aos têxteis: “O desafio da Rodada Uruguai era o de assegurar um programa de liberalização capaz de integrar a indústria têxtil no GATT. Malgrado à pressão forte da Comunidade Européia e de muitos países exportadores, os Estados Unidos terminariam por obter a preservação por um período adicional de dez anos do Acordo Multifibras, que será desativado em quatro etapas” (p. 13).
Restava lembrar que o acordo do GATT tem a vantagem de transferir os conflitos comerciais para o âmbito plurilateral da Organização Mundial do Comércio, livrando-nos, espera-se, da aplicação unilateral de retaliações através de medidas como a Super 301 e a 301 Especial. A avaliação desse benefício deveria ser bem pesada em confronto com as restrições ao acesso a novas tecnologias a que nos condena o acordo TRIPS, com reflexos sobre as próximas gerações.
* Assessor legislativo do Senado Federal. Participou como representante do governo brasileiro do processo de revisão da Convenção de Paris, coordenado pela OMPI. É bacharel em Direito e doutor em Economia do Desenvolvimento pela Universidade de Paris.
EDIÇÃO 36, FEV/MAR/ABR, 1995, PÁGINAS 33, 34, 35, 36