O primeiro aspecto que hoje chama a atenção é a inépcia política do governo Fernando Henrique Cardoso nesses seus primeiros três meses de vida. Ela tem raízes, antes de mais nada, na própria gênese desse governo, formado a partir de uma frente anti-Lula, que congregou interesses diversos, muitas vezes conflitantes entre si e de difícil administração. Esse ajuntamento ainda não encontrou seu modus operandi, na forma de um acerto mais ou menos estável em termos de divisão de cargos, competências, benesses e responsabilidades. Novas dificuldades haverá, mas não creio que devamos valorizar demais esse aspecto. Em médio prazo, por pragmatismo, eles se acertarão, provavelmente com maior participação efetiva do PFL, onde estão os melhores profissionais do poder.

Mas as dificuldades políticas do governo não se resumem a isso. Há outro fator, em que nós também esbarraríamos se Lula tivesse sido eleito: o altíssimo grau de desagregação, já estrutural, do Estado brasileiro. Nos últimos anos, esse Estado foi muito enfraquecido, perdeu competência, perdeu capacidade de agir. Vive imerso numa semiparalisia, sem pessoal, sem informação confiável, sem memória, sem capacidade de planejar e implementar políticas, gerenciando até a exaustão conflitos institucionais, que se multiplicam. Sem revolucionar as formas de administrar, sem refundar instituições, sem despertar novas energias, sem criar outra mentalidade, sem rever um pacto federativo degradado, qualquer um teria dificuldades para fazer essa máquina se mover em qualquer direção.

Esse é o primeiro aspecto relevante da conjuntura atual: a dificuldade de o novo governo – seja por sua composição política, seja pela situação da máquina pública – atingir uma velocidade de cruzeiro que lhe permita governar, impondo perdas aqui, garantindo ganhos ali, em nome de um projeto maior. Essa dificuldade vem sendo agravada pelo segundo aspecto que considero central da situação atual, que são os descaminhos do Plano Real. A grande frente conservadora tinha, digamos assim, uma face negativa, anti-Lula, mas tinha também uma outra face, positiva, que era a aplicação de um plano de estabilização bem-sucedido nos seus primeiros meses. O que marca a situação atual – estamos no início de abril de 1995 – são as dificuldades, que não podem mais ser escondidas, e que colocam em xeque a própria viabilidade do Plano Real.

Não quero discutir se o plano é bom ou não, mas apenas sua coerência interna, nos termos propostos por seus formuladores. Até aqui, essa coerência existiu. Houve uma primeira fase, quando Fernando Henrique ainda era ministro da Economia, e que foi marcada por três iniciativas básicas: a) um ajuste fiscal provisório através do Fundo Social de Emergência; b) uma política de acumulação rápida de reservas externas, que aliás contribuiu fortemente para a aceleração da inflação (pois, de alguma maneira, essa acumulação precisa ser financiada pelo Estado); c) finalmente, a proposta de um mecanismo de realinhamento de preços, a URV, que induziu a uma certa coordenação nos reajustes então praticados. Paradoxalmente, essa coordenação foi facilitada pela própria aceleração da inflação, que encurta os prazos em que os reajustes são feitos e torna menores as defasagens relativas em cada momento. A combinação desses três aspectos caracterizou a primeira fase do Plano Real e preparou as condições para a segunda fase, detonada com a reforma monetária do início de julho de 1994.

Depois que os preços, em geral, se referenciaram num único indexador, acompanhando o movimento deste, a inflação foi derrubada de um golpe pela transformação do próprio indexador em moeda. Afinal, dentro de um mesmo elevador, todos estão parados, uns em relação aos outros. Mas, passado o efeito do truque, como fazer para que a inflação não recomeçasse a crescer novamente? Para isso, usaram um alto grau de controle sobre a liberação de recursos do Estado (papel do Fundo Social de Emergência) e as reservas externas, acumuladas em níveis inéditos. Estas permitiram adotar a chamada âncora cambial e sustentaram o aprofundamento do processo de abertura comercial da economia brasileira.

Qual é a idéia da âncora cambial? O câmbio é um preço muito importante, pois é um preço formador de outros preços. Há outros preços assim, que estão na base do processo de formação e transmissão de preços para toda a economia. Se você consegue segurar um desses preços fundamentais, ou alguns deles, ele passa a funcionar como uma âncora, quase no sentido literal da palavra: segura a oscilação do navio, impedindo-o de derivar, fixando-o num determinado ponto. Por outro lado, a abertura comercial, que expõe a economia brasileira à concorrência internacional, dificultaria o processo de reajustes internos.

Como se vê, houve coerência entre as fases um e dois do Plano, seja na transformação da URV em real, rebaixando fortemente o patamar da inflação; seja no manejo casuístico do gasto público, propiciado pelo Fundo Social de Emergência; seja no uso das reservas acumuladas, para impedir que o vetor de crescimento da inflação se recompusesse com rapidez. Isso explica a trégua, não por acaso em um momento de eleições. Pode-se dizer que o controle da inflação foi a única variável relevante levada em conta pela política econômica nesse período, de modo que todas as demais variáveis – como, por exemplo, a taxa de câmbio – tiveram que se adaptar a ela. É uma opção que funciona, mas acumula tensões. Uma delas: a queda no saldo comercial com o exterior, por causa da brusca redução das tarifas e da valorização real frente ao dólar, que encarece as exportações e barateira as importações. Para que o balanço de pagamentos do Brasil com o exterior não estourasse, essa queda no saldo comercial precisaria ser coberta pela entrada maciça de capitais externos, como esperava o governo. O superávit na conta de capital compensaria o déficit na balança comercial, mantendo sem dificuldade que tudo isso resultaria num aumento de nossa vulnerabilidade externa, não se pode negar que era um projeto.

Os próprios formuladores desse projeto advertiam que sua solidez dependeria da passagem para uma nova e terceira fase, que seria marcada por um ajuste fiscal duradouro – e não mais aquele ajuste provisório feito em 1994 – e pela consolidação de um novo padrão de financiamento para a economia brasileira, com compressão dos gastos do Estado e fartura de capitais estrangeiros. Isso consolidaria o Plano e abriria um novo período de funcionamento da economia brasileira, sem abrir brecha para uma nova escalada da inflação.

“O BC parou de divulgar o nível das reservas, estimado em US$ 30 bilhões. O país perdeu 25% em poucos meses”.

Acho que hoje se pode dizer que o Plano Real foi bem-sucedido na sua primeira fase, transitou bem para segunda, manteve sucesso nessa segunda fase –, mas capotou e está deixando de existir como um plano coerentemente articulado por não conseguir realizar, em tempo hábil, a transição para a terceira fase. As tensões não podem se acumular para sempre. E são várias. Vejamos uma. A deterioração das contas externas brasileiras foi muito mais rápida do que todos prevíamos, abrindo uma situação de crise cambial latente, que se torna, a partir de agora, a preocupação central da política econômica. O Banco Central parou de divulgar o nível das reservas, que deve andar pelos US$ 28 bilhões ou US$ 30 bilhões. Isso significa que perdemos 25% das nossas reservas em poucos meses.

Pelo menos 30% do que resta são de capital especulativo, que pode ir embora, e de fato está indo, escaldado com a quebra do México e atraído pela alta dos juros nos Estados Unidos. Há um grande déficit previsto na conta de serviços, da ordem de US$ 15 bilhões a US$ 17 bilhões. Formou-se, portanto, um horizonte de crise cambial, que nos ameaça ainda este ano. Coisa séria. A âncora cambial está ferida de morte, e a abertura já teve que retroceder. Além disso, o governo não deu nenhum passo para o propalado ajuste fiscal duradouro. Não há transição em curso para a nova fase do Plano Real.

O que o governo sinaliza? Confusão. Vejamos as declarações mais recentes das mais altas autoridades. Fernando Henrique Cardoso diz que o produto interno brasileiro crescerá 8% este ano; Pedro Malan diz que a banda cambial ficará com o máximo de 0,93 durante longo tempo; Pérsio Arida diz que as taxas de juros vão cair. São afirmações desconexas entre si. Se a economia crescer 8%, a taxa de câmbio não pode ficar em 0,93, sob pena de explodir de vez o balanço de pagamentos em questão de alguns meses. Se, por sua vez, o câmbio for reajustado – como o será –, os juros não podem cair, sob pena de produzirem uma debandada rapidíssima do capital especulativo. O governo não parece saber aonde ir, e a coerência sistêmica de suas ações está comprometida. Nesse contexto, a imaginação conservadora pede asilo na receita em que se sente mais segura: desaquece a economia, provoca recessão, tenta arrochar os salários e eleva os juros. Isso é contraditório com o objetivo de obter equilíbrio fiscal, pois as dívidas interna e externa são o grande componente desestabilizador das finanças públicas. Recessão e juros altos produzem dificuldades fiscais crescentes, e eis de volta o velho cobertor curto, a gerência de curto prazo, que apenas apaga incêndios, se tanto.

“A direita diz que a crise decorre de uma crise de financiamento e da perda da competitividade externa”.

Não quero passar uma impressão de derrocada em curto prazo, ninguém vai sair daqui chutando o poste. Mas há dificuldades crescentes na política econômica, com previsível perda de apoio popular ao governo e com a desconstrução do Plano Real como uma alternativa duradoura. Parece que voltaremos a um velho padrão: juros altos, recessão e arrocho, roteiro que já conhecemos. Para usar um termo dos matemáticos, este parece ser o atrator dos economistas conservadores. O mundo gira, a Lusitana roda, e eles acabam ali, exatamente onde estavam nos anos 1980 e antes do Plano Real.

Até aqui, como vimos, o controle da inflação era a variável fundamental, à qual todas as demais variáveis deveriam ajustar-se. A partir de agora, a variável fundamental passa a ser a gerência da crise que está se armando no balanço de pagamentos. A inflação passa a ser uma variável de ajuste, que gravita em torno de outra. Eis a mudança. Como o aspecto antiinflacionário era a grande marca e a razão de existir do Plano Real, pode-se dizer que ele começa a se desfazer. As bases do Plano, tal como ele foi pensado por seus autores, estão comprometidas. Com um agravante: como já ficou completamente claro nos últimos anos, juros altos, recessão e arrocho não necessariamente seguram a inflação no Brasil.

A inflação está retomando uma curva ascendente, que só não é mais nítida porque há preços importantes – como as tarifas públicas e os combustíveis – ainda congelados. Daqui a pouco eles vão ter que ser atualizados, e o câmbio também. Poderemos chegar, em poucos meses, a um patamar de inflação anualizada de 50% a 60%, e a experiência mostra como é difícil estabilizar uma inflação nesse nível. Ela se torna volátil, generaliza a reindexação, favorece projeções pessimistas, induz comportamentos defensivos por parte das empresas – e tudo isso resulta em mais inflação.

O governo Fernando Henrique corre o risco de vir a ser o governo de Itararé, da famosa batalha que não houve. É claro que eles vão tentar evitar isso, e o meio mais eficaz talvez seja o de acelerar o processo de privatizações, para exibir bem alto uma bandeira ideológica que lhes é cara, propiciar bons negócios aos seus aliados e conseguir um equilíbrio temporário de caixa, queimando ativos do Estado.

Muitos têm apontado erros de gerência do Plano. Tais erros, certamente, existiram – a sobrevalorização cambial foi maluca –, mas acho que existe também algo mais. O Plano Real pertence a uma família de planos, ou de formas de conduzir a política econômica no Brasil, que decorre de uma matriz inadequada de compreender nossa crise. Além de problemas de gerência, ele tem problemas mais fundos, de concepção. Que problemas são esses?

A interpretação hegemônica da crise brasileira, proposta pela direita, se baseia em dois grandes fundamentos. O primeiro é o de que nossa economia vive uma crise de financiamento. Não conseguimos financiar a retomada do crescimento, e isso, por sua vez, se dá por dois motivos. O primeiro é o déficit público. Um Estado deficitário suga recursos da sociedade – justamente aqueles recursos que ela usaria para investir – e os utiliza, em larga medida, de modo improdutivo, pagando salários do funcionalismo, ou gastando em ações sem retorno econômico. Assim, o déficit público provoca e prolonga a crise de financiamento, com o Estado sendo responsável por uma má alocação dos recursos da sociedade. Isso é tão mais grave quando se considera que o setor privado brasileiro é essencialmente saudável, pois está potencialmente capitalizado e, portanto, capacitado a investir. O segundo aspecto dessa mesma crise de financiamento, ainda conforme o pensamento dominante, é a perda da nossa capacidade de atrair investimentos externos. Na nossa fase de crescimento, fomos durante décadas um país importador de capital, mas nos anos 1980 perdemos essa capacidade de atração.

O outro fundamento da crise brasileira, segundo essa interpretação, é a perda de nossa competitividade internacional. Tendo mantido nossa economia fechada por muito tempo, protegemos demais nossas empresas da competição, e o resultado foi uma defasagem tecnológica em relação ao resto do mundo. Protegemos a ineficiência, pagamos com inflação.

“Essa interpretação da crise impõe a agenda neoliberal que os sucessivos governos vêm adotando”.

Essa interpretação da crise brasileira é quase consensual no pensamento conservador, amplamente hegemônica na sociedade e aceita tacitamente por setores da esquerda. É a “música” que ouvimos quase todos os dias, tendo acostumado nossos ouvidos com ela. Os números que a sustentam são produzidos e divulgados aos montes. Como é óbvio, dela deriva uma agenda para o país, agenda que sucessivos governos vêm perseguindo nos últimos anos: atacar o déficit público para que o Estado não exproprie mais recursos que a sociedade usaria para investir; conter os gastos com custeio e investimento e privatizar as empresas estatais, para cortar a emissão de moeda e diminuir o montante da dívida; adotar um bom comportamento diante do sistema financeiro internacional, para que nos candidatemos a receber novos recursos no exterior; abrir a economia brasileira, para submetê-la a um choque de modernização tecnológica. E assim por diante. O Plano Real e seus complementos são uma versão renovada dessa velha agenda.

Creio que aí está, sinteticamente, a lógica do programa liberal, no que ela tem de melhor. Considerando que ele é amplamente dominante no cenário público e intelectual do Brasil, acho que temos duas perguntas fundamentais a nos fazer, com sobriedade, seriedade e coragem. A primeira: nós aceitamos ou não esse diagnóstico básico da crise brasileira? Se o aceitarmos, seremos inevitavelmente levados a operar na margem da agenda que dele decorre, tentando talvez evitar os exageros dos liberais mais malvados; grande parte das nossas dificuldades de formulação de políticas estará resolvida, pois estaremos trabalhando num terreno bem fundamentado pelo pensamento dominante. Petistas ilustres se movem assim, e gostariam que todo o partido o fizesse. É moderno, é chique, é fácil, é o próprio senso comum. Encontra segura guarita na imprensa.

“Como toda construção lógica eficaz, o diagnóstico básico hoje dominante guarda alguma aderência ao real”.

Se, por outro lado, não aceitamos aquele diagnóstico de fundo, então temos que explicar claramente por quê. E temos a obrigação de propor um outro, igualmente abrangente, retirando dele outra agenda política para a nação. Caso contrário, ficaremos resmungando pelos cantos, defendendo interesses corporativos e setoriais, sendo triturados na grande luta ideológica, incapazes de falar com grandeza à nação e disputar a hegemonia.

Penso que devemos rejeitar o diagnóstico básico hoje dominante, e não operar na sua margem. É claro que ele não é completamente mentiroso, inteiramente delirante. Como qualquer construção ideológica eficaz, guarda alguma aderência ao real. Mas traduz o interesse de poucos e é inadequado para dar conta da crise brasileira. Vou evitar uma última argumentação mais sofisticada, que exigiria uma discussão sobre o sentido do desenvolvimento brasileiro, tal como se desenhou neste século, e a dinâmica específica desse desenvolvimento, amplamente ignorados por esse senso comum. Vou aceitar uma discussão nos próprios termos em que os liberais a colocam.

Primeiro: é um mito denunciar o Estado brasileiro como um tomador de recursos do setor privado. Na construção do Brasil moderno, nosso país se constituiu historicamente como um financiador desse setor, e continua a sê-lo, sendo que, agora, da pior forma possível. Excetuando-se momentos fugazes, não representativos da situação estatal, o déficit público brasileiro é de natureza exclusivamente financeira. Não há déficit operacional significativo ou recorrente do Estado. Isso não quer dizer que tenhamos um bom Estado, até porque nós sabemos que esse equilíbrio operacional se dá graças a uma péssima prestação de serviços essenciais (o Estado deveria, na verdade, gastar mais, obviamente gastando melhor). Mas não é de uma análise qualitativa que se trata aqui.

Do ponto de vista econômico mais imediato – leia-se, inflação – simplesmente não é verdade que o governo brasileiro gasta mais em custeio e investimento do que arrecada em impostos, tendo assim que se financiar através da emissão de moeda ou de mecanismos extraordinários que oneram o setor privado. A própria carga fiscal efetiva é muito baixa no Brasil. E a divida interna não é rolada, a custos crescentes, para financiar gastos do Estado, mas para perpetuar mecanismos de acumulação financeira sem os quais o setor privado brasileiro logo se veria em maus lençóis. O inferno do endividamento do Estado brasileiro – que tem origem na estatização da dívida externa privada, no financiamento do esforço exportador e da acumulação de reservas, além da própria ciranda financeira – tem sido um mecanismo fundamental de sustentação da rentabilidade do capital privado, como o mostram os balanços de todas as empresas. Enquanto essa ciranda não for desmanchada não haverá equilíbrio das contas públicas. Não adianta arrochar ainda mais o funcionalismo, cortar a merenda escolar e tirar mais esparadrapos dos hospitais. Não adianta vender estatais. Uma variação de centésimos nas taxas de juros come, com sobras, qualquer economia feita aí, disso resultando um Estado sempre mais frágil. O nosso sistema financeiro se ajustou a essa situação, perpetuando-a e tornando-se completamente disfuncional do ponto de vista do financiamento da economia brasileira. Mas uma reforma do sistema financeiro, como se sabe, não integra a agenda liberal, que joga sobre o Estado todo o peso do ajuste, tornando-o assim impossível.

“O mérito do nosso setor privado é ter realizado com êxito um ajuste defensivo e oportunista”.

Segundo: é um mito a idéia de que o setor privado brasileiro é essencialmente saudável e está preparado para liderar sozinho uma retomada sustentada de crescimento. As taxas de investimento têm sido sistematicamente baixas e/ou declinantes nos últimos quinze anos, a sonegação fiscal é enorme, os salários são baixos, o investimento em ciência e tecnologia é ridículo, não há planejamento de médio e longo prazos, a organização institucional e societária é atrasada, as redes de cooperação interfirmas são incipientes, as escalas de produção são pequenas, o controle oligopólico de mercados é a regra e os lucros financeiros e inflacionários são decisivos nesse precário equilíbrio. Todas essas características mostram como o nosso setor privado é atrasado. Seu mérito – se há mérito nisso – é ter realizado com êxito um ajuste defensivo e oportunista, que o preservou de uma derrocada do tipo argentino, mas que não o tornou nenhuma maravilha, raciocinando-se do ponto de vista do capitalismo contemporâneo. A discussão de uma retomada sustentada do desenvolvimento, mesmo em bases capitalistas, tem que apontar seriamente tais disfunções.

Terceiro: é um mito que o desenvolvimento brasileiro dependa da atração do capital estrangeiro. Creio mesmo que a equação é inversa: o capital estrangeiro não vai alavancar o nosso desenvolvimento, mas vai ser atraído quando esse desenvolvimento, com fortes bases endógenas, voltar a ocorrer, como aliás se deu no passado. Somos um grande país e uma grande economia. Grandes economias alavancam a si mesmas – ou elas fazem isso, ou ninguém o faz por elas –, e o capital estrangeiro desempenha um papel complementar. Mesmo durante a nossa industrialização, quando nossa economia era muito mais fraca, a formação de poupança sempre foi basicamente interna. Durante algum tempo, na fase substitutiva de importações, realizada sob fortíssimas restrições cambiais, o capital estrangeiro teve sua importância aumentada, não propriamente para formar poupança, mas para cobrir o hiato de divisas. Desde então, já éramos capazes de gerar poupança suficiente para financiar o nosso desenvolvimento, mas não conseguimos gerar as divisas que a aceleração desse desenvolvimento exigia. Precisávamos importar mais do que nossas exportações, baseados em poucos produtos agrícolas, conseguiam financiar. Essa situação foi estruturalmente alterada. Desde que a economia brasileira não fique entregue aos idiotas de Harvard, hoje somos capazes de financiar nossas importações com facilidade. Não há mais hiato estrutural de divisas no Brasil. Isso nos permite rediscutir com mais folga o papel do capital estrangeiro, sem hipotecar nele nossas esperanças futuras.

Fala-se muito em atrair esse capital, mas nada se diz sobre os custos dessa atração, tal como tem sido praticada pela elite brasileira. Nossa sociedade pagou um custo altíssimo para formar as reservas de US$ 40 bilhões anunciadas até recentemente, com tanto orgulho, pelo governo. O custo de taxas de juros indecentes, que como vimos destroem o equilíbrio financeiro do Estado. Nos últimos anos, a emissão de moedas e de títulos da dívida pública – com o impacto inflacionário que têm – nada, rigorosamente, nada, tem a ver com gastos efetivos do Estado. É totalmente explicada pela política de acumulação de reservas cambiais, com atração de capitais estrangeiros, numa espantosa correlação de quase 100%. Existe um alto custo associado a essa política suicida de atrair capitais vagabundos, simplesmente porque eles estão disponíveis lá fora. Basear neles nossas expectativas de desenvolvimento e equilíbrio das contas externas é insano.

Quarto: é um mito afirmar que a economia brasileira é – ou foi, até recentemente –fechada, precisando de um choque desordenado de abertura. Do ponto de vista tecnológico, somos tão abertos a ponto de não gerar tecnologia própria, importando quase toda ela; do ponto de vista financeiro, somos tão abertos que acumulamos uma dívida externa de US$ 147 bilhões; do ponto de vista produtivo, somos tão abertos que 35% da nossa indústria são formados por filiais de empresas estrangeiras, um índice possivelmente inigualado por qualquer outro grande pais. Sob todos os outros pontos de vista, somos na verdade vulneráveis, de tão abertos e dependentes. Grande parte das decisões vitais da nossa economia – em tecnologia, investimentos e estratégia de longo prazo – é tomada no exterior, segundo lógicas sobre as quais nossa influência é próxima de zero.

“Analisando a relação entre comércio exterior e PIB, o Brasil permaneceu mais aberto que os EUA!”

Resta observar o ponto de vista comercial. Tivemos, até recentemente, tarifas altas para muitos produtos, frequentemente atendendo a lobbies industriais, sem contrapartida para a sociedade como um todo. Mas só a mé fé ou a desinformação permitem usar isso para denunciar uma economia fechada. O comércio exterior brasileiro converge nas últimas décadas para um patamar em torno de 10% do PIB. Nos Estados Unidos, pária dos liberalismo, essa percentagem não atinge 9%. Portanto, considerando a relação entre comércio exterior e PIB, o Brasil permaneceu, em termos reais, mais aberto que os Estados Unidos, mesmo no auge do nosso “fechamento”! Simplesmente porque tarifas não determinam sozinhas o nível real da abertura de economia nenhuma. Ao contrário do que se tem dito, nossas altas tarifas não resultaram de nenhum nacionalismo xenófobo. Foram usados como instrumento de uma industrialização acelerada, realizada sob fortes constrangimentos cambiais. Essa industrialização, feita contra a opinião liberal, redesenhou no tempo o perfil da nossa abertura para o mundo, garantindo ganhos velozes para a produtividade do trabalho no Brasil. É bobagem dizer que disso resultou uma economia fechada. Que é preciso repensar esse sistema, isso é óbvio, mas deve ser feito no contexto de políticas industriais ativas, com objetivos nacionais bem definidos e não sob o fogo de um besteirol ideológico fortemente desestruturante do nosso sistema produtivo.

Quinto: é um mito que a economia brasileira se caracteriza por uma defasagem tecnológica que a impede de crescer. Essa defasagem só assume tais proporções se pensarmos nosso destino como o de uma plataforma de exportação. Se basearmos nosso crescimento na disputa, por exemplo, dos mercados mais dinâmicos de eletroeletrônicos dos países desenvolvidos, então estamos defasados. Mas se pensarmos que a tarefa fundamental da nossa economia é eliminar a pobreza no menor prazo possível, enfrentando a questão social, então não há um impasse de natureza tecnológica que nos impeça de nos mover resolutamente nessa direção. É óbvio que a economia brasileira precisa se modernizar e deve fazê-lo. Mas isso não é pré-condição do crescimento. Ao contrário deve ser feito no contexto de uma economia que cresce. Do ponto de vista sistêmico, a modernização tecnológica é tributária do investimento, e não o contrário. E o mais importante para nós é aquela que incide sobre a produtividade média do trabalho social, perfeitamente ao nosso alcance.

Deixem-me concluir. Partindo de uma análise de fundo inadequada, o pensamento liberal tem produzido uma sucessão de políticas econômicas incapazes de dar conta da verdadeira natureza da crise nacional, acabando sempre por retornar à velha gerência de curto prazo, com seus três aspectos recorrentes: recessão, arrocho salarial e juros altos. Além de perversa, desestruturante da nação, essa combinação tem sido incapaz de conter as sucessivas retomadas do processo inflacionário. A crise está sempre se recolocando, à espera de uma nova intervenção do governo, sempre de efeitos transitórios. Nesse compasso o país perde o rumo.

Creio que o Plano Real não configura uma alternativa estratégica de reorganização da economia brasileira. Acabará sendo mais um rearranjo conjuntural, que permitiu um controle temporário da inflação, à custa de aumentar mais níveis de vulnerabilidade internos e externos da nossa sociedade. O processo desenvolvimentista gestado nos anos 1930 e 1940 apontou um horizonte de longo prazo, deflagrando um processo dinâmico que durou cinquenta anos. Ao contrário dele, o projeto neoliberal não tem potencial estruturante para o Brasil. Essa ausência de projeto de longo prazo nos deixa prisioneiros de um círculo vicioso. Ou a sociedade brasileira constitui um conjunto de forças políticas e sociais capazes de propor uma outra matriz de entendimento da crise, que dê suporte a uma outra agenda nacional, ou o Brasil continuará na sua trajetória recente, que pode inviabilizá-lo como nação, produzindo situações imprevisíveis. Eis aí o nosso grande desafio.

* Membro do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores.
** Este texto é resultado de uma intervenção oral no seminário “O PT e os Movimentos Populares”, realizado em São Paulo no dia 7 de abril passado. O mesmo conteúdo foi exposto em outro seminário no final de março em Brasília, convocado pela bancada federal do Partido Comunista do Brasil.

EDIÇÃO 37, MAI/JUN/JUL, 1995, PÁGINAS 12, 13, 14, 15, 16, 17