Gênero, trabalho e sindicato
Em todo o mundo, e também no Brasil, o movimento de mulheres se prepara para a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, convocada pela ONU, a ser realizada em setembro deste ano, em Pequim. As conferências mundiais ocorridas na última década têm sido palco de acirradas batalhas entre o movimento autônomo, de um lado, e governos, de outro, em torno de questões fundamentais como direitos reprodutivos, ecologia, desenvolvimento, direitos humanos etc. O movimento de mulheres tem conseguido impor algumas de suas propostas aos governos e realizado eventos paralelos com grande repercussão na mídia.
Esta Conferência realiza-se num momento decisivo, em que as conquistas e os avanços das mulheres estão seriamente ameaçados pela nova ordem internacional. O novo modelo econômico internacional está relegando as questões sociais a um plano secundário. O impacto do aumento da pobreza e da violência tem sido especialmente significativo em um dos grupos mais vulneráveis, as mulheres. No Brasil estão sob séria ameaça direitos duramente conquistados e ratificados pela Constituição de 1988, como licença maternidade, aposentadoria por tempo de serviço etc.
Diante disso, é fundamental que as mulheres, especialmente as trabalhadoras, façam ouvir sua voz e suas reivindicações e imponham suas propostas. É fundamental que o movimento de mulheres combata frontalmente o projeto neoliberal, que exclui a parcela feminina da população. O documento, cujo resumo transcrevemos a seguir, aprovado no I Encontro Nacional Mulher e Trabalho, promovido pela União Brasileira de Mulheres e a Corrente Sindical Classista, pretende lançar luz sobre o tipo de desenvolvimento que interessa às mulheres e sobre os novos problemas e desafios colocados pelas mudanças no mundo do trabalho decorrentes do ajuste estrutural da nova ordem capitalista.
Nas análises e nos balanços da década e nas formulações de novas estratégias e perspectivas para a mulher, persistem as constatações de que, ao lado de grandes mudanças, mantiveram-se as desigualdades. E mais ainda, às desigualdades de gênero somam-se desigualdades sócio-econômicas, raciais e étnicas. Também é assinalado um certo grau de desenvolvimento econômico em alguns países da América Latina, por exemplo, através da aplicação de políticas de “ajuste estrutural” que, por sua vez, trazem em seu cerne o agravamento da pobreza, da miséria, da exclusão social. A pauperização e a polarização social aumentaram, com duplas consequências sobre a situação da mulher: as condições de acesso ao trabalho permanecem desiguais e aumenta o índice de mulheres pobres chefes de família. A pobreza recai com maior carga sobre as mulheres, especialmente as mulheres negras e as trabalhadoras rurais. Esta carga maior se dá na proporção mesma em que as desigualdades de gênero se apresentam na divisão social e sexual do trabalho.
Por que os binômios desenvolvimento/pobreza, crescimento/exclusão? Por que, para as mulheres, ao lado de efetivos avanços no plano jurídico institucional (especialmente no Brasil – Constituição 1988, Conselhos, Delegacias etc.), verifica-se a deterioração dos serviços públicos (saúde, educação) e a minimização de políticas públicas voltadas contra a discriminação de gênero? Por que a dolorosa realidade de entrar massivamente no mercado de trabalho à custa da desqualificação, da subcontratação, da terceirização?
É certo mesmo que o mundo passa por profundas transformações sociais, econômicas e políticas. A IV Conferência Mundial em Beijing, que vai discutir Ações para o Desenvolvimento, a Igualdade e a Paz, não enfrenta a mesma realidade de México 1975 e Nairóbi 1985. Nestas ocasiões, estes mesmos temas foram discutidos, primeiro como colocação na ordem-do-dia da questão da mulher (México e a Declaração sobre a Igualdade da Mulher e sua Contribuição ao Desenvolvimento e a Paz) e depois enquanto Estratégias para o Desenvolvimento, a Igualdade e a Paz (Nairóbi). Agora vamos discutir as ações para a mesma temática, que não mudou. Mudou o mundo. E o que mudou tem nome e tem matriz.
A realidade do mundo hoje é unipolar. Os blocos ideológicos acabaram, a hegemonia dos países ricos (sob a égide dos Estados Unidos) é total. O poder é concentrado e o centro de decisões, hipermonopolizado. A nova ordem ignora as características regionais e a heterogeneidade racial e cultural dos povos. Apaga as fronteiras territoriais, desrespeita a soberania nacional, impõe um “novo” conceito de nação, propõe um novo engate internacional em que se cristalizem países hegemônicos e países periféricos, países centrais e países dependentes. Na verdade, sete países ricos e países do restante do mundo.
Em sua crise de decomposição, o capitalismo, incapaz de resolver os problemas de nosso tempo, busca alternativas para sair da estagnação e enfrentar as novas exigências de desenvolvimento. A decomposição do capitalismo aumenta o parasitismo, grandes recursos são aplicados na especulação financeira e não na produção. Há uma mudança profunda nas forças produtivas, em que predomina o avanço tecnológico, especialmente a microeletrônica, a informática e as telecomunicações (telemática). Este avanço altera as formas de gerenciamento dos negócios e da sociedade. As decisões são tomadas em escala internacional de forma instantânea, assim como são instantâneas a transferência e movimentação do capital. O capital se desterritorializa. A mobilidade do trabalho se acentua. As transnacionais dominam o mercado mundial e o centro de decisões.
Organismos como FMI e Banco Mundial ditam normas de organização econômica passando por cima das características multirraciais e multiculturais dos povos, dos diferentes estágios e do tipo de desenvolvimento a que aspiram. Outros, como a Organização Mundial do Comércio, quase exercem o papel de novo governo do mundo. É a era do primado do mercado sobre as nações.
“Capitalismo e economia globalizante não respondem às questões que têm sido colocadas na atualidade”.
O projeto neoliberal (que acaba de “anexar” a economia mexicana à norte-americana e destruir o México como nação) tem sua origem não na busca de um desenvolvimento real, independente, de acordo com as características regionais e culturais dos povos, baseado na soberania nacional e na democracia plena dos Estados livres e soberanos. É preciso dar nome e face aos agentes da nova ordem.
O projeto neoliberal é fruto de um seminário promovido em 1990 pelo governo norte-americano, que elaborou propostas conhecidas em seu conjunto como Consenso de Washington, com o objetivo de estabilizar e ajustar as economias dos países periféricos, como o Brasil, à nova realidade do capitalismo mundial (o plano inclui cerca de 60 países). A nova orientação econômica pode ser sintetizada em três pontos básicos: estabilização da economia, realização de reformas estruturais e retomada de investimentos estrangeiros. Por tão simples que pareça, tal orientação combate a inflação mantendo o arrocho salarial, estabiliza a moeda com “âncora cambial” (dolarização), desestrutura os parques industriais e reduz empregos.
Por ajustes estruturais entende-se o processo acelerado de privatizações de estatais estratégicas, desregulamentação de mercados, liberalização financeira e comercial. E por retomada de investimentos estrangeiros quer-se dizer abertura indiscriminada dos mercados internos ao capital estrangeiro e ao comércio exterior.
Enfim, um processo de transnacionalização da economia, de desmonte do Estado e das empresas estatais e consequente desmantelamento dos serviços públicos (Estado-mínimo), de redefinição de fronteiras territoriais e liberalização das relações capital/trabalho.
“Plano real: um aspecto desse modelo. Mas sua implantação depende de reformas na Constituição”.
No Brasil, um aspecto deste modelo chama-se Plano Real, mas a implantação plena do projeto depende de reformas na Constituição, tanto no plano econômico como no ordenamento político do país. No momento, as propostas de mudança referem-se à questão das estatais de petróleo e telecomunicações, à definição do conceito de empresa nacional, à liberalização da navegação. Mais adiante, seriam feitas reformas sociais e na Previdência; e no plano político a reforma eleitoral, com diminuição de eleitores (voto opcional) e de partidos (cláusula de barreira) e redução da margem de escolha a apenas um candidato por partido (voto distrital misto). Não é ao azar, portanto, que se tem constatado ao longo do mundo (e faz parte de programas de inúmeros governos – o combate à pobreza – tendo sido objetivo recentemente da Conferência de Copenhague) um aumento exacerbado da pobreza e da miséria, fazendo surgir enorme parcela de excluídos. Aumentam os índices de violência na sociedade, acentua-se a discriminação racial, agrava-se a desigualdade social. Surgem conflitos inter-raciais e guerras nacionais, o ultranacionalismo e o neonazismo se manifestam em diversas regiões. A corrupção e o desemprego se fazem presentes em um ordenamento social que valoriza o pragmatismo, o consumismo e o individualismo, como diz a síntese das propostas de Mar del Plata, em sua primeira versão.
O modelo neoliberal traz intrinsecamente o aumento do abismo entre o desenvolvimento e a pobreza. Se é verdade que nos últimos 30 anos (Brasil) há uma entrada massiva da mulher no mercado de trabalho e tem aumentado o número de mulheres chefes de família, isto tem se dado em um quadro de persistente desigualdade no acesso ao trabalho, de segmentação no trabalho, com rebaixamento salarial e complementaridade salarial. E são as mulheres mais pobres que se tornam cada vez mais chefes de família. Entre as mulheres pobres mais pobres estão as mulheres negras, que além da discriminação de gênero, sofrem a discriminação racial. (No Brasil, é no Nordeste que houve maior crescimento de mulheres chefes de família, passando de 16,6%, em 1980, para 19,5%, em 1991, segundo o Censo 1991).
“O projeto neoliberal pesa mais sobre as mulheres. Há um processo de feminização da pobreza”.
A precarização das condições de trabalho afeta demasiadamente as mulheres, agravada pelo sucateamento da prestação de serviços públicos, levando a drásticas reduções nos setores da saúde e educação. Os cuidados com a maternagem e a educação dos filhos e a carga de trabalho doméstico aumentam com o enxugamento de serviços públicos, que se busca transferir para a esfera privada (creches, por exemplo). Aumenta o impasse entre maternidade e trabalho. A igualdade fica cada vez mais comprometida com a carga doméstica. As mulheres trabalham o dobro de horas que os homens, por um décimo de seus ganhos (Unicef).
Há, sem sombra de dúvida, um processo de feminização da pobreza. Como alternativas, instituem-se o trabalho em domicílio e o trabalho de subsistência. A violência social e doméstica persiste no cotidiano das mulheres.
A necessidade permanente de lucro do capital financeiro internacional, dos grandes bancos e das transnacionais choca-se com as reais necessidades da humanidade e a preservação do equilíbrio e da vida na Terra. O desenvolvimento não pode se dar à custa da perda de enormes capacidades humanas e reservas ambientais. Este modelo não serve aos povos e às nações. Este modelo não serve às mulheres: por perpetuar a desigualdade de gênero é antifeminista e arauto do retrocesso.
Mas existem povos, existem trabalhadores, homens e mulheres, que somam milhões de seres humanos, que buscam outro caminho: lutam por manter e desenvolver o socialismo. De acordo com suas características próprias. Analisando experiências passadas que desagregaram os países ex-socialistas. Avaliando as derrotas e experimentando o futuro. São experiências distintas. De acordo com suas peculiaridades. Resolvendo seus próprios problemas. Não há modelos. Cuba resiste altivamente ao odioso bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos e seu povo não abre-mão do direito de decidir seu próprio regime político e econômico. Há que apoiar e solidarizar-se com a luta destes povos, especialmente o povo e as mulheres cubanas, que não sucumbiram aos ditames da nova ordem. Porque o mundo hoje se encontra em uma encruzilhada histórica: ou persiste o capitalismo – e a degradação social crescente e o aniquilamento das nações – ou abre-se nova luta buscando novos caminhos para o socialismo. É a única chance para a humanidade. O socialismo pode ter-se esgotado em algumas experiências práticas, mas não se esgotou em sua perspectiva histórica.
A realidade da mulher e as mudanças no mundo do trabalho
A evolução tecnológica, que introduz a microeletrônica e a robótica nos processos produtivos, com seus equipamentos flexíveis e versáteis, altera a organização da produção e as formas de gerenciamento e organização do trabalho. Da linha de montagem de produção em massa, da hierarquização e verticalidade do trabalho, da fragmentação das tarefas (fordismo), passou-se à produção flexível e diferenciada, à produção sem estoques (JIT) à produção de bens especializados, à polivalência das tarefas (toyotismo). Muito embora a linha de montagem ao estilo fordista ainda persista na indústria, cada vez mais se introduzem também as formas de produção flexível que exigem trabalhador qualificado e polivalente. A produção flexível introduz também um novo sistema de gerenciamento, que elimina níveis hierárquicos, constitui grupos de controle de qualidade, propicia uma visão do conjunto do trabalho e incentiva a responsabilidade do trabalhador quanto ao destino da empresa, incorporando a visão patronal (ideologia da qualidade total).
Estas mudanças na produção têm perfeita consonância com a política neoliberal, já que introduzem a desregulamentação das relações de trabalho, a terceirização, o trabalho provisório, o trabalho em casa, ao tempo em que aumenta a exigência da qualificação do trabalho e do trabalhador multifacético. A flexibilização da produção também implica a flexibilização da relação capital/trabalho. Adota-se o conceito de parceria entre patrão e operário, minimiza-se o papel do sindicato, fragmentam-se as categorias. Surge a figura do trabalho flexível.
As mudanças no mundo do trabalho e a ofensiva ideológica que se faz para o comprometimento dos trabalhadores e trabalhadoras com a empresa, a necessidade de parceria, o sindicato desprovido de seu caráter de classes, com suas funções reduzidas e pulverizadas, os incentivos à auto-estima, as exigências de qualificação, a tônica no “fazer certo” causam grande impacto sobre os trabalhadores.
Isto ocorre tanto no que se refere à divisão social quanto à sexual do trabalho, pois ambas se entrelaçam. Introduzindo uma perspectiva de gênero no modelo de produção flexível, vê-se, imediatamente, que o impacto sobre as mulheres não é o mesmo que sobre os homens.
“Há falta de controle sobre o processo de trabalho e sensação de impotência frente aos novos equipamentos”.
Para todos, o processo, além de exigir alta qualificação, de permitir a multifuncionalidade do trabalhador, de diminuir a fragmentação das tarefas (visão do todo), traz consigo também o aumento do desemprego, a terceirização, o trabalho provisório, o trabalho parcial, o trabalho em casa, enfim tipos de trabalho sem vínculos formais. Mas para as mulheres estes impactos são maiores. Já devido à sua inserção não-harmônica no mercado de trabalho por causa das condições desiguais de acesso, não ingressa no interior das grandes linhas de produção em igualdade com os homens. A segmentação no trabalho, o aumento dos ritmos, a exigência de qualificação têm reflexos profundos no cotidiano da trabalhadora. A falta de controle do processo de trabalho e a sensação de impotência frente aos novos equipamentos degradam as relações de trabalho e causam profundo sofrimento físico e mental, aliado ao desencanto quando as operárias percebem, como diz Alice Abreu, que não houve qualificação de suas tarefas, que não tiveram acesso a um saber novo, que, “ao contrário, seu antigo saber foi apropriado pelo computador”. Pode-se afirmar que as mulheres são a parcela mais atingida da população brasileira com o advento das novas tecnologias e da automação, já que se concentram no setor terciário, que sofreu grandes alterações com a informatização.
O que tem significado a flexibilização para as mulheres?
Desqualificação em vez de qualificação – A formação sexista e a ausência de uma discussão séria sobre as mudanças no mundo do trabalho numa perspectiva de gênero têm reproduzido e ampliado a relação de desigualdade nas novas funções polivalentes e qualificadas. Reproduz-se a relação desigual de salário e função, além de não se criarem novas carreiras profissionais. Cria-se um fosso entre um pequeno número de trabalhadores qualificados e um grande número de não qualificados. Este fosso tem uma clivagem de gênero, já que as mulheres são maioria entre os não-qualificados. As categorias de trabalho não-qualificado se feminizam cada vez mais.
Aumento do desemprego – A exigência de qualificação e a polivalência têm diminuído o número de empregos e também das categorias não-qualificadas (por exemplo, substituição da datilógrafa pela digitadora). Como as mulheres fazem parte do setor periférico do mercado de trabalho, sobre elas cai a parcela maior do desemprego.
No quadro da flexibilização, a situação da trabalhadora doméstica torna-se cada vez mais instável pelo seu tênue reconhecimento como categoria profissional, pela sua localização periférica e não-qualificada.
Precarização das relações de trabalho – As mulheres, como parcela flexível, não-qualificada, facilmente recrutada e descartada por não haver investimento na qualificação, são forçadas a se submeter ao chamado trabalho de subsistência, em casa ou feito em casa, ao trabalho parcial ou aos empregos de curta duração.
Aumento da exploração e engessamento da opressão de gênero – A jornada de trabalho flexível para mulheres tem efeito de compatibilizar o trabalho produtivo com o trabalho doméstico, como se este fizesse parte do processo de produção.
Na verdade, o modelo de flexibilização, em sua cara feminina, significa: mulheres “polivalentes” sem aumento salarial e sem novas chances de promoção; utilização de formas atípicas: contratos de curta duração e empregos parciais; trabalho em casa e trabalho feito em casa; perda da competitividade; perda do poder de barganha – a negociação passa a ser individual e não coletiva; perda do espaço público – trabalho na esfera do privado, o que significa um retrocesso.
“As mulheres rejeitam o canto da sereia da volta ao lar e a idéia de que estão mais infelizes com a igualdade”
As mulheres trabalhadoras não podem se submeter a nenhum tipo de retrocesso. Suas conquistas precisam ser mantidas e ampliadas. Certamente rejeitam o canto da sereia da volta ao lar, e combatem a ofensiva ideológica que lhes quer fazer crer que sua luta foi inútil, que elas se encontram mais “infelizes com a igualdade”. Primeiro, porque a igualdade na lei não tem se estendido à vida. Segundo, porque não há igualdade sem igualdade social, de gênero e de raça/etnia. Terceiro, porque a propalada igualdade se dá em uma sociedade fundada na desigualdade de classes e em um mundo que estabelece uma nova ordem de desiguais, sob a égide das transnacionais e dos países ricos centrais.
O feminismo emancipacionista, representado no I Encontro Nacional Mulher e Trabalho por mulheres trabalhadoras de diversas categorias e de diversos estados brasileiros, analisando com cuidado o significado das mudanças no mundo do trabalho e seu impacto sobre as mulheres, não aceita a manutenção das mulheres como parcela não-qualificada para o desenvolvimento tecnológico. Rejeita, como retrocesso, a flexibilização dirigida e o trabalho de subsistência como alternativa, pois significam a oficialização do trabalho doméstico como responsabilidade exclusiva feminina e a volta da mulher à esfera privada, eternizando o recorte de gênero na definição das representações sociais e sexuais.
Exige dos governos a manutenção e ampliação dos serviços públicos, como creches, saúde, educação, e não seu enxugamento ou transferência para o setor privado. As políticas públicas que pretendem eliminar as desigualdades de gênero em todas as esferas da sociedade devem ser elaboradas e aplicadas e não abandonadas e substituídas. Entende o trabalho flexível como redefinição das relações de trabalho, com diminuição da jornada de trabalho sem redução de salários para homens e mulheres. E a ampliação da oferta de trabalho com oportunidades iguais para homens e mulheres, com regras flexíveis, para possibilitar a divisão dos encargos de casa.
Muito se tem por lutar. Para impedir o retrocesso, manter a ampliar as conquistas, para exercer plenamente, de forma digna, o direito ao trabalho, à cidadania e à construção da sociedade. O conceito de cidadania não é neutro e o trabalho não é uma ficção. O direito ao trabalho e a cidadania se entrelaçam, e para as mulheres significa que são trabalhadoras cidadãs, exercendo seus direitos de participação em iguais condições na produção e na vida política.
“A luta contra a opressão de gênero entrelaça-se com a luta contra a exploração de classe”
A luta contra a opressão de gênero entrelaça-se com a luta contra a exploração de classe. As formas de discriminação de gênero perpassam toda a sociedade e encontram local privilegiado no mercado de trabalho, trazendo embutida toda a carga da construção de gênero na família e nas relações sociais (família, sociedade, fábrica). O acesso ao trabalho, a luta para os encargos domésticos saírem do privado e passarem para o público, o embate contra a ideologia de classe, que mantém a exploração e aumenta o abismo entre possuidores e despossuídos, e contra a ideologia de gênero que mantém os estereótipos – todos fatores essenciais para as mulheres conquistarem a sua emancipação. Pela sua radicalidade, esta luta exige um novo terreno, em que o movimento de mulheres já vem conquistando espaços: o mundo do trabalho e o movimento sindical. A luta de gênero no movimento sindical tem conteúdo classista e emancipacionista.
O gênero no sindicato
Esta conquista de espaço imprime ao movimento de mulheres um novo dinamismo e ao movimento sindical uma força vitalizante. E isto num momento em que as entidades sindicais enfrentam ameaças de enfraquecimento, fragmentação e redução de seu papel diante da implementação do projeto neoliberal, com a flexibilização nas relações de trabalho, necessitando adquirir uma compreensão mais abrangente dos múltiplos condicionantes sociais, políticos, de gênero, raça, etnia e idade que, no interior da sociedade de classes, configuram o perfil dos trabalhadores.
Neste ponto de nosso processo histórico as necessidades se fundem: a luta das mulheres precisa do sindicato, o sindicato precisa das mulheres, a sociedade precisa da luta contra a opressão social e de gênero para solucionar os problemas da produção econômica e da reprodução da espécie, buscando um modelo de desenvolvimento que contemple os trabalhadores.
“A realidade exige um passo adiante: incorporar a questão de gênero no movimento sindical”
É imperativo continuar o progresso no tratamento da questão de gênero no movimento sindical. Conquistou-se a aprovação da política de cotas em uma central. Uma vitória importante. Mas é preciso aplicá-la efetuando uma análise permanente da prática. Efetivá-la no conjunto dos sindicatos, onde esta medida vai se defrontar com a diversidade de características de cada categoria, como composição por sexo, nível de organização, localização regional e dinâmica própria.
Não se trata de uma questão superada. Ainda em 1989, 43% dos sindicatos urbanos, 23% dos profissionais liberais, 54% dos trabalhadores autônomos, 60% dos rurais possuíam diretorias sem nenhuma participação feminina. Por outro lado, ao mesmo tempo em que se avança na aplicação prática e discussão da quantidade (elemento necessário à democratização), urge elaborar e implementar políticas concretas no que se refere à qualidade. Impõem-se de imediato investimento na formação e projeção de lideranças femininas através de diferentes mecanismos: participação em cursos de política sindical, treinamento em técnicas de direção, participação em juntas de negociação, tarefas de representação pública, incentivo a ações que dão visibilidade.
Ao discutir cotas e investimentos na formação, estamos falando de democracia, participação no poder, superação de discriminações, fortalecimento do sindicato e do movimento de mulheres.
A conquista destes objetivos exige mais do que isto. É necessário incorporar os interesses e reivindicações das trabalhadoras às pautas de negociação, campanhas e na atividade cotidiana dos sindicatos. Incorporar massivamente as trabalhadoras ao movimento sindical. Travar a batalha ideológica sobre a questão de gênero, levando uma nova compreensão aos trabalhadores, homens e mulheres, cuja formação cultural e social acabou por naturalizar a opressão de gênero.
Tudo isso demanda uma atividade permanente e planejada: pesquisas, campanhas específicas de sindicalização, debates nos fóruns gerais dos sindicatos, estudo e elaboração, espaço nos boletins e jornais, mecanismos de apoio e orientação às trabalhadoras, atividades culturais, desportivas e sociais, divulgação dos direitos já conquistados, participação nos fóruns do movimento geral de mulheres, em acontecimentos de caráter local, nacional e internacional.
Há anos tomou-se consciência da necessidade de espaços específicos para o tratamento da questão de gênero na estrutura sindical. O aprendizado da experiência passou por departamentos “femininos”, muitas vezes guetizados e calcados nos velhos estereótipos; evoluiu para comissões sobre a questão da mulher, já com perspectiva de gênero e ganhos significativos.
Hoje a realidade exige um passo adiante. Já se compreende que é necessário os sindicatos incorporarem a questão de gênero como parte constitutiva, enriquecedora e mobilizadora do movimento sindical. Mas é necessário que tal espaço faça parte do centro de decisão dos sindicatos e centrais sindicais, tenha condições políticas e materiais de cumprir este papel. Defendemos uma Secretaria sobre a questão da mulher com cargo da Diretoria Executiva, com autonomia e poder para tomada de decisões e para atuar em conjunto com as demais áreas de atuação do sindicato (cultural, social, desportivas etc.).
Os sindicatos têm diante de si o desafio de assimilar em profundidade que é necessário combater a desigualdade nas relações de gênero, para que possam exercer de fato o seu papel enquanto representantes dos trabalhadores, mulheres e homens, munidos de uma proposta realmente transformadora.
* Este artigo é o resumo de um documento aprovado no I Encontro Nacional Mulher e Trabalho, promovido pela União Brasileira de Mulheres e pela Corrente Sindical Classista, realizado em Salvador, de 17 a 19 de março de 1995. Participaram da comissão de redação do documento: Loreta Valadares, coordenadora da UBM-BA; Gilse Cosenza, presidente da UBM; Olívia Rangel, secretária-geral da UBM; Raquel Guizoni, vice-presidente da UBM e diretora do SIMPEEM; Liége Rocha, presidente da União Popular de Mulheres do Estado de São Paulo; Gisela Santana, diretora da Federação das Bancárias da Bahia e Sergipe; Rebeca Serra Vale, diretora do Sindicato dos Bancários da Bahia; Dalva Leite, diretora do Sindicato dos Comerciários de Salvador; Gilda Almeida, presidente do Sindicato dos Farmacêuticos de São Paulo.
EDIÇÃO 37, MAI/JUN/JUL, 1995, PÁGINAS 43, 44, 45, 46, 47, 48