Em setembro de 1994, a cidade do Rio de Janeiro reuniu importantes pensadores, que trouxeram para debate elementos teóricos e políticos cruciais para a compreensão das mudanças atualmente em curso no Brasil e no mundo. Neste seminário internacional – O Pós-Neoliberalismo: As Políticas Sociais e o Estado Democrático – o cientista político Luís Fernandes, professor da Universidade Federal Fluminense, discorreu sobre o conceito e as bases do neoliberalismo. O artigo que apresentamos resulta de sua intervenção neste evento, do qual também participaram os professores Perry Anderson e Göran Therborn, comentados pelo autor. Importante ressaltar que o seminário ocorreu antes da eleição presidencial de 1994, quando a campanha ainda se desenvolvia.

Perry Anderson nos forneceu um panorama amplo da trajetória do neoliberalismo, desde a sua gênese como projeto ainda minoritário e marginalizado na chamada Escola Austríaca de Hayek e Von Mises, até a sua afirmação como projeto econômico, social e político hegemônico no mundo neste final de século. Já a apresentação de Göran Therborn enfocou as transformações estruturais operadas no capitalismo ao longo do último meio século, que possibilitaram e alimentaram esta hegemonia do neoliberalismo.

Quero chamar a atenção para a emergência, nessas apresentações, de duas definições diferentes (embora não necessariamente contraditórias) do fenômeno neoliberal. É importante estar atento a isto, porque ainda há muita confusão terminológica e conceitual no atual debate sobre o tema. A parte inicial da conferência de Perry Anderson se concentrou no exame do que poderíamos chamar (usando uma imagem muito em voga no debate político brasileiro) de versão xiita do neoliberalismo – isto é, a sua versão ideológica original, que propugnava a subordinação incondicional ao mercado como panacéia para todos os problemas fundamentais da modernidade, e considerava toda intervenção estatal na economia e na sociedade uma desgraça a ser evitada a qualquer custo.

É claro que, definido neste sentido mais estrito, o neoliberalismo não é aplicado em lugar nenhum e está muito longe de se constituir em corrente hegemônica ou predominante no mundo hoje. Mas essa formulação doutrinária muito radical e “dura” é a fonte que alimenta uma versão mais light (matizada e flexível) do projeto, com um impacto muito claro e evidente. Ao longo dos últimos quinze anos, vimos assistindo a uma viragem muito real e concreta nas políticas de gestão macroeconômica e social adotadas por grande parte dos países do mundo. Iniciada na Inglaterra e nos Estados Unidos, essa viragem se alastrou pela Europa Ocidental, tomou “de assalto” a América Latina, avançou sobre os escombros dos antigos países socialistas no Leste, e já se faz sentir em alguns países da África e na Ásia. Seus pilares fundamentais são três.

Em primeiro lugar, uma marcha acelerada de reversão das nacionalizações efetuadas no pós-guerra. Esta maré privatizante marca uma ruptura muito clara com as estratégias industriais anteriores, que valorizavam as empresas públicas como instrumentos fundamentais para um desenvolvimento econômico soberano. Esse processo se faz sentir com muita força hoje no Brasil – não só com as privatizações já efetuadas nos últimos quatro anos, mas também com as proposições de quebra de monopólios estatais considerados “intocáveis” até aqui, como o petróleo e as telecomunicações. É interessante ver como a viragem neoliberal em curso vem alterando o “senso comum” sobre esta questão. Quando a Petrobras foi criada na década de 1950, havia um grande consenso no Congresso Nacional em relação à oportunidade do estabelecimento desse monopólio estatal, fruto de intensa campanha popular de mobilização e esclarecimento. As críticas formuladas a Getúlio no Parlamento reclamavam justamente do caráter recuado do seu projeto – os parlamentares queixavam-se de que ele fazia concessões em demasia ao capital estrangeiro. Hoje o clima é outro, e esse consenso nacional já não existe mais. Ele não resistiu à campanha deliberada, metódica, incessante e massacrante contra os monopólios da União, orquestrada precisamente pelos monopólios privados que hoje dominam a mídia no país.

O segundo pilar da viragem neoliberal é a crescente tendência à desregulamentação das atividades econômicas e sociais pelo Estado, baseada na alegada superioridade da “eficiência no mercado” em relação ao “burocratismo do Estado”.

O terceiro é a tendência à reversão de padrões universais de proteção social estabelecidos com a emergência dos Estados de Bem-Estar Social no pós-guerra. Em função da crise fiscal destes, avolumam-se pressões para a particularização de benefícios sociais.

Diferentes articulações, combinações e dosagens destes três pilares são possíveis. Mas o seu sentido geral aponta para um projeto comum de reconfiguração institucional do capitalismo neste final de século. Os três elementos indicados – a desestatização, a desregulamentação e a desuniversalização – podem servir de base, assim, para uma definição mais operacional do neoliberalismo que leve em conta as especificidades da sua materialização nacional.

“Ajuste econômico-social implementado traz reformas políticas de sentido antidemocrático”.

Que consequências esse projeto acarreta? As discussões desenvolvidas neste seminário já destacaram as suas consequências negativas do ponto de vista social (agravamento das desigualdades, da exclusão e segmentação social etc.) e econômico (desvio crescente de recursos para a especulação, incapacidade crescente da absorção da mão-de-obra e do trabalho criativo humano, incapacidade de recuperar e sustentar ritmos elevados de crescimento etc.). Quero chamar a atenção para dois outros aspectos que não foram tão destacados quanto os acima, nos debates até aqui.

O primeiro diz respeito às consequências negativas do projeto neoliberal para o ordenamento democrático das sociedades que o adotam. A viragem econômico-social implementada pelo neoliberalismo vem sendo acompanhada por uma viragem política de sentido claramente antidemocrático. Por “baixo”, isto se expressa muito claramente no ressurgimento de fortes tensões e movimentos de cunho racista e chauvinista na Europa – um desenvolvimento que preocupa o mundo todo. Já por “cima” ela se materializa na adoção de medidas cada vez mais restritivas da democracia representativa e do pluralismo democrático. O caso emblemático, aqui, é o da Itália, que recuou do sistema de representação proporcional para o distrital misto. Hoje esse é um tema central, também, da agenda política brasileira. Os setores políticos mais afinados com o projeto neoliberal vêm pressionando fortemente pelo abandono do sistema de representação proporcional e pela introdução de cláusulas de barreira que dificultem o acesso de partidos ao Parlamento. No nosso caso, trata-se de um movimento para cassar e revogar avanços democráticos conquistados na Revolução de 1930!

O sentido mais profundo dessas tentativas parece claro – impedir (ou dificultar) que a insatisfação popular com o custo social das medidas neoliberais se expresse democraticamente nos poderes legislativos. Infelizmente, há muitas vacilações em relação a essa ofensiva dos setores democráticos da nossa sociedade, inclusive entre os partidos de esquerda.

O segundo aspecto a destacar, e que tem grande importância para o Brasil e para a América Latina, é o dos impactos negativos do projeto neoliberal sobre a capacidade de os nossos povos comandarem soberanamente o desenvolvimento dos seus próprios países. A adoção deste projeto implica o desmonte de instrumentos fundamentais de defesa de soberania nacional que, bem ou mal, foram erguidos no período anterior de industrialização via substituição de importações. O neoliberalismo, aqui, se apresenta como inimigo do nacionalismo, diferentemente do que ocorre na Europa ou nos Estados Unidos. No Brasil, por exemplo, a direita abandonou a bandeira da “defesa da nação” e a deixou nas mãos da esquerda – o que vem provocando surpreendentes rupturas e realinhamentos no âmbito das próprias Forças Armadas, que não encontram mais respaldo político na direita para seu projeto de conversão do Brasil em “potência mundial”. Nenhum movimento sério de enfrentamento com a ofensiva neoliberal pode se dar ao luxo de ignorar esses desenvolvimentos.

“Sérias contradições aparecem no horizonte do projeto, apesar dos desejos e discursos”.

Na parte final da minha intervenção quero trazer para o debate as perspectivas do projeto neoliberal neste final de século. Trata-se de um projeto que tende a se afirmar e consolidar cada vez mais, ou a enfrentar contradições e impasses crescentes? Pela minha avaliação, ele tende a enfrentar contradições crescentes. Não se trata, aqui, do que se chama em inglês wishful thinking (pensar com os desejos). Contra as ilusões positivistas sobre a “neutralidade” da investigação científica, considero inevitável (e salutar) que os seres humanos raciocinem a partir dos seus desejos. O problema é quando começamos a confundir esses desejos com a própria realidade. No caso do balanço das perspectivas atuais do projeto neoliberal, no entanto, me parece haver indicações bem concretas de limitações e contradições importantes. Se não, vejamos.

Há exatamente cinco anos, em setembro de 1989, o presidente George Bush reuniu as duas casas do Congresso norte-americano e pronunciou um discurso que ficou famoso por justificar os preparativos para a Guerra do Golfo com a proposição de que a derrota do Iraque naquele conflito lançaria as bases para a emergência de uma Nova Ordem Mundial. A partir desse pronunciamento, o tema da Nova Ordem Mundial entrou com força nos debates políticos e intelectuais pelo mundo afora. No mesmo período, o artigo (e, posteriormente, livro) de Fukuyama adquiriu instantânea notoriedade insistindo na tese correlata do “fim da História” – a noção de que a humanidade havia chegado a um estágio que tornava impossível qualquer perspectiva viável de desenvolvimento fora dos contornos do liberalismo político e econômico. Havia que se conformar com isso e aceitar todas as suas consequências. Essas perspectivas apontavam para a emergência de uma nova “paz perpétua” do tipo kantiano no mundo – a ação norte-americana seria a ponta-de-lança de um projeto universal, baseado na Razão, capaz de garantir paz e prosperidade para todos os povos.

Esse era o discurso dominante cinco anos atrás. Mas se olharmos ao mundo hoje, é isso o que estamos vendo? Tem sido essa a perspectiva dominante na evolução do sistema internacional de lá para cá? Acredito que não. O que vivemos foi um processo extremamente contraditório, onde tendências e perspectivas universalizantes e particularizantes se digladiaram e alternaram (e continuam o fazendo). No fundo, isso reflete o fato de que o que se universaliza é justamente uma ordem econômico-social que alimenta e exacerba a concorrência conflitiva de interesses particulares. Ou seja, se universaliza o particularismo.

“Guerras fratricidas, contrabando nuclear, instabilidade. É o Leste na nova ordem”.

Nesta base, podemos identificar dois momentos bem distintos na evolução mundial nos últimos cinco anos. Há um período inicial de euforia com a Nova Ordem, que vai da Guerra do Golfo até o desmantelamento na União Soviética no final de 1991, onde a lógica universalizante do liberalismo era o que predominava. E outro, do desmembramento da União Soviética para cá, em que a consolidação desta lógica é minada por grandes conturbações e contradições de fundo particularista.

Paradoxalmente, a fragilidade do novo projeto liberal foi evidenciada de maneira mais clara justamente onde ele havia conquistado a sua maior vitória – nos antigos países socialistas do Leste. A derrota do socialismo foi fundamental para a afirmação da nova hegemonia neoliberal no mundo. Ela parecia indicar, claramente e sem margem a dúvidas, a inviabilidade do socialismo e a superioridade intrínseca da “economia de mercado”. A opção por esta nos países do Leste, portanto, deveria abrir caminho para um novo ciclo de prosperidade e bem-estar. Mas isso se revelou uma gigantesca falácia.

Os países que compunham o campo socialista no Leste Europeu e na antiga União Soviética vivem uma crise profundíssima e aparentemente interminável, tornando-se um perigoso foco de instabilidade do sistema internacional – guerras fratricidas e chauvinistas combinadas com o contrabando de armamento nuclear.

Não se trata, portanto, de um cenário previsto na engenharia da Nova Ordem. Muito pelo contrário. Também compõe este cenário de desestabilização do neoliberalismo no Leste a volta ao poder, por sufrágio popular, dos antigos partidos governantes que haviam sido varridos das posições de mando pelos levantes de cinco anos atrás. É claro que, após eleitos, estes não voltam para aplicar as mesmas políticas de antes (e nem poderiam). Também é verdade que muitas destas coalizões eleitorais vitoriosas procuram se recompor com certas teses do ideário neoliberal. Mas o valor simbólico da sua eleição, o sentido político dado ao seu mandato pelos respectivos eleitorados, é o do protesto contra as promessas não cumpridas do neoliberalismo no Leste.

“Oposição ao projeto envolve importantes forças sociais também no Brasil”.

O projeto neoliberal também enfrenta contradições e limitações muito significativas na América Latina, que vem minando a sua consolidação. Quero destacar um aspecto crucial do caso brasileiro. Uma diferença estrutural importante do Brasil em relação aos demais países da América Latina (para além do tamanho) é que, aqui, o processo de industrialização via substituição de importações deu certo.

Durante certo período – inclusive durante o regime militar, apesar de todas as críticas que fazemos a ele do ponto de vista político, econômico, social etc. – logramos montar um parque industrial relativamente grande, desenvolvido, diversificado e auto-suficiente em diversas áreas. Como integrar uma economia desse porte de maneira subordinada e dependente, na divisão internacional do trabalho do mundo capitalista, com base no receituário neoliberal? As próprias dimensões do país – e o nível mediano e diversificado de desenvolvimento econômico já alcançado – inviabilizam a opção (concebível economicamente em outros países latino-americanos, apesar do seu alto custo social) de assumir como base do desenvolvimento nacional alguns nichos de exportação comparativamente vantajosos no mercado mundial. Neste aspecto, há importantes analogias entre os casos brasileiro e russo. É claro que, no caso da Rússia, há, ainda, as contradições específicas do processo de transição de um sistema econômico-social para outro. Mas o drama enfrentado pelas tentativas de integrar, na base de medidas neoliberais, economias gigantescas e com níveis relativamente elevados de industrialização na divisão internacional do trabalho é, nos dois países, o mesmo. Para além das dimensões econômica e social, as dificuldades geradas por esse projeto se expressam, em ambos os casos, no aumento da instabilidade política e na exacerbação da “questão nacional”.

Acredito que essa referência teórica é fundamental para compreendermos o processo político que culminou com o impeachment do presidente Fernando Collor no Brasil. A eleição de Collor marcou o início da aplicação do projeto neoliberal no nosso país. Nas condições brasileiras referidas acima, para além da oposição popular, esse projeto acaba se defrontando com múltiplas e variadas resistências no seio do próprio empresariado. Muitos setores deste são atingidos diretamente pela adoção de medidas, como o corte de subsídios, a abertura comercial, a reversão de políticas protecionistas etc.

Embora não tenham uma alternativa global de desenvolvimento a apresentar (e aceitarem, por isso, em tese, o discurso neoliberal), estes setores empresariais manobram para bloquear toda e qualquer medida concreta que fira os seus interesses. O resultado é uma margem de manobra muito maior para as ações de resistência ao projeto, que se expressam politicamente das mais variadas formas.

Acredito que o movimento para o impeachment de Collor foi expressão disso. Seu sucesso representou uma primeira e importante vitória contra a consolidação do projeto neoliberal no Brasil. Ela refletiu a instabilidade política que acompanha as tentativas de implantar um projeto desse tipo num país como o nosso.

É claro que o projeto neoliberal se recompôs e se reapresenta, na presente batalha eleitoral, com cara nova e força redobrada. Mas se a análise desenvolvida acima é correta, ela indica que – mesmo com um novo presidente compromissado com o projeto neoliberal (ainda que com “cores social-democratas”) – ele não terá campo fácil e aberto para a sua implementação. As contradições de importantes forças sociais com o projeto persistem – inclusive no âmbito das classes dominantes brasileiras. Existe espaço para que movimentos populares de resistência voltem a inviabilizar a implantação e consolidação do neoliberalismo, desde que adotem uma visão política ampla.

* Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF).

EDIÇÃO 37, MAI/JUN/JUL, 1995, PÁGINAS 33, 34, 35, 36