A Globalização da pobreza
No limiar do século XXI, a economia global se encontra em uma encruzilhada perigosa. No mundo em desenvolvimento, o processo de reestruturação econômica tem levado à fome e a um brutal empobrecimento de grandes setores da população e, ao mesmo tempo, contribuído para a “terceiro-mundialização” dos países do antigo bloco Oriental.
Desde o começo dos anos 1980, os programas de “macro-estabilização” e “ajuste estrutural”, impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial a países em desenvolvimento (como condição à renegociação de suas dívidas externas), provocaram o empobrecimento de centenas de milhões de pessoas. Contrariando o espírito do acordo de Bretton Woods, que preconizava a “reconstrução econômica” e a estabilidade da maioria das taxas de câmbio, o programa de ajuste estrutural tem contribuído largamente para desestabilizar as moedas nacionais e arruinar as economias dos países em desenvolvimento.
Dívida Global
No mundo em desenvolvimento, o peso da dívida externa já atingiu 1,9 trilhão de dólares: países inteiros têm sido desestabilizados como consequência do colapso de suas moedas nacionais, geralmente resultando na explosão de conflitos sociais, étnicos e guerra civil…
A reestruturação da economia mundial, guiada por instituições financeiras baseadas em Washington, nega cada vez mais a cada país em desenvolvimento, individualmente, a possibilidade de construir uma economia nacional: a internacionalização da política macroeconômica transforma países em territórios econômicos abertos, e as economias nacionais em “reservas” de mão-de-obra barata e de riquezas naturais. Essa reestruturação enfraquece o Estado, mina a indústria voltada para o mercado interno e empurra as empresas nacionais para a falência.
Além disso, essas reformas – quando aplicadas simultaneamente em mais de cem países – estão levando a uma “globalização da pobreza”, um processo que mina a comunidade humana e destrói a sociedade civil no Sul, no Leste e no Norte. Houve deterioração do poder de compra interno, disseminação da fome, fechamento de postos de saúde e de escolas, e centenas de milhões de crianças deixaram de ter acesso à educação primária. Na maioria das regiões do mundo em desenvolvimento as reformas econômicas têm provocado o reaparecimento de doenças infecciosas, incluindo tuberculose, malária e cólera.
Ajuste estrutural em países desenvolvidos
Desde o começo dos anos 1990, as reformas macroeconômicas adotadas nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) contêm vários ingredientes essenciais do programa de ajuste estrutural aplicado no Terceiro Mundo e na Europa Oriental. Essas reformas macroeconômicas têm levado à acumulação de grandes dívidas públicas.
Desde o início da década de 1980, as dívidas privadas de grandes corporações e bancos comerciais têm sido convenientemente anuladas e transformadas em dívida pública. Esse processo de “conversão de dívida” é uma característica central da crise: prejuízos de negócios e de bancos têm sido sistematicamente transferidos para o Estado. Durante o “boom de fusões” do final dos anos 1980, a sobrecarga das perdas das corporações foi transferida para o Estado através da aquisição de empresas falidas. Estas últimas poderiam então ser fechadas e qualificadas como prejuízos fiscais. Em troca, os “empréstimos não garantidos” dos grandes bancos comerciais eram rotineiramente cancelados e transformados em perdas pré-fiscais. Os “pacotes de resgate” para corporações e bancos comerciais com problemas foram largamente baseados no mesmo princípio de transferência dos ônus das dívidas das grandes empresas para o Tesouro.
Por outro lado, os diversos subsídios do Estado e “doações” às grandes empresas, ao invés de estimularem a criação de empregos, eram rotineiramente usados por elas para financiar suas fusões, introduzir tecnologia para economizar mão-de-obra e transferir a produção para o Terceiro Mundo.
A defesa pública contribuiu diretamente para aumentar a concentração da propriedade e uma contração significativa da força de trabalho industrial. Ao mesmo tempo, a sequência de falências de pequenas e médias empresas e demissões de trabalhadores (que também são contribuintes de impostos) provocou uma significativa queda na receita do Estado.
No grupo dos países da OCDE, as dívidas públicas têm crescido de forma ilimitada (atualmente ultrapassando 13 trilhões de dólares). Ironicamente, o mesmo processo de “amortização dessa dívida global” tem conduzido ao seu crescimento através da criação sistemática de novas dívidas. Nos Estados Unidos – de longe a maior nação devedora –, a dívida pública cresceu cinco vezes durante a era Reagan-Bush. Ela é atualmente, da ordem de 4,9 trilhões de dólares.
Um círculo vicioso foi posto em movimento. Os beneficiários das doações do governo tornaram-se credores do Estado. As ações e títulos lançados pelo Tesouro para financiar grandes negócios foram adquiridos por bancos e instituições financeiras que eram simultaneamente beneficiários dos subsídios do Estado. Uma situação absurda: o Estado estava “financiando seu próprio endividamento”, e doações do governo foram sendo recicladas no sentido de troca da dívida pública. O governo estava sendo imprensado por lobbies de grupos empresariais reivindicando subsídios, de um lado, e por seus credores financeiros, de outro. E, como uma grande parte da dívida pública está nas mãos de bancos e instituições financeiras privadas, estes também são capazes de pressionar governos para um aumento do controle sobre os fundos públicos.
A crise da dívida também estimulou o desenvolvimento de um sistema tributário altamente regressivo, que contribuiu para o aumento da dívida pública. Enquanto os impostos das empresas foram reduzidos, as novas receitas tributárias apropriadas da população assalariada (baixa e média), incluindo os impostos sobre valor agregado, foram recicladas no sentido de cobrir a dívida pública. Enquanto o Estado coletava impostos dos seus cidadãos, pagava “um tributo” às grandes empresas na forma de doações e subsídios.
Fuga de capital
Paralelamente, impulsionada pelas novas tecnologias bancárias, a saída dos lucros das corporações para praças bancárias estrangeiras nas Bahamas, Suíça, Ilhas Channel, Luxemburgo etc. contribuiu para a posterior exacerbação da crise fiscal. As Ilhas Cayman, uma colônia da Coroa Britânica no caribe, por exemplo, são o quinto maior centro bancário do mundo (em termos de volume de depósitos, dos quais a maioria é de companhias fantoches ou anônimas). O aumento do déficit no orçamento dos Estados Unidos esconde uma relação direta com a intensa evasão tributária e saída de lucros empresariais não declarados. Ao mesmo tempo, as grandes somas de dinheiro depositadas nas Ilhas Cayman e nas Bahamas (parte das quais é controlada por organizações criminosas) são utilizadas para financiar investimentos nos Estados Unidos.
Sob a tutela política dos credores
Os débitos de empresas paraestatais, serviços públicos, governos federais, estaduais e municipais são cuidadosamente categorizados e “classificados” pelos mercados financeiros (por exemplo, classificações do Índice Moody’s e do Índice Standard and Poor’s. Além disso, ministros das Finanças são cada vez mais compelidos a fornecerem relatórios a grandes casas de investimentos e bancos comerciais. O rebaixamento da classificação do Índice Moody’s da dívida sueca, em janeiro, foi fundamental na decisão do governo de minoria social democrata de reduzir importantes programas de seguridade, incluindo subsídios à infância e benefícios de seguro desemprego. Da mesma forma, a classificação do Índice Moody’s para a dívida pública do Canadá foi um fator decisivo na adoção de cortes maciços em programas sociais e demissões pelo ministro das Finanças do Canadá, em fevereiro passado. Nos Estados Unidos, a controvertida “emenda do orçamento equilibrado” (que sofreu uma derrota apertada no Senado em março de 1995) pretendia fortalecer, na Constituição, os direitos dos credores do Estado…
Crise do Estado
No Ocidente, o sistema democrático está sendo levado a um dilema: os eleitos para altos postos agem cada vez mais como burocratas. Os depositários do poder político real são os credores do Estado, que operam discretamente nos bastidores. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se uma ideologia política uniforme. O “consenso” no plano macroeconômico se estende para o espectro político. Um novo ambiente financeiro global também se manifestou: a onda de fusões de empresas no final dos anos 80 abriu caminho para a consolidação de uma geração de financistas agrupados em torno de bancos, de investidores institucionais, de corretores de valores, de grandes companhias de seguro etc. Nesse processo, as funções de bancos comerciais se misturaram com a dos bancos de investimentos e corretores de valores. Enquanto esses “administradores de fundos” desempenham um papel poderoso no mercado financeiro, entretanto, afastam-se cada vez mais da função de empreendedores na economia real. Suas atividades (que escapam do controle do Estado) incluem transações especulativas em mercados futuros, derivativos e manipulação do mercado de câmbio. Grandes agentes financeiros estão envolvidos em “aplicações de hot money” nos “mercados emergentes” da América Latina e Sudeste Asiático, sem mencionar a lavagem de dinheiro e o desenvolvimento de “bancos privados” especializados que “assessoram clientes milionários” nas várias praças bancárias do exterior. O movimento total de transações com divisas estrangeiras é da ordem de um trilhão de dólares por dia, dos quais somente 15% correspondem a negócios reais de mercadorias e movimentos de capital.
Dentro dessa rede financeira global, o dinheiro transita em alta velocidade de uma praça bancária a outra, na intangível forma de transferência eletrônica. Atividades comerciais “legais” e “ilegais” tornaram-se cada vez mais entrelaçadas, e enormes somas de riquezas privadas não declaradas são acumuladas. Favorecidas pela desregulação financeira, as máfias criminosas também expandiram seu papel no âmbito da atividade bancária internacional.
O fim dos bancos centrais
Além disso, as práticas dos bancos centrais em vários países da OCDE têm sido modificadas para atender às demandas dos mercados financeiros. Os bancos centrais se tornam cada vez mais “independentes” e “protegidos contra influências políticas”. Na realidade, o que isso significa é que o Tesouro Nacional está cada vez mais à mercê dos credores privados. DE acordo com o artigo 104 do Tratado de Maastricht, por exemplo, “o crédito do banco central para o governo é completamente discricionário, sendo que o banco central não pode ser forçado a dar tal crédito”. Esses estatutos, assim, conduzem diretamente ao crescimento da dívida pública mantida por financeiras e instituições bancárias privadas.
Na prática, o banco central, que não presta contas nem ao governo, nem ao legislativo – opera como uma burocracia autônoma sob tutela de interesses financeiros e bancários privados. Estes últimos ( e não o governo) ditam a direção da política monetária. Em outras palavras: a política monetária não existe mais como uma forma de intervenção estatal; ela pertence, em sua maior parte, ao reino dos bancos privados. Em contraste com a falta acentuada de fundos estatais, “a criação de dinheiro” ( implicando o comando sobre os recursos reais) ocorre no interior da rede do sistema bancário internacional em conformidade com a busca exclusiva de riqueza privada. Contrastando com a instabilidade dos bancos centrais de agir efetivamente, agentes de poderosas financeiras provadas não apenas têm a habilidade de criar e movimentar capital sem obstáculo, mas também de manipular taxas de juros e provocar a desvalorização de importantes moedas, como ocorreu com a queda espetacular da libra esterlina em setembro de 1992. Ou seja: os bancos centrais não conseguem mais regular a criação de dinheiro de acordo com os amplos interesses da sociedade ( por exemplo, visando ativar a produção ou a geração de empregos). A criação de dinheiro, incluindo o comando sobre os recursos reais, é controlada quase que exclusivamente por financistas privados.
A instabilidade dos mercados financeiros globais
A desregulação que acompanha o acúmulo de enormes dívidas públicas tem impulsionado padrões cada vez mais instáveis nos mercados financeiros globais. Desde a Segunda-Feira Negra (o dia 19 de outubro de 1987, considerado por analistas como bem próximo do colapso total da Bolsa de Valores de Nova York), um modelo altamente volátil se desenvolveu. Tal modelo foi marcado por convulsões freqüentes e cada vez mais graves nas principais bolsas de valores, pela ruína de moedas nacionais na Europa Oriental e na América Latina, sem mencionar o desabamento dos novos “mercados financeiros periféricos” ( como México, Bangkok, Cairo, Bombay), precipitado pela “realização de lucros” e pela retirada repentina de grandes investidores institucionais… Um colapso financeiro global não pode ser mais descartado. Além disso, diferentemente do que ocorria nos anos 20, as principais transações ao redor do mundo estão interconectadas por ligações instantâneas de computadores: a instabilidade em Wall Street “transborda sobre os mercados de ações da Europa e da Ásia, e se espalha, assim, para todo o sistema financeiro, incluindo os mercados de câmbio e de commodities…
* Professor de Economia da Universidade de Ottawa, Canadá. (Este texto foi divulgado na Rede Internet, por ocasião do Encontro de Cúpula do chamado Grupo dos Sete (G-7), realizado em Halifax, Canadá, em junho passado. Traduzido do inglês por Eduardo Figueiredo. Revisão de Luiz Marcos Gomes.
EDIÇÃO 38, AGO/SET/OUT, 1995, PÁGINAS 12, 13, 14