Ao encontro do socialismo real
O fim da experiência socialista soviética e do Leste europeu foi saudado pelo capitalismo como o “fim do socialismo real”. Termo de propaganda, a expressão “socialismo real” é usada no sentido de socialismo que existiu, mas sugere também o socialismo fundado na realidade, concreto e prático. Naquelas experiências, contudo, a política econômica de construção socialista nem sempre esteve de acordo com a realidade.
O novo tratamento que o socialismo vai tendo no mundo demonstra preocupação acentuada com as peculiaridades da situação real e ressalta a categoria da transição como forma prática de se ir ao socialismo. Mais do que nunca vai-se ao encontro do socialismo real.
O apelo da realidade e, sobretudo, o tema da transição são dois aspectos centrais que informam o novo programa partidário do PC do Brasil, de conteúdo socialista. Por isso ganha relevo a análise de transição.
A transição em Marx: o socialismo
Os fundadores do socialismo científico sempre afirmaram que a sociedade comunista origina-se da capitalista e, por isso, apresentava, “em todos os aspectos […] o selo da velha sociedade de cuja entranha procede” (Marx, Crítica ao Programa de Gotha).
A sociedade capitalista a que se referiam Marx e Engels era a mais avançada e moderna da época, a da Europa Ocidental. Referindo-se a ela, Engels salienta “o caráter dos modernos meios de produção”, que “está reclamando um novo modo de apropriação” (Anti-Dühring). Ainda assim, Marx salientou existir “entre esta sociedade capitalista (desenvolvida) e a sociedade comunista (…) um período político de transição (Gotha). A essa transição ele chamou de “primeira fase da sociedade comunista” (Gotha), ou fase inferior do comunismo. Lênin, bem mais à frente, observou que “costuma-se chamar de socialismo ao que Marx chamou de ‘primeira fase’, ou fase inferior da sociedade comunista” (O Estado e a Revolução).
É essa “primeira fase”, ou “fase inferior do comunismo”, ou “socialismo”, a sociedade que sai “da entranha do capitalismo”, do capitalismo dos “modernos meios de produção”, e que “leva, em todos os aspectos, o selo da velha sociedade”.
Marx e Engels nunca especificaram formas concretas nem da “primeira”, nem da “fase superior do comunismo”, porque não as conheceram. Sinalizaram, apenas, suas características gerais.
Em carta a Otto Breslau, em agosto de 1890, Engels faz referência específica ao processo de socialização:
“Assim, se temos partidários suficientes entre as massas, poder-se-á logo socializar a grande indústria e a grande agricultura latifundiária, desde que o poder político esteja em nossas mãos. O mais virá mais ou menos rapidamente. E tendo a grande produção, seremos donos da situação”.
Essas idéias de ter a grande produção – e não toda a produção – estatizada; de ter o Estado sob controle (em “nossas mãos”); de contar com suficiente apoio de massas; e de, com isso, já encaminhar a construção do socialismo, são as idéias centrais desse pensamento de Engels. Isso, bem entendido, a partir de uma sociedade capitalista desenvolvida.
Na Rússia, o comunismo de guerra atrapalhou a transição
A revolução proletária começou por um país onde não existia capitalismo desenvolvido. A velha Rússia era um país gigantesco, o maior do mundo, porém semimedieval, com nichos capitalistas em meio a uma vastidão agrária atrasada. O poder proletário enfrentou a tarefa de construir o socialismo em um país assim e, mais ainda, recém-saído de uma guerra mundial, às voltas com intervenções militares estrangeiras e com uma guerra civil que, em conjunto, custaram à Rússia 14 milhões de vidas. A esse número devem-se somar 17 milhões que, no mesmo período, sucumbiram à fome e às epidemias. É como se um Nordeste inteiro, nos idas atuais, desaparecesse do Brasil em cinco ou seis anos…
A classe operária da grande indústria, já pequena, diminuíra ainda mais: de 550 mil membros, passara a 175 mil. E, dos 130 milhões de habitantes de todo o país, 85% viviam no campo (KATORGUIN, I. Experiência histórica de aplicação da NEP pelo PCUS, Editorial Progresso, p. 44).
A política então chamada de “comunismo de guerra” foi uma imposição da realidade dramática e particular da Rússia – não era a política de construção do socialismo. Seu objetivo central foi o de selar uma aliança político-militar para a defesa imediata do poder recém-conquistado. As amplas massas camponesas foram provadas da possibilidade de vender seus produtos e comprar outros. A circulação das mercadorias foi substituída pelo intercâmbio controlado, que seguia um plano único.
Nas circunstâncias de um país em guerra, essa política, o “comunismo de guerra”, permitiu a manutenção do poder do Estado, mas engendrou grave crise econômica e política, inclusive porque, na sua aplicação, erros foram cometidos, como a nacionalização da pequena indústria, sem o Estado estar preparado para pô-la em funcionamento.
Lênin lamentou ter ido “longe demais o poder soviético pelo caminho da nacionalização do comércio e da indústria, pelo caminho de impedir a circulação local das mercadorias” (Lênin, X Congresso do PC(b) da Rússia, op. cit., t. 43, p. 63, cit. em KATORGUIN, I., p. 44).
Na atmosfera abrasada pela polêmica no Partido e nos sovietes, idéias estranhas circulavam, utópicas umas, estreitas outras, indicadoras do ambiente em que se vivia. Discutia-se “negar a necessidade do comércio na construção do socialismo”; “existir a continuidade da entrega gratuita – implantada em fins de 1920 – de comestíveis e artigos de primeira necessidade à população”; “abolir o pagamento de serviços, de transportes e de correios e telégrafos”; e “intensificar mais ainda a intervenção do Estado na agricultura e na vida do camponês” (KATORGUIN, I., 46).
Com a atividade econômica gravemente retraída e com o apoio da ampla massa camponesa ameaçado – num país de 25 milhões de propriedades camponesas –, o poder soviético, sob inspiração de Lênin, começou a pôr em prática a Nova Política Econômica, a partir do início de 1921.
A NEP: a transição soviética
A resolução mais característica do início da NEP foi a que aboliu a política das requisições e instituiu o imposto em espécie para o campesinato. “Ao empreender este caminho”, sublinhou Lênin, “o congresso corrige o sistema de relações entre o proletariado e o campesinato” (Era o X Congresso do PC(B) da Rússia) (LÊNIN, op. cit., p. 73).
O sentido geral da nova política da nova política foi o de apoiar-se na diversidade dos tipos de economia existentes na Rússia, reativá-los e promover o desenvolvimento do conjunto no rumo socialista. Voltou a circulação de mercadorias, o setor privado reorganizou-se, e o capitalismo de Estado passou a ser particularmente fortalecido. Admitiu-se a presença do capital estrangeiro (KATORGUIN, I., p. 118) e a base do socialismo foi assentada nas grandes empresas estatais. Grosso modo, pode-se considerar que a revolução soviética viveu, de outubro de 1917 (tomada do poder) a maio de 1918 (início das revoltas brancas), um período de implantação do novo poder e de alterações políticas e econômicas iniciais. A partir de então, no enfrentamento das revoltas brancas e das intervenções estrangeiras, o poder soviético lançou-mão do “comunismo de guerra”, de junho de 1918 a março de 1921 – por quase três anos.
Assim, foi a partir de 1921 que o novo poder na Rússia (a União Soviética só surgiria em dezembro de 1922) se lançou de fato à construção da nova sociedade, através da NEP. A economia estava imobilizada, e o próprio país dilacerado e faminto. Um ano depois, a recuperação já era nítida. Em 1923, tinha 165.781 empresas, das quais 18.310 grandes e/ou estratégicas estatais e 147.471 privadas, (88,5% do total) (KATORGUIN, I., p. 120).
Foi muito controvertida a implantação da NEP na Rússia. Lênin sentiu, com rapidez e profundidade, sua necessidade. Trotsky estigmatizou-a como capitulação ao capitalismo, e mesmo fazendo o chefe do II Internacional, Otto Bauer, e teóricos travestidos de revolucionários.
“Lênin passa a considerar necessário o estabelecimento de relações mercantis e monetárias”
A própria concepção de Lênin sobre a NEP se alterou, de abril de 1921 a outubro do mesmo ano. Em abril, ele via a NEP como um compromisso tático necessário para se “resistir até a vitória da revolução internacional” (Cf. Relatório sobre concessões, de abril de 1921, op. cit, 32., p. 324). As concepções básicas para selar o compromisso eram com o campesinato e com o capital estrangeiro.
Em outubro, Lênin volta à matéria, em relatório ao Partido de Moscou. Registra dificuldades na recuperação econômica e passa a considerar necessário para o desenvolvimento o estabelecimento das relações mercantis e monetárias. Não existia mais a referência a “até a vitória da revolução internacional” ( Op. cit., 33, p. 75 e BETTELHEIM, Charles. A luta de classes na URSS, t. I, 2ª ed., Paz e Terra, p. 437).
É possível que o fogo cruzado em torno desse assunto, aliado ao fato de Lênin não ter tido tempo de fazer dele uma análise mais beneficiada com a perspectiva do tempo, tenha dificultado uma caracterização mais precisa do papel da NEP na construção do socialismo na Rússia. As palavras "recuo” e “retirada” foram por ele empregadas, mas a tradição simplificadora, que deforma e mistifica, omite que as tenha utilizado num contexto metafórico, nesse outubro citado, e nesse relatório ao Partido de Moscou. Lá ele compara o “comunismo de guerra” aos “assaltos lançados pelos japoneses contra Porto Artur” (na guerra russo-japonesa de 1905), e a NEP ao “cerco dessa cidade”, oportunidade em que fala de “recuo” e “retirada” (Op. cit., t. 33, p. 78-81, e BETTELHEIM, Charles, op. cit., p. 450).
Bettelheim, minucioso no estudo das coisas soviéticas, ao tempo em que constata a possibilidade de mais de uma interpretação da metáfora, correlaciona-a com outra passagem do relatório onde Lênin assinala: “Devemos colocar-nos no terreno das relações capitalistas existentes”. O ponto de referência era o “comunismo de guerra” e suas relações socialistas artificiais. Bettelheim tira daí a seguinte provável conclusão sobre o pensamento de Lênin: “Dizer que se ‘recua’ para o terreno do que existe é afirmar que não se recua realmente, mas que se deixa o terreno imaginário de ‘relações socialistas’ não existentes para colocar-se no das relações reais” (BETTELHEIM, Charles, op. cit., p. 451).
“A NEP surge como a política de transição ao socialismo nas condições concretas da Rússia”
Ao que parece, uma política consequentemente socialista só teria condições de prosperar em um país atrasado e desestruturado pela guerra, como a Rússia era e estava, a partir de uma política como a NEP, fundada nas condições reais existentes. A NEP surge, assim, como a política de transição ao socialismo, nas condições da Rússia – a forma concreta de se abordar o socialismo naquele país.
Um dos últimos trabalhos publicados por Lênin foi Sobre a cooperação, em janeiro de 1923, um ano antes de sua morte. Falando da NEP, ele diz:
“Com efeito, todos os grandes meios de produção em poder do Estado e o poder do Estado em mão de proletários, a aliança deste proletariado com milhões e milhões de pequenos e micro-camponeses; a direção dos camponeses pelo proletariado, etc…, por acaso não é dito que se necessita para edificar a sociedade socialista completa, partindo da cooperação (…) que antes alcunhávamos de mercantilista?” Lênin, no mesmo trabalho, chama a atenção sobre o tempo que deveria ser consumido na prática da política da NEP (isso em 1923):
“(…) para lograr, por meio da NEP, que o conjunto da população tome parte nas cooperativas, necessita-se de toda uma época histórica… um ou dois decênios” (Sobre cooperação).
Essas passagens, das últimas que Lênin nos legou, mostram que, em sua visão, a NEP não era um mero “recuo”, mas a política consequentemente revolucionária, formulada em duras condições, de se fazer a transição para o socialismo, em um país de economia atrasada como era a Rússia.
Com a morte de Lênin, em 1924, a “época histórica” de que ele falou (e que poderia chegar, com a NEP, a dois decênios) foi encerrada cinco anos após, em 1929.
“Um vasto programa envolvendo transformações sociais foi posto em prática na China”
As experiências socialistas na União Soviética e no Leste europeu terminaram por socializar meios de produção médios e pequenos, na indústria, no comércio, nos serviços e na agricultura. Houve casos em que pequenas lojas, táxis e até cadeiras de engraxate chagaram a ser do Estado…
Esse sistema de estatização extensiva, que incluía médios, pequenos e micros meios de produção, teve consequências funestas para o destino daquelas experiências. Em primeiro lugar, envolveu o Estado socialista num denso cipoal administrativo, a cuidar de unidades econômicas pequenas, imobilizadoras e desgastantes. Era a própria estruturação da burocracia do sistema do governo. Em segundo lugar, condenou à inércia os pequenos e médios empreendimentos, privados das suas melhores características: flexibilidade e iniciativa. Em terceiro lugar, na impossibilidade de transformar em proletários fabris a multidão dos pequenos e médios produtores e comerciantes urbanos e rurais, transformou-a em funcionários públicos desqualificados, burocratizados, tendentes à ociosidade e à corrupção. Em quarto lugar, para controlar esse colosso de peças desprezíveis, era preciso montar uma aparatosa legislação reguladora e coibidora, e ter um grande número de funcionários improdutivos para aplicá-la.
Bem mais à frente, quando as economias da União Soviética e do Leste europeu entraram em colapso, ante a desenvoltura tecnológica do capitalismo, quem demonstrou inapetência para criar e crescer, quem tinha engessado o desenvolvimento técnico desses países, foi esse gigante hipertrofiado, asfixiado, asfixiante e lento do “tudo está estatizado”.
Na China, a transição é a etapa primária
Existe algo peculiar, em relação ao socialismo: seus principais teóricos consideraram-no tendente a desabrochar, em primeiro lugar, em países de capitalismo desenvolvido. Na realidade, o socialismo aflorou em países economicamente atrasados.
A segunda mais importante experiência socialista de todo o mundo deu-se na China, o mais populoso país da Terra, com um considerável acervo de formas e costumes diversificados e anacrônicos.
O PC da China, após assumir o poder central em 1949, no desdobramento de uma guerra com o Japão e de uma guerra civil, organizou um governo de coalizão chamado de Nova Democracia. Um vasto programa de transformações sociais foi posto em prática. O governo encaminhou-se para socializar as grandes fábricas e, sobretudo, promover a industrialização do país. Planos quinquenais foram realizados, e a agricultura sofreu várias mudanças ampliando-se o processo de cooperativização.
Pelo menos em dois momentos importantes foi truncado o desenvolvimento econômico chinês: a partir de 1958, no período do “grande salto à frente”, marcado pelas idéias de disseminar por toda a China numerosas e pequenas unidades produtoras; e no tempo da “revolução cultural”, de 1966 a 1976, quando se desorganizaram a economia, o governo e até o Partido Comunista, em contexto de exacerbado voluntarismo, intensa e desorientada mobilização da juventude.
Indubitavelmente, a construção do socialismo na China mudou de sentido: passou a seguir uma política consciente e constante, desde 1978, e particularmente a partir de 1982, quando se realizou o XII Congresso do PC da China, e foi formulada a “teoria da construção do socialismo com peculiaridades chinesas”.
“Etapa primária: coexistência entre várias formas de propriedade dos meios de produção?”
Com seus desenvolvimentos posteriores, a nova teoria acentua que o socialismo, “como o conceberam os fundadores do marxismo”, seria construído “sobre a base de um capitalismo altamente desenvolvido”. Adverte que a “construção do socialismo em um país oriental atrasado […] como a China é um tema novo na história do desenvolvimento do marxismo”. Observa-se que, após trinta anos, as bases de um sistema socialista na China estão lançadas e que, portanto, não só já existe como é possível e necessária a construção socialista daquele país. E realça que, entretanto, em decorrência do atraso geral do país, o socialismo na China encontra-se em uma “etapa primária”.
Característica dessa etapa primária é a coexistência entre “múltiplas formas de propriedade dos meios de produção”, inclusive a propriedade privada e a estrangeira, sob o “predomínio da propriedade social”. Tem proeminência o capitalismo de Estado, no sentido caracterizado por Lênin, em que empresas administram estatais, não tendo sobre elas direito de propriedade, mas de gerência, estabelecido e limitado por um contrato de gestão. Na etapa primária do socialismo, a economia será regulamentada por plano e pelo mercado, cabendo ao Estado regular o mercado, e, a este, orientar as empresas” (Decimotercer Congreso Nacional del PC de China, Beijing, 1987).
A planificação econômica fundamental relaciona-se com a existência de 14.400 empesas estatais, de grande ou médio porte, plantadas nos setores estratégicos do país. Elas constituem “4% do número total de empresas industriais do país” e representam 44% do total da produção industrial nacional”, em um contexto em que “o valor global da produção industrial das empresas estatais é de 53% do valor total da produção industrial da nação” (Beijing informa, 10 de Janeiro de 1995). Essas empresas asseguram o rumo geral socialista da economia, puxando um cortejo de centenas de milhares de empreendimentos de variados tipos.
Com essa política, e beneficiando-se de circunstâncias internacionais favoráveis, a China se mantém desde 1978 na linha de frente do desenvolvimento econômico, com quinze anos ininterruptos de crescimento médio anual em torno dos 10% – o maior do mundo.
A fase primária do socialismo na China é a transição que ali se faz entre uma economia atrasada e uma economia socialista avançada.
No Brasil, a transição no programa
No Brasil, há décadas atrás, no quadro de uma sociedade ainda agrário-latifundiária, o Partido discordou da posição voluntarista segundo a qual “a revolução já era imediatamente socialista”, que desconsiderava as insuficiências objetivas do país.
Com a evolução da sociedade, alterou-se a formulação do Partido, que deixou de defender a “revolução em duas etapas” – nacional e socialista – e passou a sustentar a aproximação entre essas etapas. Agora, no novo Programa, ajusta-se a perspectiva socialista com as imposições da realidade.
“Programa: como abordar a transição do capitalismo dependente ao socialismo nas condições do Brasil?”
Ponto de partida desa proposta de um novo Programa do PC do Brasil é a caracterização do capitalismo de hoje, no país, como dependente e com desenvolvimento deformado: aqui convivem regiões e setores adiantados com outros que se arrastam no atraso e pauperismo, com uma população distribuída entre núcleos abastados e vastas esferas miseráveis.
Neste país, segundo o Programa proposto, estão dadas as condições para se passar para o socialismo, desde que se tenha a hegemonia do processo, o apoio suficiente da população e que, “levando em conta as peculiaridades do país”, encaminhe-se o processo para uma “fase de transição do capitalismo ao socialismo”.
O Programa aponta, como expressão política de um poder popular, uma “república de trabalhadores e de amplas massas do povo”, mais ampla que um governo estritamente operário.
As liberdades democráticas são asseguradas, prevendo-se, pela primeira vez de forma explícita em programas desse tipo, liberdade dos partidos políticos, (“respeitada a legalidade socialista”), de greve, de culto religioso (não apenas de consciência religiosa), pesquisa técnica e filosófica, de expressão e criação artística, entre outras. Acena-se com o fim do descalabro do domínio dos oligopólios nas redes de comunicação, tevê e radio, indicando-se que elas serão controladas por fundações educacionais ou pelo Estado.
Na etapa de transição, a construção econômica se dará sob a égide da planificação. Esta, entretanto, segundo o Programa, “atingirá apenas os setores fundamentais” e manterá “os mecanismos de funcionamento do mercado”. “As empresas estatais de caráter estratégico”, diz a proposta, serão os fundamentos da economia socialista, e as “riquezas do solo e subsolo”, as “telecomunicações, correios e telégrafos” e indústria “espacial” serão privativas da exploração estatal. Os “bancos serão nacionalizados”, bem como “o comércio exterior, os portos e os meios de transporte essenciais”.
“Uma tarefa básica: resguardar a soberania nacional. Um desafio para nossa época”
À propriedade privada o Programa reserva “o livre funcionamento das pequenas e médias indústrias”, “as empresas industriais e os serviços que contribuam para o desenvolvimento nacional”, “o comércio […] em setores circunscritos” e “os proprietários rurais admitidos pela reforma agrária”.
Um tratamento transitório é o que o Programa dá à questão da terra no Brasil. “Não haverá Nacionalização da terra”, e sim “reforma agrária antilatifundiária”, com fixação de teto máximo para as propriedades, e criação de um “Fundo Agrário Nacional”, à disposição do Estado, para suprir necessidades agrárias, inclusive de arrendamento de terras”.
Ciência e tecnologia, por fim, são tratadas como “elementos essenciais à edificação de uma sociedade moderna”. A soberania nacional é resguardada como objetivo básico – “uma das grandes tarefas da época em que vivemos”.
“Acumular forças” no processo político em curso
O programa que o PC do Brasil apresenta é um programa geral de governo. Uma frente que chegue ao poder em escala nacional, onde trabalhadores e massas populares tenham a hegemonia, pode viabilizá-lo, a depender de uma unidade e direção que tenha. O programa orienta a ação imediata do partido e dá-lhe objetivos. Nesse sentido, dois aspectos centrais se destacam, na parte relativa ao “caminho para o socialismo”: a “luta pela hegemonia do processo político” e o objetivo de “acumular forças, ganhar prestígio e influência no seio do povo”.
Ganhará relevo, na continuidade, o aprofundamento do “processo político em curso” e das formas mais eficazes de se “acumular forças” na atualidade.
O “processo político em curso” no Brasil é o neoliberal. Por essa razão, a atividade política do Partido passa pelo seu enfrentamento – em primeiro lugar, por uma visão de conjunto de seu significado.
O neoliberalismo deve ser visto como a tradução, no Brasil, do caminho que o capitalismo monopolista está seguindo, no mundo, no estágio atual da chamada globalização da economia, com o proposito de dar impulso ao desenvolvimento capitalista, sob a égide dos monopólios.
Existe uma particularidade desse caminho para o Brasil: ele reorienta desenvolvimento geral do país, sob a aparência de uma mera plataforma de governo, mudando a Constituição em pontos essenciais, numa sequência longa de redefinições estratégicas, consubstanciadas nas chamadas “reformas de FHC”.
Espelhando o ideário neoliberal que vem de Thatcher e do Consenso de Washington, FHC assume a tarefa de arriar o ideal histórico de uma Nação brasileira desenvolvida e independente, sem isolamento xenófobo, e procura consolidar a idéia de um Brasil “integrado no contexto das potências internacionais”, vale dizer, periférico, dependente e submisso. Para tanto, envereda na trilha do “país que paga dívidas”, no caminho dos juros altos, de desregulamentação da economia, da privatização da economia, da privatização indiscriminada e perdulária, da abertura total ao capital estrangeiro, do desmonte do Estado Nacional, da redução dos direitos sociais e políticos, da quebra do sindicalismo nacional e do uso do suborno como política de governo na consecução desses objetivos. E mais ainda: a democracia não é essencial a essa perspectiva neoliberal. Poderá sobreviver ou não, dependendo das circunstâncias, como está ocorrendo em outros países.
O confronto com o neoliberalismo deve levar, como está levando, à resistência às suas metas, cuidando-se para a necessária resistência em toda a linha não impeça a defesa localizada e inteligente de pontos nevrálgicos.
As idéias básicas de um programa como esse do PC do Brasil podem e devem embasar também propostas gerais alternativas às neoliberais do governo, em questões como dívida interna e externa, política de investimento, controle do sistema financeiro e dos juros em particular, defesa contra o capital especulativo, apoio ao capital de risco estrangeiro ou brasileiro, incentivo à ciênia, à tecnologia e aos serviços sociais, problema agrário, controle externo do judiciário, democratização dos meios de comunicação, representação política democrática e plural, fim do império do dinheiro nas campanhas políticas, recuperação para o Estado das estatais estratégicas, contrato de gestão para as estatais, política distributiva para diminuir as desigualdades inter-regionais e sociais e para promover um amplo mercado interno etc.
“Os trabalhadores e os intelectuais compõem camadas interessadas na nova sociedade”
O processo de “acumular forças, ganhar prestígio e influência no seio do povo” é um processo histórico, portanto mutável, que usa meios dependentes das características da política geral e dos dados da realidade existente.
O PC do Brasil nunca foi, nem será, um partido meramente parlamentar, conformado com o status quo vigente. Sua motivação originária e atual é a liberação social, que só pode ocorrer nos marcos de uma sociedade nova, sem exploração de classe, socialista.
A influência que o Partido pretende aumentar é junto às camadas interessadas nessa sociedade nova, trabalhadores e intelectualidade em primeiro plano. O trabalho de base é uma consequência dessa compreensão, diz respeito à natureza do Partido. A participação em órgãos dirigentes nas entidades de base é decorrência desse trabalho e expressão da influência que ele propicia. Por outro lado, contribui para o avanço do trabalho, dinamizando-o significativamente.
Na mesma ótica deve ser examinada a eventual ocupação de cargos, eletivos ou não, nos executivos municipais e estaduais. É fruto dos trabalhos de base e, bem encaminhada, pode potencializá-los em nível inestimável.
* PCdoB-BA, é membro do Comitê Central e Comissão Executiva do Partido Comunista do Brasil. Exerce seu quarto mandato como deputado federal. Foi líder de sua bancada por sete anos e é, atualmente, vice-líder do PCdoB na Câmara dos Deputados.
EDIÇÃO 38, AGO/SET/OUT, 1995, PÁGINAS 36, 37, 38, 39, 40, 41