Parece à primeira vista, um tema estranho à biografia de Friedrich Engels tratar de economia política; afinal, é sobejamente conhecido que a Karl Marx coube a elaboração mais fecunda acerca da crítica da economia política, consubstanciada na sua obra magna O Capital; também é sabido que entre Marx e Engels vigorou uma certa divisão do trabalho intelectual, de tal forma que Engels, com excesso de humildade, declarou-se (numa carta ao amigo datada de 15 de outubro de 1884) tão somente dotado do papel de “segundo violino”, ao lado da genialidade de Marx (1).

Para corroborar isso, uma declaração de Engels no prefácio à segunda edição do seu livro Anti-Dühring (setembro de 1885) é bastante clara:

“Uma observação de passagem: tendo sido criada por Marx, e em menor escala por mim, a concepção exposta neste livro. Não conviria que eu a publicasse à revelia de meu amigo. Li-lhe o manuscrito inteiro antes da impressão; […] Era, aliás, hábito nosso ajudarmo-nos mutuamente na especialização de cada um” (2).

Contudo, é preciso asseverar: antes que Marx se desvencilhasse das lides filosóficas de sua juventude ao lado dos neo-hegelianos, Engels teve o mérito de refletir sobre a realidade econômica e política da Grã-Bretanha e produzir uma série de artigos (3) sobre as crises políticas e econômicas, sobre o movimento cartista liderado por Feargus O’Connor (4) e, finalmente, um livro sobre A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Os escritos engelsianos refletiram uma mudança de atitude e de vida que só a sua mudança para a Inglaterra permitira: sua partida da Alemanha fora planejada pela família a fim de que o jovem Engels adquirisse experiência nos negócios, e assim foi que ele chegou a Manchester em novembro de 1882 para trabalhar numa fábrica de tecidos de que seu pai era sócio, a Engels & Ermen.

É nesse contexto que Friedrich Engels alia seu trabalho à convivência próxima com os operários e estabelece a escolha não apenas intelectual, mas acima de tudo moral, existencial e política de toda a sua vida: a defesa dos interesses da classe operária e do socialismo. Sua produção intelectual é então copiosa e assustadoramente avançada do ponto de vista teórico. Somente assim pode-se compreender o significado do seu trabalho mais importante até então escrito, uma obra seminal: O esboço para a crítica da economia política, escrito em fins de 1843, quando seu autor tinha apenas 23 anos e nenhuma passagem pela academia; foi publicado no Deutsch-Franzosisiche Jahrbucher (Anais Franco-Alemães) de Paris, em 1844. Mais tarde, o autor diria, numa certa carta de 1871 ao seu companheiro, o socialista alemão Wilhelm Liebknecht, com mais um excesso de humildade, que seu artigo estava “completamente antiquado e cheio de inexatidões” (5).

Dez questões sobre o Esboço genial

Utilizando de forma descontextualizada e livre uma expressão de Louis Althusser, poderíamos dizer que o significado histórico do Esboço de 1843 reside em ter aberto um novo continente teórico, o continente da crítica da economia política, da mesma forma que Galileu abrira o continente “física” séculos antes. O mais irônico nessa expressão é que ela se refere a uma obra anterior àquilo que Althusser denomina “censura epistemológica” no cerne do marxismo, o que não invalida totalmente a contribuição do notável filósofo francês – apenas a relativiza. O fato que aqui nos importa é que pela primeira vez se esboça uma crítica científica da economia política que, como toda obra seminal, ainda continha traços ideológicos dessa própria economia política.

Podemos indicar pelo meno dez pontos para a reflexão do leitor que evidentemente não serão desenvolvidas aqui, e nem fecham a possibilidade de que haja outras questões relevantes num texto de tamanha riqueza teórica, pois isso exigiria um trabalho de fôlego que percorresse uma parte significativa dos economistas lidos e analisados por Engels.

1- É a primeira crítica de um ponto de vista histórico da economia política e do próprio sistema econômico que a fundamenta; as escolas do pensamento econômico, como o mercantilismo, a fisiocracia e a economia clássica (Smith e Ricardo) são analisadas em perspectiva histórica, a partir de sua gênese no processo da vida material, embora ainda com muitas confusões que levaram o autor a igualar o papel de alguns economistas vulgares com os de Adam Smith e David Ricardo, por exemplo.

2- Pela primeira vez se desnuda a imoralidade que fundamenta o discurso ideológico moralizante da economia política burguesa; embora esse seja o ponto normalmente identificado como falho nesse ensaio de Engels, é, na verdade, de extrema importância ideológica na sua época como contradiscurso para o movimento comunista ao qual Engels, antes de Marx, já estava ligado informalmente.

3- A concorrência é definitiva como a essência do capitalismo e produz, dialeticamente, a sua negação: o monopólio. Engels mostra que, ao contrário do que afirmava Adam Smith (cada um na busca dos seus interesses particulares e egoístas concorreria para o bem comum), o interesse particular e o interesse geral são “diametralmente opostos”, visto que o resultado lógico da competição é a derrota de uns pelos outros no monopólio.

4- A crítica da propriedade privada é levada a um novo estatuto teórico e identificada com os resultados do próprio movimento capital:
“Vimos como o capital e o trabalho são originalmente idênticos; e assim mesmo vemos pelos argumento dos economistas como o capital, resultado do trabalho, volta a converter-se, em seguida, dentro do processo de produção, em abstrato, em material de trabalho, e como, portanto, a separação estabelecida por um momento entre o trabalho e o capital volta a desaparecer na unidade de ambos. O divórcio de capital e trabalho, nascido da propriedade privada, é sensivelmente o desdobramento do trabalho em si mesmo, correspondente a esse estado de divórcio e resultante desse. Depois de estabelecida essa separação, o capital se divide em capital inicial e lucro, ou seja, o incremento do capital obtido no processo de produção, se bem que a prática se encarrega de incorporar imediatamente esse lucro ao capital, para colocá-lo em circulação com ele (6).

Note-se como Engels recorre a uma construção hegeliana para demonstrar a valorização do capital vinculada à reprodução ampliada das relações sociais de produção capitalistas, cristalizadas no antagonismo de dois elementos – o capital e o trabalho –, sendo que aquele não é senão produto deste, unido a esse processo produtivo e deste separado no momento seguinte. O trabalho é, em todo o parágrafo, definido como o sujeito, enquanto o capital é o elemento acidental, mas não mero epifenômeno, e sim parte integrante da totalidade da produção e reprodução de si mesmo mediante a atividade do trabalhador. A “cisão primitiva” (!) entre capital e trabalho explica a propriedade privada dos meios de produção e é levada a propriedade privada dos meios de produção e é levada ao paroxismo com a “cisão da humanidade em capitalistas e trabalhadores”.

5- Engels estabelece já uma teoria embrionária das crises econômicas cíclicas; destrói a beleza vista pelos economista na lei da oferta e da procura (por exemplo, a lei de Say, para quem demanda e oferta sempre se equilibrariam no capitalismo, e não haveria superprodução); mostra que as crises são o produto lógico do capital.

6- Baseando-se no historiador escocês Archibald Alison, Engels destrói o argumento central de Tomas Robert Malthus. O economista inglês fora o primeiro a asseverar: “A população, quando não controlada, cresce numa progressão geométrica. Os meios de subsistência crescem apenas em progressão aritmética (7). A partir disso, tirou as ilações políticas mais abjetas sobre controle de natalidade para a classe trabalhadora e a necessidade de que uma parte dessa morresse em guerras para reequilibrar a ordem econômica. Mas o primeiro fato, não percebido por Malthus, é que a população excedente sempre existe ao lado da superprodução de mercadorias (8), ou seja, o capital é demasiado abundante para prosseguir explorando a força de trabalho com taxas elevadas de lucro (obviamente Engels apenas tangencia a questão sem considerar o papel da queda da taxa de lucro), a crise emerge e destrói parte das forças produtivas, disseminando a fome e o desemprego entre os trabalhadores, ao lado de uma produção abundante que é destruída por falta de demanda; o segundo fato é que o hiato entre população e alimentos não considera o aumento da produtividade da força de trabalho.
Obviamente é apenas fora do invólucro capitalista que a produção poderia continuar sem crises e em harmonia com a demanda. Vejamos que Engels apanha as duas proposições de Malthus e demonstra a fragilidade de cada uma delas.

7- Decorre da consideração anterior acerca do aumento da produtividade da força de trabalho que Engels tece considerações sobre os avanços científicos e considera a ciência como uma força produtiva em si mesma.

8- Engels deduz, de forma bem mais concreta que os planos dos socialistas utópicos, a necessidade de uma economia planificada. “Num estado de coisas digno da humanidade” (leia-se “comunismo”), diz Engels:
“A coletividade terá que calcular o que é capaz de produzir com os meios de que dispõe e determinar, na base da relação entre esse potencial de produção e a massa dos consumidores, em que medida deve a produção aumentar ou diminuir, até que ponto se pode tolerar o luxo ou se deve restringir” (9). Essa citação influenciou implicitamente Marx numa de suas raras formulações de O Capital acerca do comunismo:
“Pensemos a sociedade como não sendo capitalista, mas comunista: então o capital monetário desaparece completamente, portanto, também os disfarces das transações que dele decorrem. A coisa se reduz simplesmente ao fato de que a sociedade precisa calcular de antemão quanto trabalho, meios de produção e meios de subsistência ela pode, sem qualquer quebra, aplicar em ramos de atividade que, como a construção de ferrovias, não fornecem por um tempo mais longo, um ano ou até mais, meios de produção nem meios de subsistência, nem efeito útil, mas retiram trabalho, meios de produção e meios de subsistência do produto total anual. Na sociedade capitalista, pelo contrário, onde a racionalidade social só se faz valer post festum, podem e têm de ocorrer constantemente grandes perturbações” (10).

9- O impacto desse esboço engelsiano na produção teórica marxista foi ressaltado por Lênin: “(…) Engels havia publicado na revista Anais Franco-Alemães, editada por Marx e Ruge, seu “Estudo crítico sobre a economia, no qual se analisavam, do ponto de vista socialista, os fenômenos básicos do regime econômico contemporâneo, como consequência inevitável da propriedade privada. A relação com Engels contribui, sem dúvida, para que Marx se decidisse a ocupar-se do estudo da economia política, ciência em que suas obras produziram uma revolução” (11).
O próprio Marx, numa honesta deferência ao amigo, reconheceu muito mais tarde, no seu prefácio à sua obra Contribuição para a crítica da economia política, de 1859, depois de uma rápida explanação do seu itinerário intelectual, o seguinte:
“Friedrich Engels, com quem (desde a publicação nos Anais Franco-Alemães de seu genial esboço de uma crítica das categorias econômicas) eu mantinha constante correspondência, por meio da qual trocávamos idéias, chegou por outro caminho – consulte-se a Situação das classes trabalhadoras na Inglaterra – ao mesmo resultado que eu” (12).

10- Por fim, cabe destacar que o Esboço de 1843 é a primeira crítica da economia política de que se tem notícia.

O problema da transformação do valor em preço de produção no último Engels

Engels não só editou os volumes segundo e terceiro de O Capital de Karl Marx, mas também os organizou e o reescreveu; ele é autor ipsis litteris, por exemplo, do capítulo IV do volume III. Além disso, publicou uma resenha em duas partes sobre o volume primeiro em um jornal operário alemão, o Demokratisches Wochenblatt, números 12 e 13, em 21 e 28 de março de 1968 (13). Além dos artigos para operários, é curioso notar que Engels escreveu uma série de artigos anônimos para a imprensa burguesa criticando O Capital de um ponto de vista burguês (naturalmente em conluio com Marx) para quebrar a “conspiração do silêncio” com que os economistas receberam a obra (14). A empreitada obteve sucesso, pois até a segunda edição alemã foram publicadas críticas em La Philosophie Positive Revue, Jornal de São Petersburgo, Saturday Review, Jornal dos Economistas (Alemanha) etc., além de resenhas elogiosas na imprensa operária dos velhos amigos como Ruge e Feuerbach (15). O segundo e terceiro volumes já encontraram o nome de Marx indispensável para o público e definitivamente gravado na história.

O papel de Engels na divulgação e possível desenvolvimento da teoria do valor de Marx é perfeitamente visto nos seus diversos textos sobre O Capital, particularmente o prefácio ao livro terceiro, publicado em 1894, mas então o velho dialético já estava no limiar da morte e incapaz para prosseguir a investigação marxiana – os textos que deixou, entrementes, documentam como ele acompanhou com vivo interesse os artigos sobre a teoria do valor publicados na imprensa, embora sem tempo disponível para desenvolver uma reflexão própria, posto que uma tarefa maior o esperava: pôr em ordem e publicar aquilo que em parte já era sua própria obra, o volume III de O Capital.

O prefácio de Engels ao livro terceiro, excetuada a parte técnica em que explica a confecção da obra e sua organização, preocupa-se não com os processos básicos do processo de produção e circulação expostos nos volumes primeiro e segundo de O Capital, mas sim com o nó górdio da teoria do valor sobre o qual vários autores já especulavam na imprensa: o problema da transformação dos valores em preço da produção – mais tarde alimentaria uma copiosa literatura econômica até hoje inconclusa. Antes de analisar esse prefácio, é imprescindível expor brevemente como se dá em Marx a formação de um lucro médio do preço de produção.

No livro primeiro, Marx investigara o processo de produção capitalista diretamente, na sua pureza conceitual, mas na vida real ele é complementado pelo processo de circulação que o medeia (objeto do livro segundo). No livro terceiro, considera-se o processo de produção do capital como uma totalidade de cujo movimento se desprendem as suas configurações concretas. Nesse livro, Marx desenvolve a categoria de preço de custo ou custo de produção, igual à soma do capital variável e do capital constante consumidos produtivamente na confecção de uma mercadoria, lucro, lucro médio, taxa de lucro, taxa de juros etc. O preço de custo difere do valor, pois não agrega a mais-valia e o lucro; este, por ser a relação do excedente produzido pela força de trabalho com o montante do capital adiantado pelo capitalista, aparece ao burguês prático não como o que é, ou seja, um excedente de valor da mercadoria sobre o seu preço de custo, mas como o contrário, o excedente do preço de venda sobre um suposto valor intrínseco da mercadoria (que seria seu preço de custo); por isso se obnubila a origem da mais-valia, e esta é erroneamente atribuída à circulação. Engels notou muito bem a aporia em que tinha se metido a economia política nesta explicação:

“Mas a mais-valia não pode tampouco nascer do fato de que os vendedores vendem as mercadorias acima de seu valor ou de que os compradores as compram abaixo de seu valor, porque cada um é, por sua vez, ora comprador, ora vendedor, e isto se equilibra de novo. Tampouco pode provir do fato de que os compradores e vendedores tiram proveito uns dos outros, pois isso não criaria nenhum valor novo, ou mais-valia, mas apenas repartiria de outro modo o capital existente entre os capitalistas” (16).

Assim como no processo produtivo o operário, fator subjetivo que gera mais-valia, produz continuamente o capital como potência alheia e é visto como “empregado” pela mesma, numa relação de coisificação das pessoas e de personificação das coisas, ocorre o mesmo processo com a atribuição da mais-valia a um excedente sobre o preço de custo, obtido na circulação; é apenas o desdobramento da inversão que se dá no processo produtivo, em que as forças subjetivas do trabalho aparecem como força produtiva do capital, a medida em que o trabalho passado e objetivado domina o trabalho vivo e é personificado no capitalista, enquanto o trabalhador aparece como mercadoria, como coisa. Daí se origina uma consciência ideológica, “transposta”, “às avessas” (Marx).

Mas os busílis de investigação marxiana no livro terceiro não reside nessa problemática, como bem notara Engels no aludido prefácio, e sim no problema da transformação do valor em preço de produção (PP). Isso porque as categorias abstratas atinentes ao capital em geral só se fazem valer para o movimenro geral dos diversos capitais existentes mediante a concorrência (17); também a lei de valor, que define uma mercadoria a partir do quantum de trabalho bjetivado nela, exige a mediação da concorrência e da equalização da taxa geral de lucro.

Nos volumes primeiro e segundo de O Capital, os preços de mercadoria equivalem aos seus respectivos valores, somente no capitulo IX do volume III emerge a categoria do preço de produção e se explicita como a lei do valor se faz valer através dos desvios de preços em relação aos valores, devido a uma distribuição proporcional da mais-valia social. O que antes era um pressuposto (consciência entre valor e preço) torna-se uma exceção na realidade concreta. Vejamos o exemplo de Marx (18).

Suponhamos o seguinte capital (seja L’ a taxa de lucro e K o capital consumido produtivamente, soma do desgaste do capital fixo e do valor da matéria-prima e da força de trabalho envolvidas na produção; PP o preço de produção, V o valor, v o capital variável, c o capital constante, M a mais-valia, C o capital total, PC o preço de custo) com taxa de mais-valia (m') de 100% (m'=M/v):

Tabela (p. 72)

O que Marx faz aqui é considerar os cinco capitais como um único capital I-V (soma de todos eles): 390c+110v = 500 ou, percentualmente, 78%c+22%v = 100% (como m’ = 100%, M =110 ou 22). Dividindo-se a mais-valia de 22 por cada um dos cinco capitais equitativamente, ter-se-ia, por exemplo, para um capital I (que só receberia 20, pois só tem 20v, logo teria apenas 20M de acordo com m’=100%) um desvio de mais de +2 no preço de produção a fim de que fique enquadrado na média, e assim sucessivamente – essas 22 unidades de capital são o lucro médio.

O preço de produção de uma mercadoria é sempre igual ao seu preço de custo mais o lucro médio de 22% no exemplo citado – desprezando-se os gastos improdutivos da sociedade com o capital comercial. O seu pressuposto é imediatamente uma taxa geral de lucros, obtida por vários outros níveis de mediação que partem das diversas taxas particulares de lucro até as determinações conceituais mais básicas dos capitais em geral: “Sem esse desenvolvimento, a taxa geral de lucro (e também o preço da produção de mercadoria) permanece uma concepção sem sentido e irracional” (19).

Obviamente, influenciaram o lucro obtido pelo capitalista circunstâncias anormais de concorrência, como o monopólio, o dumping, a introdução pioneira de maquinaria mais avançada, e por fim as condições de rotação – como acentua Engels, no capitulo por ele preparado para O Capital, o incremento de velocidade de rotação e do capital variável, e portanto o número de rotação num ano, aumenta a taxa de mais-valia (20).

Os agentes práticos da produção capitalista não percebem que as suas ações microeconômicas racionais do seu ponto de vista, e que visam a rebaixar os custos e aumentar o lucro, podem ser irracionais do ponto de vista macroeconômico, pois diminuem a taxa de lucro; eles não percebem que não recebem o quantum de mais-valia gerado em sua empresa senão excepcionalmente, mas sim uma quantia do lucro global produzido pelo capital social global, proporcional ao volume de cada capital investido – o lucro particular é sempre mediado pela exploração do trabalho social pelo capital de toda a sociedade e os desvios dos preços acima ou abaixo do valor das mercadorias é que garantem essa repartição equitativa da mais-valia social via concorrência, pois no momento em que o capital numa esfera aufere superlucros, logo outros para lá migram e reequilibram o sistema. Como as oscilações dos preços em relação aos valores se compensam mutuamente no nível macro, a soma dos valores equivale à soma dos preços. No exemplo citado, bastaria somar os números da coluna “desvio” para verificar que o resultado será nulo, de modo que no capital global I-V não há desvio de seu valor em relação ao preço. Note-se que a determinação do lucro adicionado ao preço de custo da mercadoria é exógena à esfera em que a mesma é produzida, o que reforça a ilusão de que se trata de uma determinação arbitrária, originada da circulação e em contradição com a lei de valor.

Esse problema seria mais visível num terreno em que o capital ainda se baseasse primordialmente em recursos naturais e satisfizesse amplamente, ao lado da demanda de matérias-primas industriais, o consumo produtivo da classe trabalhadora: a agricultura capitalista. Quando Marx estuda a renda diferencial da terra, ele pressupõe inicialmente um equilíbrio de oferta e demanda, de tal forma que o preço de produção que regula o mercado é sempre o do pior solo cultivado. Assim, por exemplo, um capital igual a 50 xelins de adiantamento (c + V) e 10 xelins de lucro médio (L’ = 20%) em quatro tipos de solo com recursos naturais diferentes (produtividade diversa) para a produção de trigo (21).

Tabela (p. 73)

A progressão de D para A, do solo melhor para o pior, pode ser assim descrita: se a demanda inicial fosse de 4 quaters de trigo, apenas A estaria produzido a um preço de 15 xelins reais por quarter, obtendo uma taxa de lucro de 20% e um lucro de 10 xelins (15 xelins x quarters = 60 xelins, ou 50 de adiantamento mais um lucro de 10). Suponhamos que a demanda global crescesse de forma que fosse necessário aumentar a oferta, então o cultivo do solo C seria rentável, desde que o preço subisse para 20 xelins por quarter (20 x 3 = 60); entretanto, D passaria a vender por 20 x 4 = 80, obtendo assim um lucro de 10 em relação aos 50 que investiu, mais uma renda diferencial (22) de 20. Se agora a demanda crescesse de tal modo que fosse necessário aumentar a oferta de trigo, tornando-se rentável cultivar o solo B, logo o preço teria que subir 30 xelins por quarter (30 x 2 = 60), mas então o lucro de A seria de 10 mais uma renda diferencial de 60 (30 x 4 = 120) e o de C seria de 10 mais uma renda diferencial de 30 (30 x 3 = 90); por fim, se a demanda crescente exigisse o cultivo do solo A, a situação seria descrita na tabela acima. Note-se que o crescimento da demanda em equilíbrio com o crescimento da oferta eleva o preço de produção.

Obviamente o caso da produção industrial é o aumento da produtividade com intensificação de capital fixo, mas pensemos no caso em que a produtividade do trabalho envolvido no cultivo da terra aumentasse e ainda com uma progressão inversa à do caso anterior (A para D). Por exemplo, A passaria a produzir 2 quarters de trigo, B passaria a 4, C a 7 e D a 10. Suponhamos que o aumento populacional tivesse equilibrado a subida da oferta; logo o preço de produção teria caído para 30 xelins por quarter (caso do solo A):

Tabela (p. 73)

Tais relações numéricas são evidentemente arbitrárias, como diz o próprio Marx. O fundamental que se quer mostrar aqui é que o aumento de produtividade em geral dos capitais A, B, C e D baixou o preço de produção de acordo com o pior solo; este, numa situação de equilíbrio, é sempre o verdadeiro regulador de preço e nunca o melhor solo, aumento de produtividade somente em D, acompanhado de correspondente aumento da demanda, não reduz o preço da produção, que continua a ser regulado pela produtividade do pior solo, se se cultivar um solo ainda melhor que D, mas a demanda crescer proporcionalmente ao aumento da produção nada se altera, apenas o solo E aufere uma renda diferencial maior que D. As coisas só se modificam à medida que o aumento geral de produtividade ou a descoberta de um novo solo mais fértil emerge sem o crescimento do mercado, então o solo A deixa de ser cultivado e o preço de produção passa a ser regulado por B – também caso B, C e D passassem a produzir além da demanda.

Isso demonstra a real articulação da lei do valor com os preços de produção numa situação de equilíbrio entre demanda e oferta, além do fato de que as alterações duradouras dos preços de produção resultam de alterações no valor das mercadorias, e não de oscilações eventuais entre a oferta e a procura em situação de desequilíbrio, embora as aparências sejam outras. Entretanto. É fundamental que a concorrência seja a mediadora da lei do valor: o simples aumento da produtividade no melhor solo específico não implica necessariamente mudanças no preço de produção: é preciso que, na concorrência, seja destruído o capital investido no pior solo, desde que a demanda não tenha aumentado. Caso essa demanda tenha crescido, o que ocorre é que o preço de produção se mantém inalterado, e o capital investido no solo com melhorias de cultivo obtém uma renda diferencial maior, o que constitui o seu estímulo para aumentar a produção. Daí se percebe o fato de que, historicamente, os preços flutuem em torno de um eixo, o preço de produção.

A primeira tentativa séria de se resolver a questão de como se pode formar uma taxa média de lucro sem infringir a lei do valor foi a de Conrad Schmidt, com o seu livro A taxa média de lucro com base na lei de valor de Marx, publicado em Stuttgart em 1889. Schmidt chegara por vias próprias e sem conhecer os manuscritos de Marx (e nisso consiste seu mérito pessoal) à idéia de que cabia a cada unidade de capital uma parcela da mais-valia social igual à soma de todas as mais-valias produzidas dividida pela soma dos capitais empregados na produção. Contudo, próximo de demonstração de uma solução, Schmidt esquivou-se por um desvio ao incorporar como fator co-determinante o trabalho acumulado como formador de valor. Como diz Engels:

“A construção é extremamente engenhosa, bem de acordo com o modelo hegeliano, mas ela compartilha com a maioria das construções hegelianas a circunstância de não estar certa” (23).
Depois de Schmidt, foi a vez de P. Fireman enfrentar o problema:

“Simplesmente porque em todos os ramos da produção onde a relação entre […] capital constante e capital variável é máxima” [Fireman se refere à alta composição orgânica do capital; compara-se com os capitais IV e V do exemplo de Marx], “as mercadorias são vendidas acima de seu valor, o que também quer dizer que, naqueles ramos da produção em que a relação entre capital constante : capital variável = c : v é mínima” [comparem-se capitais I e III do exemplo de Marx], “as mercadorias são vendidas abaixo de seu valor, e que só onde a relação c : v representa determinada grandeza média as mercadorias são vendidas por seu valor verdadeiro […] Essa incongruência de preços individuais com seus respectivos valores é uma refutação de seu princípio de valor? De modo algum. Pelo fato de que os preços de algumas mercadorias sobem acima do valor à mesma medida que os preços de outras caem abaixo do valor, a soma total dos preços permanece igual à soma total dos valores […] desaparece, ‘em última instância’, a incongruência” (24).

Fireman ainda diz que nas ciências exatas um desvio calculável nunca refuta uma lei. Engels acentua que Fireman colocou “o dedo no ponto decisivo”, mas não desenvolveu nem formalizou matematicamente suas conclusões. Outros mais vulgares, como Loria, Julius Wolf (acadêmicos), este com a arrogância e mesquinhez própria de certos pensadores diletantes, tentaram iludir a problemática mediante expedientes pré-científicos, não valendo a pena repeti-los. Já o médico norte-americano George B. Stiebeling lançou um livro em Nova Iorque intitulado A Lei do Valor e a taxa de lucro, onde, através de um cálculo matemático simples, pretendeu resolver a questão toda.

Mais tarde (1895), Schmidt e Sombart fizeram excelentes recensões acerca do terceiro volume, reconhecendo honra pioneira de Marx em ter realmente solucionado grande parte da problemática da transformação do valor em preço de produção. Mas ambos fizeram ressalvas formais à lei do valor, denominando-a “hipótese científica”, uma “ficção teoricamente necessária”. No seu Suplemento ao livro terceiro de O Capital, Engels comenta o equívoco desse pensamento:

“Tanto Sombard como Schmidt […] não consideram suficientemente a circunstância de se tratar aí não de só um processo puramente lógico, mas também de um processo histórico e seu reflexo explicativo no pensamento, a persecução lógica de sua coesão interna” (25).

Uma vez exposto o cerne da problemática da teoria do valor, cumpre considerar que Engels, no momento exato da publicação do terceiro volume de O Capital (1894), teve o mérito de perceber qual era o punctun saliens (ponto principal da questão), o estrangulamento da teoria marxista, invariavelmente olvidado pelo longo período em que o marxismo se deslocou do estudo da economia e da política para objetos mais caros à reflexão acadêmica e sem vinculação direta com o movimento operário. Como não tinha comprado com um diploma o direito de filosofar (para reproduzir uma expressão de sua juventude), Engels conhecia os limites e as constrições da produção intelectual acadêmica, comprovando que o lugar da teoria marxista não é preferencialmente nos bancos universitários, mas no movimento real dos trabalhadores.

* Membro da Coordenação do Núcleo de Estudos de O Capital, do PT de São Paulo, e da editoria da revista Práxis.

Notas

(1) LÊNIN, V. I. “Frederico Engels”, in Marx. K. e Engels, F. Obras escogidas, Moscou: Progresso, 1983, p. 17.
(2) ENGELS, F. Anti-Dühring, Rio: Paz e Terra, 1990. Primeira edição alemã, 1878.
(3) Vide: Id: Escritos de juventud. México, Fondo de cultura econômica, 1891.
(4) Feargus Edward O’Connor (1794-1855), defensor da câmara britânica da emancipação irlandesa, evoluiu para a defesa dos interesses da classe operária. O cartismo foi o mais importante movimento operário do século XIX, defensor da carta do povo, publicada em 1838 como projeto de lei que instituía o sufrágio universal para os homens acima de 21 anos, voto secreto, remuneração, dos deputados (para que os operários pudessem se candidatar), elegibilidade de não proprietários, distritos eleitorais iguais e eleições anuais. A People’s charter foi rechaçada pelo parlamento inglês.
(5) ENGELS, F. Escritos da juventude, op. cit., p. 755.
(6) Ibid, ibidem, p. 171.
(7) MALTHUS, T. R. “Ensaio sobre a população”, in MALTHUS, T. R. e RICARDOo, D. Princípios da economia política e outros escritos, São Paulo, Nova Cultural, 1986, p. 282 (coleção Os economistas), primeira edição em inglês, 1798.
(8) ENGELS. F. Escritos da Juventude. Op. cit, p. 178.
(9) Ibid, ibidem, p. 175.
(10) MARX, K. O Capital, São Paulo, Abril Cultural, 1983-85, v. II, p. 233 (sobre o socialismo e planejamento, vide também t. 1, p. 120; v. III, t. 1, p. 137, 144, 193 e 196). Esta frase é praticamente a reprodução de uma idéia exposta por Engels, pioneiramente, no seu esboço genial (Marx) de 1843. Compare-se com uma outra tradução: “A comunidade terá de calcular aquilo que pode fabricar com os meios de que dispõe e, segundo a relação dessa força produtiva, a massa dos consumidores terá que determinar em que medida deve aumentar ou reduzir a produção, em que medida deve sacrificar-se ao luxo ou limitá-lo”. ENGELS, F. “Esboço de uma crítica da economia política”. In Temas de ciências humanas, São Paulo, Ciências Humanas, 1979, p. 20 (vide também 19). Há outras passagens em que Marx cita diretamente o esboço de Engels, para corroborar outras afirmações (por exemplo, v. I, t. 1, p.73 e 137), mas nada é mais interessante do que a relação inconscientemente estabelecida entre as duas obras.
(11) LÊNIN, V. I., op. cit., p. 15.
(12) MARX, K. Contribuição à crítica da economia política, tradução de Florestan Fernandes. São Paulo, Flama, 1946, p. 32.
(13) MARX, K. e ENGELS, F. Obras escolhidas, Lisboa: Avante, 1983, p. 159-166.
(14) Ibid, ibidem, p. 485.
(15) Cf. MARX, K. O capital, op, cit., v. I, t. 1, p.18-19.
(16) MARX, K. e ENGELS, F. Obras escolhidas. Op. cit., p. 161.
(17) Vide MARX, K. O Capital. Op. cit., v. III, t. I, p. 65, 83, 85, 86, 90, 123, 140, 159, 160 etc.
(18) Ibid, ibidem, p. 123.
(19) Ibid, ibidem, p. 123.
(20) Ibid, ibidem, cap. IV. Para uma compreensão mais detalhada, vide SECCO, L. A formação do conceito de crise em Marx, inédito, 1995.
(21) Cf. MARX, K. O Capital, op. cit., v. III, t. 2, p. 149-153.
(22) “Ela sempre se origina da diferença entre o preço individual de produção do capital individual, do qual a força natural monopolizada está à disposição, e o preço geral da produção de capital investido na esfera da produção em questão”. Ibid, ibidem, v. III, t. 2, p. 145. Engels já notara precocemente a relação entre a capacidade de rendimento da terra e o “aspecto humano: a concorrência”, embora ainda se prendesse a categorias irracionais, como “valor da terra”. ENGELS, F. “Esboço para a crítica…”, in Temas de ciências humanas, op. cit., p. 14.
(23) Ibid, ibidem, v. III, t. 1, p. 12.
(24) Ibid, ibidem, p 13.
(25) Ibid, ibidem, v. III, t. 2, p. 324-325.

EDIÇÃO 38, AGO/SET/OUT, 1995, PÁGINAS 69, 70, 71, 72, 73, 74