Completa-se este ano um século desde quando desapareceu da cena histórica o grande pensador alemão Friedrich Engels, nascido em Barmen aos 28 de novembro de 1820 e falecido em Londres em 5 de agosto de 1895. Engels, além de filósofo preocupado com as questões político-sociais de seu tempo e, sobretudo, com a emancipação política do proletariado, interessava-se também pelo progresso das ciências naturais daquele período. Na década de 70, Engels passou a se dedicar sistematicamente aos assuntos relacionados com as ciências em geral. Seus estudos só foram interrompidos depois da morte de Karl Marx, em 1883, quando ele se viu na obrigação de preparar os manuscritos deixados pelo amigo, e publicar os tomos subsequentes de O Capital. As grandes transformações por que passou a ciência de meados do século XIX causaram-lhe uma grande impressão, e Engels percebeu que esse desenvolvimento científico significava, do ponto de vista epistemológico, a passagem do mecanicismo para uma visão dialética espontânea no tocante às questões científicas. Ainda que os cientistas não fossem conscientes da importância do método dialético, a dialética passou a ser uma necessidade premente para compreensão e avaliação das novas descobertas.

Três descobertas fundamentais foram consideradas por Engels como de primordial importância. Cronologicamente, a primeira delas foi a descoberta da célula orgânica como unidade fundamental de todos os seres vivos, por Schwann e Schleiden. A segunda foi a lei da conservação de transformação da energia, como coroamento do trabalho de vários pesquisadores, entre aos quais se destacam Mayer, Joule e Helmholtz. Essa lei foi de grande importância para se conseguir uma espécie de unidade de toda a física. Se até então os diversos processos e fenômenos eram explicados atribuindo-se a eles uma força sui generis (força mecânica, força física, força de calor etc) agora, com base na lei de conservação da energia, tudo se passa como manifestação fenomenológica de uma mesma entidade, que se conserva, quantitativamente, em todas as suas modificações qualitativas.

A lei da evolução por meio da solução natural, coroamento dos trabalhos de Darwin, na década de 50 do século passado, foi a terceira descoberta a chamar a atenção de Engels. A teoria de Darwin mostrava em linhas gerais que toda a natureza viva estava sujeita à lei do devir, pondo um fim, desse modo, à idéia de fixidez das espécies e ao criacionismo.

Foi nesse contesto histórico que Engels, dominando os fundamentos do método dialético oriundo do grandioso sistema idealista objetivo de Hegel, apresentou uma visão geral das diversas ciências, classificando-as segundo formas hierárquicas de movimento da matéria, de um ponto de vista materialista.

Em alguns de seus trabalhos e, principalmente, na Dialética da natureza (1), a obra inacabada que só veio a ser publicada em edição póstuma, em 1925, na União Soviética, ele discorre sobre esses assuntos. Segundo Engels, há sempre uma correspondência entre os aspectos lógicos e históricos no desenvolvimento da ciência. Na edição da Dialética da natureza foi inserido, também, um texto de Engels intitulado “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”. Nesse capítulo do livro, Engels aborda questões de relacionamento entre o homem e o meio ambiente. São questões de grande atualidade – por isso, voltarei a falar deles posteriormente.

A natureza como princípio de movimento

A concepção que Engels tinha do movimento teve sua origens na concepção dos primeiros pensadores da Grécia antiga. A primeira grande sistematização aconteceu com Aristóteles e, séculos depois, renasceu com a Naturphilosophie dos alemães. Hegel foi um grande adepto dessa corrente de pensamento. É, de um modo geral, uma postura filosófica que atribui ao conceito de movimento um alcance incomparavelmente maior do que ocorria na mecânica. Nesta, subentende-se por movimento apenas o deslocamento dos corpos no espaço, o chamado movimento local. Segundo a concepção de que estamos falando, num sentido lato, movimento designa toda e qualquer transformação da matéria, incluindo a variedade de fenômenos e processos típicos dos seres vivos e da sociedade.
No capítulo “As formas fundamentais do movimento”, Engels escreveu:

“No sentido mais amplo, o movimento concebido como um modo de existência da matéria, como atributo inerente a esta, envolve todas as transformações e todos os processos que se produzem no universo da simples mudança local até o pensamento”. (p. 57). “A matéria é impossível sem o movimento. E visto que a matéria se nos apresenta como um dado, tão impossível de criar como de destruir, isso implica que o movimento é igualmente tão impossível de criar como de destruir” (p. 58-59).

Todo movimento consiste na ação recíproca de atração e repulsão. Por isso, ele diz não considerar atração e repulsão como força, mas com simples formas de movimento. E que a fórmula fundamental de todo movimento é aproximação ou afastamento, contração ou extensão, ou, resumindo, a velha oposição polar: atração e repulsão. O calor como forma de energia seria, portanto, uma espécie de repulsão, que contribui para diminuir a coesão das moléculas. Se no fenômeno da gravitação há nitidamente uma preponderância da atração sobre a repulsão, nos fenômenos da eletricidade estática e do magnetismo temos uma reparticipação polar da atração e da repulsão, diz Engels.

No capítulo “Medida do Movimento. O trabalho”, há uma longa discussão sobre a polêmica histórica entre Leibniz e os cartesianos no tocante à questão da medida do movimento. Resumindo, Descartes e seus seguidores diziam que a medida do movimento seria mv. Leibniz argumentava que a medida do movimento só poderia ser chamada (força viva) mv2. Essa polêmica durou um século, até que D'Alembert, em seu trabalho Tratado de dinâmica (Paris, 1743), tentou pôr fim à controvérsia por achá-la inútil. Engels considerou o veredito de D'Alembert uma atitude pouco dialética. Engels argumenta que, de fato, o movimento tem dupla medida.

“Se um movimento mecânico já existente for transmitido de tal forma que se conserve enquanto movimento mecânico, transmite-se de acordo com a fórmula do produto da massa pela velocidade. Mas se se transmite de tal forma que desaparece enquanto movimento mecânico, para reaparecer sob a forma de energia potencial, de calor e de eletricidade etc., se, numa palavra, for transformado noutra forma de movimento, a quantidade dessa nova forma de movimento é proporcional ao produto da massa primitivamente posta em movimento pelo quadrado da velocidade. Numa palavra mv é movimento mecânico enquanto movimento mecânico; ½ mv2 é o movimento mecânico medido pela sua faculdade de se transformar numa certa quantidade de uma outra forma de movimento” (p. 89-90).

A classificação das ciências segundo as formas de movimento

Engels estudou os principais ramos da ciência de seu tempo baseando-se num tratamento dialético do questão. As três leis gerais da dialética descobertas por Hegel são estas:

1- Lei da unidade e luta dos contrários;
2- lei da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa;
3- lei da negação da negação.

Engels escreveu:
“Todas as diferenças qualitativas na natureza repousam quer sobre uma constituição química diferente, quer sobre a quantidade ou formas diferentes do movimento (de energia), quer, o que é quase sempre o caso, sobre as duas ao mesmo tempo. É, pois, impossível transformar a qualidade de qualquer corpo sem adição ou subtração de matéria ou de movimento, quer dizer, sem alteração quantitativa do corpo em questão” (p. 50).

Engels inclui nesse caso até mesmo os diferentes estados alotrópicos e de agregação dos corpos: “Mas que dizer da alteração de forma de movimento, ou melhor, da energia? Quando transformamos calor em movimento mecânico ou inversamente, a qualidade é modificada e a quantidade permanece a mesma?”. Exatamente, diz ele. A alteração da forma de movimento é sempre um processo que se efetua pelo menos entre dois corpos, dos quais um perde uma determinada quantidade de movimento da primeira qualidade (calor, por exemplo), enquanto o outro recebe uma quantidade correspondente de movimento de outra qualidade (movimento mecânico, eletricidade, decomposição química).

Quantidade e qualidade correspondem-se de ambos os lados e reciprocamente. Engels apresentou também algumas idéias sobre a relação entre formas de movimento específicos e os diversos ramos da ciência, que lhe são correspondentes, mostrando haver sempre a presença da lei da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa.

“A molécula é qualitativamente diferente da massa do corpo físico de que faz parte. É capaz de realizar movimentos independentemente dessa massa, embora permaneça aparentemente em repouso… A massa é inteiramente constituída por moléculas, mas é algo essencialmente diferente da molécula, como esta última o é, por sua vez, do átomo. É sobre essa diferença que repousa a separação mecânica, ciência das massas celestes e terrestres, da física da mecânica das moléculas, e da química, física dos átomos” (p. 52).

É com essa abordagem conceitual que Engels tentou classificar, em linhas gerais, as diversas ciências existentes naquela época. Segundo Engels, cada uma delas se caracteriza pela forma específica do movimento que lhe diz respeito. Assim, a mecânica – seja ela dos corpos celestes ou mecânica terrestre – ocupa-se em descrever o deslocamento dos corpos no espaço. A física (note-se que Engels não inclui a mecânica) ocupa-se principalmente dos movimentos moleculares, que são movimentos térmicos, magnéticos, e ópticos. Engels fez questão de ressaltar, em outros pontos de seu trabalho:

“(…) quando definimos a física como sendo a mecânica do movimento molecular, essa expressão não abarca o domínio da física atual na sua totalidade” (p. 104) “As vibrações do éter que intervem nos fenômenos da luz e da radiação calórica não são evidentemente movimentos moleculares no sentido atual da palavra”.

Afirma, porém, que seus feitos terrestres dizem respeito às moléculas: a refração e a polarização da luz são determinadas pela estrutura molecular dos corpos considerados. A química, por sua vez, ocupa-se dos movimentos atômicos, expressos nas combinações e dissociações químicas. A biologia seria a química das albuminas, o modo de existência de substâncias protéicas.

Não vamos criticar Engels por não ter incluído o movimento atômico e subatômico no domínio da física. Naquela época a física ainda não havia penetrado no âmago do átomo. Até mesmo a existência ou não de átomos era questão ainda muito controvertida. Nesse caso Engels mostrou ter razão, ao defender a existência do átomo, quando só mais tarde foram obtidas provas conclusivas a respeito. No capítulo “ Sobre a concepção mecanicista da natureza”, p. 268, ele diz:

“Todo movimento inclui movimento mecânico, deslocamento no espaço de partes maiores ou menores da matéria, e a primeira tarefa da ciência, mas apenas a sua primeira tarefa, consiste em reconhecer esse movimento. Mas esse movimento mecânico não esgota, de modo algum, o movimento em geral: é também, nos domínios supramecânicos, mudança de qualidade”.

É de suma importância o fato de Engels considerar cada forma superior de movimento como sendo irredutível às formas inferiores. Ele rejeita, assim, uma concepção reducionista de estilo positivista. Ao mesmo tempo, as formas superiores de movimento não são totalmente independentes de suas formas inferiores. Kedrov (2) comenta que, para Engels, uma classificação das ciências baseada nas formas de movimento da matéria pressupõe um princípio de subordinação das ciências entre si, ao contrário da classificação de Augusto Comte (1798-1857) que, embora tendo alguma semelhança com a de Engels, baseava-se num princípio de coordenação das diversas ciências entre si.

Relações entre o homem e a natureza

Engels mostrou-se um pensador preocupado com as mais diversas questões sociais, econômicas e políticas. Neste contexto, não poderia deixar de se interessar pela problemática do homem como parte integrante da natureza. Engels escreveu sobre o assunto que só um século mais tarde viria a se tornar corriqueiro: o problema ecológico.

Na época de Engels, a degradação do meio ambiente ainda não era de expressão universal. No decorrer da primeira revolução industrial, o uso do carvão em larga escala, como principal combustível, deve ter provocado um aumento considerável dos níveis de poluição. Entretanto, seus efeitos nefastos ficavam confinados a áreas mais ou menos restritas do planeta, ao contrário do que hoje presenciamos, quando os efeitos nocivos da degradação ambiental alcançaram uma escala global.
Engels citou uma série de exemplos das consequências da ação indiscriminada do homem sobre a natureza: na Mesopotâmia, terras outrora férteis tornaram-se mais tarde desérticas, devido ao desmatamento; nas regiões montanhosas da Grécia, as cabras conseguiram modificar radicalmente a paisagem vegetal, devorando as plantas nativas; no Norte da Itália, a destruição dos bosques de pinheiros das encostas dos Alpes contribuiu para o desaparecimento dos lençóis subterrâneos de água e para a erosão do solo. Engels ressaltou que até então, em geral, a atividade humana só visava a fins imediatos, esquecendo-se de levar em conta as consequências futuras. Citava, inclusive, o exemplo do desdobramento da América, que levou à introdução da batata como fonte de alimentação principal das populações européias, especialmente dos trabalhadores; a doença das batatas e, consequentemente, a morte de 1 milhão de irlandeses; a emigração forçada de outros tantos para além mar, em busca de sobrevivência na América. Trata-se de uma cadeia de causas e efeitos que os homens de épocas passadas não podiam prever. O homem não pode se apropriar da natureza como um conquistador estrangeiro, porque ele também é, em última instância, parte dela. A cada pretensa vitória do homem sobre a natureza, ela responde como que vingando-se dele, fazendo-o ver que não é um ser alheio a ela.

Engels preconizava o surgimento de um novo modo de produção e, concomitantemente, de uma nova sociedade capaz de superar a alienação e a dicotomia entre o homem e a natureza e de restabelecer a harmonia entre os interesses das pessoas, os interesses da coletividade e a preservação do meio ambiente. O capitalismo, como sistema econômico que visa ao lucro acima de tudo, é incapaz de realizar isso. Só o socialismo pode dar os primeiros passos nesse sentido. E o comunismo, como etapa superior da sociedade socialista – uma sociedade sem classe antagônicas –, seria a realização dos anseios seculares da humanidade, a superação da alienação entre homem e natureza.

Mais de um século já se passou desde que Engels escreveu sobre o assunto, e o novo sistema em substituição ao sistema mundial produtor de mercadorias, malgrado as esperanças deixadas pela Revolução de Outubro, ainda não se estabeleceu. Os efeitos nocivos da atividade humana alienada, longe de diminuírem, são cada vez maiores. A agressão do homem à natureza apresenta, hoje, um aspecto assustador.

Há grupos sociais interessados em mudar esse estado de coisas. Mas os resultados positivos são ainda pequenos. É preciso que surja uma nova mentalidade, uma nova abordagem das relações entre o homem e a natureza. Mas, para isso, é preciso o estabelecimento de um novo regime político-social, o surgimento de uma nova formação econômica, onde o lucro não seja mais o leitmotiv, onde os interesses das pessoas e da coletividade falem mais alto. Afinal, somos parte integrante da natureza. Em um momento da história da natureza, começa a história da humanidade. Depois disso, ambas são inseparáveis.

* Professor do Departamento de Física e Química da UNESP, Guaratinguetá, SP.

Notas

(1) ENGELS, Friedrich. Dialética da natureza. Lisboa: Editorial Presença, 1974.
(2) KEDROV, B. M. Klassfizierung der wissenchaften, v. 1. Moscou: Verlag Progress, 1975.

EDIÇÃO 38, AGO/SET/OUT, 1995, PÁGINAS 75, 76, 77, 78