Novas possibilidades de debate sobre o marxismo e o Estado
Os leitores da revista Princípios já conhecem o trabalho de Décio Saes. A edição de maio/junho/julho de 1991 (n. 21) publicou o sétimo ensaio desta coletânea, dedicado às questões da democracia e do socialismo. Agora, republicamos outro ensaio do livro – o que trata da democracia burguesa. Mas o primeiro volume da coleção Trajetória do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, reunindo outros cinco ensaios, permite uma visão mais abrangente do pensamento do autor, abarcando um período que vai de 1978 a 1993.
Sem fazer concessões de rigor teórico (o que não se confunde com “teoricismo”), alguns ensaios do livro servem de exemplo de como os cientistas políticos podem intervir no debate de conjuntura sem abandonarem sua específica análise teórica.
Os dois exemplos mais evidentes desse tipo de intervenção talvez sejam os trabalhos sobre Monarquia e sobre Parlamentarismo e presidencialismo, ambos escritos no período que antecedeu o plebiscito de abril de 1993.
Décio Saes critica o emprego dos termos Monarquia (e República) para designar tipos de Estado ou formas de Estado, propondo-se a desvendar a articulação da “Monarquia” com a estrutura do Estado burguês e a sua função política. Sugerindo uma definição de forma de governo como “modos específicos de investidura do chefe do Estado” (124), o autor estabelece uma analogia – que mereceria maior desenvolvimento – entre a “relação ideológica de fidelidade do ‘povo’ ao Monarca” e a relação de dependência dos camponeses para com o senhor no feudalismo (128). Essa relação produziria efeitos ideológicos próprios (através da articulação da consciência do súdito com a consciência de cidadania), que contribuem para estimular a apatia política e dificultar a mobilização popular, “ao implicar a submissão pessoal dos membros do ‘povo’ ao Monarca” (134). Por isso, a Monarquia nada tem de “disfuncional” para o Estado burguês: seu funcionamento é favorável à conservação deste.
O texto sobre Presidencialismo começa com o questionamento sobre os termos “governabilidade” e “estabilidade” políticas, ainda hoje predominantes no debate brasileiro. Evitando esses critérios – pois “governabilidade” e ”estabilidade” garantem a dominação política capitalista (142) – e seguindo, portanto, um caminho diverso daquele de Aldo Arantes na Princípios n. 37, Décio Saes se pergunta qual dos dois sistemas de governo garante mais espaço para politização da massas populares (143), favorecendo a emergência de crises de governo “positivas” (para as classes dominadas, 147). Sua opção é pelo Parlamentarismo, menos sujeitos a golpes de Estado (148), e que valoriza mais a “instância partidária em detrimento das lideranças individuais” (147). Já o Presidencialismo contribui mais para ocultar o poder da burocracia de Estado ofuscado pela figura de um indivíduo (o presidente), o que induz à “esperança infundada de que transformações sociais profundas ocorram através da ação individual de um membro extraburocrático do aparelho do Estado burguês” (144). Passados o impeachment de Collor e o plebiscito de abril de 1993, a eleição de Fernando Henrique Cardoso parece confirmar uma das teses do texto: o presidencialismo personaliza a ação política das lideranças partidárias, ocultando o seu “conteúdo econômico-social” (145)… Afinal, os dois Fernandos, a despeito de traços psicológicos diferentes, defendem o mesmo programa.
A partir desses comentários sumários, talvez seja possível avançar na apreciação do conjunto de ensaio: o autor consegue conciliar rigor teórico com uma clara tomada de posição na perspectiva das classes dominadas e do movimento operário.
O ensaio “Socialismo e democracia”, já citado, insere-se nesse contexto. Embora a editoria da revista Princípios tenha errado ao alterar seu título à revelia do autor (11), o texto oferece uma análise que ajuda o leitor a reconhecer a superioridade da democracia socialista. Interessado em debater com a esquerda marxista, o autor acentua a importância de extrair “todas as lições políticas possíveis da observação do passado” (181). Mas o ensaio vai além, propondo elementos para a construção de um conceito de democracia proletária e de Estado proletário, tendo como centro a postulação do desaparecimento do Estado como meta fundamental, através da destruição do burocratismo, simplificação das tarefas estatais e sua contínua transferência para o conjunto de trabalhadores.
Entre os vários pontos do texto que merecem o mais amplo debate, destacaria brevemente alguns:
1- Ao propor o “mínimo denominador comum do programa socialista proletário” calcado na “socialização efetiva dos meios de produção”, “construção de uma sociedade sem classes”, “ataque à divisão capitalista do trabalho”, “desestatização crescente das práticas administrativas” (188), o autor não acaba apresentando um “programa máximo”, já que de sua realização resulta o comunismo?
2- Ao formular – de forma bastante original e interessante – a vigência de um “pluripartidarismo limitado” no socialismo, admitindo a emergência de um “sistema de partido dominante” (188-189), Décio Saes desqualifica sumariamente a defesa de representação política da classe operária por um único partido, a pretexto de não haver “nenhum argumento teórico” que a sustente, sem fazer qualquer referência à bibliografia sobre o assunto.
3- Ao analisar as liberdades políticas do socialismo, o autor reconhece apenas reticência (ou hostilidade) de parte das classes populares ao projeto socialista – podendo elas, entretanto, ser conquistadas pelos resultados da construção socialista (190) –, mas desconhece a resistência das antigas classes exploradoras.
4- A interessante sugestão de substituição, na organização interna do aparelho do Estado, “do critério burocrático-capitalista da competência administrativa […] pelo critério democrático-socialista da representatividade política” (192) mereceria maior análise.
Ao recuperar as formulações do filósofo francês Etienne Balibar sobre o processo de desestatização socialista, Décio Saes sugere, implicitamente, um amplo trabalho de pesquisa a ser realizado: o de buscar nas primeiras experiências socialistas (União Soviética, China, Albânia) as manifestações concretas de transferência de atividades estatais para as massas trabalhadoras.
Também o ensaio “A democracia burguesa e a luta proletária” é um exemplo de contribuição na polêmica teórica – sem intenção acadêmica (152) –, calcado em preocupações com as posições da oposição operária e popular na luta contra o regime militar.
Porém o aspecto principal dos sete ensaios reunidos na Coleção Trajetória 1 é o de demonstrar as possibilidades de desenvolvimento da teoria marxista do Estado, particularmente na análise do Estado burguês.
Norberto Bobbio, por exemplo, atribui ao marxismo uma “concepção negativa do Estado”, o que prejudicaria enormemente o desenvolvimento de aspectos importantes de uma teoria do Estado. Assim, o estudo sobre as formas de governo estaria praticamente inviabilizado (Ver Norberto Bobbio, A teoria das formas de governo, UnB, capítulos V e XIII). Ora, ainda que Décio Saes não tenha como objetivo fornecer conceitos acabados – e menos ainda uma teoria – sobre forma de governo e sistema de governo, o autor apresenta, nos ensaios sobre Monarquia e sobre Parlamentarismo e Presidencialismo, resultados consideráveis sobre as possibilidades de uma tal empreitada.
Mas o principal ensaio do livro é “O conceito de Estado Burguês”, que mereceria, por si só, um comentário à parte, em que se procurasse discutir o emprego que o autor faz das formulações do cientista político grego-francês Nicos Poulantzas, e também de Marx Weber sobre a burocracia. Destacaria, resumidamente, duas questões que talvez fossem de maior interesse para os leitores da revista Princípios.
A recuperação da problemática marxiana da correspondência entre tipos diferentes de relações de produção e de Estado (16-18) oferece instrumentos de análise não só para o estudo do Estado burguês, mas também para investigação de outro tipo de Estado. Ou seja, a caracterização última do Estado proletário e socialista não deve ser buscada nos discursos oficiais dos dirigentes do partido, mas na definição do tipo de relação de produção dominante na formação social em questão. Exemplos interessantes de análise das relações de produção em sociedades pós-revolucionárias podem ser encontrados em Charles Bettelheim, As comunas populares; no laudatório Revolução Cultural e organização industrial na China; e, ainda, em Miklós Haraszti, Solaire aux pieces, ouvrier dans un pays de l’Est.
Na análise de estrutura jurídico-política do Estado burguês, caracterizada pela presença do direito burguês, do burocratismo e da representação popular, Décio Saes retrabalha elementos fornecidos pelo livro de Poulantzas, O poder político e as classes sociais (principal livro do autor, lamentavelmente não-analisado no artigo de Luís Fernandes da revista Princípios n. 21, O comunismo e o Estado). Essa análise talvez forneça os principais argumentos críticos na discussão com a teoria liberal de Estado, especialmente a tão difundida “teoria dos três poderes”, pois desvenda o papel central da burocracia na definição e implementação da política do Estado, elevada pelo autor à condição de “Centro de poder”, nos ensaios sobre sistema de governo democracia socialista (144, 187).
Mais dois ensaios completam a coletânea. Em Do Marx de 1843-1844 ao Marx das Obras Históricas: duas concepções distintas de Estado, o autor demonstra com êxito a existência de duas concepções antagônicas de Estado no seio da obra do próprio Marx. Em “Coronelismo e Estado burguês: elementos para uma reinterpretação”, Décio Saes revela a funcionalidade desse fenômeno político ainda hoje presente no Brasil para o Estado burguês, contribuindo para desorganizar as classes dominadas e unificar a classe dominante.
Sem ter sido lançado por uma grande editora e sem contar com espaço da mídia, Estado e Democracia: ensaios teóricos é um convite aos ativistas, militantes políticos e estudiosos que buscam originalidade na análise marxista do Estado.