A publicação do livro Pós-neoliberalismo – as políticas sociais e o Estado democrático, reunindo intervenções de destacados intelectuais de esquerda sobre a questão do neoliberalismo, constitui uma importante contribuição para o avanço da polêmica em torno desse tema de caráter estratégico, no sentido de aprofundar a compreensão e a crítica sobre a atual etapa do capitalismo em escala mundial e em nosso país (1).

Destacaremos, de início, pontos relevantes, nas intervenções de Perry Anderson, Atílio Boron, Goran Therborn, Pierre Salama, Luís Fernandes, Emir Sader e outros, para, em seguida, apontar nossas críticas sobre o que consideraremos como insuficiências e equívocos nessas análises.
Perry Anderson define como marco teórico dessa nova onda a que se convencionou chamar de “neoliberalismo” o livro do economista austríaco Friedrich A. Hayek, O caminho da servidão (em inglês, The road to serfdom), aparecido na Inglaterra em 1944. Hayek, que havia sido professor da Universidade de Viena, lecionava, nessa época, na London School of Economics e, em seu livro, segundo Anderson, fez “um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciada como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política”. Para Anderson, “o alvo imediato de Hayek, naquele momento, era o Partido Trabalhista inglês, às vésperas da eleição geral de 1945 na Inglaterra, que esse partido efetivamente venceria”.

Hayek tornou-se, mais tarde, professor da Universidade de Chicago, a mesma de Milton Friedman, outro destacado expoente da corrente neoliberal, tendo ambos sido agraciados com o Prêmio Nobel de Economia. Anderson observa que as teses de Hayek permaneceram no terreno das idéias até a chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, a partir de 1973, quando, pela primeira vez, em quase todo o mundo capitalista combinaram-se baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação. Nessa situação, as idéias neoliberais começaram a ganhar terreno. “As raízes da crise”, afirmavam Hayek e seus companheiros, “estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as bases da acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais”. Como remédio para tais males, segundo Perry Anderson, pregavam a necessidade de um “Estado forte” no sentido de romper o poder dos sindicatos, controlar a expansão monetária, diminuir os gastos sociais e a intervenção estatal na economia de um modo geral.

Cronologicamente, a primeira experiência neoliberal sistemática do mundo foi colocada em prática no Chile do general Pinochet, após o violento golpe militar que derrubou e assassinou o presidente Allende. Como observa Anderson: “O Chile de Pinochet começou seus programas de maneira dura: desregulação, desemprego em massa, repressão sindical, redistribuição de renda em favor dos ricos, privatização de bens públicos” – tudo isso quase um decênio antes da época Thatcher/Reagan, com a ajuda direta dos “Chigaco boys”, um grupo de economistas que havia estudado na Universidade de Chicago e que ocupava postos-chaves no governo Pinochet. (O próprio Milton Friedman era tido como conselheiro econômico do regime militar chileno.) E aqui Anderson chama a atenção para um dos aspectos básicos do neoliberalismo:

“O neoliberalismo chileno, bem entendido, pressupunha a abolição da democracia e a instalação de uma das mais cruéis ditaduras militares do pós-guerra. Mas a democracia em si mesma – como explicava incansavelmente Hayek – jamais havia sido um valor central do neoliberalismo. A liberdade e a democracia, explicava Hayek, podiam facilmente tornar-se incompatíveis se a maioria democrática decidisse interferir com os direitos incondicionais de cada agente econômico de dispor de sua renda e de sua propriedade como quisesse. Por isso, Friedman e Hayek podiam olhar com admiração a experiência chilena, sem nenhuma inconsistência intelectual ou compromisso de seus princípios”.

Mas o Chile era um país da periferia, e o neoliberalismo somente obteve alcance mundial quando, em 1979, na Inglaterra, foi eleito o governo Thatcher, que se empenhou publicamente em pôr em prática um programa neoliberal em um país do centro do capitalismo. Logo em seguida, em 1980, Reagan chega à presidência dos Estados Unidos, e a dupla Reagan/Thatcher jogou, por assim dizer, um papel fundamental na expansão da política neoliberal e na conformação da “nova ordem mundial” que o neoliberalismo hoje expressa. Perry Anderson pergunta o que esses governos neoliberais fizeram na prática. Segundo ele, o “modelo inglês” foi o pioneiro e o mais puro (no âmbito dos países capitalistas avançados).

“Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego enormes, sufocaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente – essa foi uma medida surpreendentemente tardia – lançaram-se num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado”.

Para Anderson, a variante norte-americana foi bem distinta, mesmo porque, nos Estados Unidos não existia um “Estado de bem-estar” do tipo europeu (que o governo Thatcher se empenhara em desmontar). Para Reagan, “a prioridade neoliberal era mais a competição militar com a União Soviética, concebida como uma estratégia para quebrar a economia soviética e, por essa via, derrubar o regime comunista na Rússia”. Com a vitória da guerra fria pelos Estados Unidos e a queda dos regimes do Leste Europeu e da União Soviética, no período de 1989 a 1991, o neoliberalismo tomou conta de toda a região e, posteriormente, numa terceira onda, invadiu a América Latina de maneira generalizada, com a eleição de Salinas no México (1988), Menem na Argentina (1989), Carlos Andres Perez na Venezuela (1989) e Fujimori no Peru (1990). (Complementando Perry Anderson, poderíamos adicionar a eleição de Collor em 1990, e de Fernando Henrique em 1994, no Brasil).

“O peso das operações puramente parasitárias teve um incremento vertiginoso nesses anos”

Analisando os resultados do neoliberalismo, do ponto de vista econômico, nos países do Ocidente, Perry Anderson destaca que seus maiores êxitos foram a queda da taxa de inflação e a recuperação da taxa de lucro. Segundo ele, “se, nos anos 1970, a taxa de lucro das indústrias nos países da OCDE caiu em cerca de 4,2, nos anos 1980 aumentou 4,7. Essa recuperação foi ainda mais impressionante na Europa Ocidental como um todo, de 5,4 pontos negativos para 5,3 pontos positivos”. Em contrapartida, “a taxa média de desemprego nos países da OCDE, que havia ficado em torno de 4 nos anos 1970, pelo menos duplicou na década de 1980”. (Atualmente, nesses países, há cerca de 38 milhões de desempregados.) Ele chama a atenção para um aspecto que me parece fundamental para se compreender quem são os verdadeiros beneficiários de todas essas mudanças, ou seja, afirma que a recuperação dos lucros não levou a um incremento nos investimentos. E pergunta por que, dando sua explicação:

“Essencialmente, pode-se dizer, porque a desregulamentação financeira, que foi um elemento tão importante do programa neoliberal, criou condições muito mais propícias para a inversão especulativa do que produtiva. Durante os anos 80, aconteceu uma verdadeira explosão dos mercados de câmbio internacionais, cujas transações, puramente monetárias, acabaram por diminuir o comércio mundial de mercadorias reais. O peso de operações puramente parasitárias teve um incremento vertiginoso nesses anos”.

De onde se depreende que a beneficiária direta dessa política foi a oligarquia financeira internacional, que estendeu seus tentáculos por todo o Globo, acumulando riquezas num nível sem precedentes.

Maré privatizante marca ruptura clara com estratégias industriais anteriores

Goran Therborn, em sua intervenção principal, segue uma linha muito sinuosa, mas tentaremos apreender os aspectos principais que nos interessam. Dentre as mudanças que teriam ocorrido no desenvolvimento do capitalismo mundial a partir dos anos 1970, ele chama a atenção para a “introdução de novas modalidades de produção graças ao desenvolvimento de tecnologias mais flexíveis”, citando sobretudo “inovações tecnológicas de manejo eletrônico e computadorizado do processo de produção”. Salienta também o que considera como o aspecto “mais dramático” do novo crescimento do mercado, ou seja, “a expansão absolutamente enorme dos mercados financeiros internacionais, que começou com o déficit público dos Estados Unidos financiando a guerra do Vietnã”.

Dando um exemplo desse fenômeno, Therborn diz: “durante um dia, em Londres, é negociado um montante de divisas correspondente ao PIB mexicano de um ano inteiro”. E agrega: “se considerarmos todos os mercados internacionais de moedas, divisas, ações etc., vemos que esses têm uma dimensão 19 vezes maior do que todo o comércio mundial de mercadorias e serviços”. Sua conclusão, após analisar todas essas transformações, é a de que hoje nos encontramos “diante de limites precisos tanto por parte do capitalismo reformado, no sentido keynesiano, quanto do socialismo clássico”. O marxismo teria se reconfirmado como instrumento analítico, mas “desenvolveu poucos guias estratégicos para os desafios que devemos enfrentar na atualidade”.

Para Pierre Salama, “o futuro parece bastante obscuro” precisamente porque “a via neoliberal significa uma abertura total, que origina uma brecha comercial bastante importante e fluxos de capitais que transformam os países em experimentos totalmente dependentes do que acontece na bolsa de Nova York”. Assim, por exemplo, “o nível dos salários mexicanos depende hoje diretamente do que acontece no mercado de capitais novaiorquino”. Para ele, “esta é a expressão mais genuína do que significa, na realidade, o neoliberalismo”.

Luís Fernandes, em sua intervenção, indica três características que seriam os pilares fundamentais do neoliberalismo. A primeira é o que chama de “marcha acelerada de reversão das nacionalizações efetuadas no pós-guerra”. Segundo ele, “esta maré privatizante marca uma ruptura muito clara com as estratégias industriais anteriores, que valorizavam as empresas públicas como instrumentos fundamentais para um desenvolvimento econômico soberano”. O segundo pilar do neoliberalismo seria a crescente tendência a desregulamentação das atividades econômicas e sociais pelo Estado, baseada na superioridade da “eficiência do mercado” em relação ao “burocratismo do Estado”.

Finalmente, a terceira característica central do neoliberalismo se expressaria na “tendência a reversão de padrões universais de proteção social estabelecidos com a emergência, em diversos países no pós-guerra, dos Estados de bem-estar social”. Ele chama a atenção para as consequências políticas que o projeto neoliberal acarreta, salientando, em primeiro lugar, que a “viragem econômico-social implementada pelo neoliberalismo vem sendo acompanhada por uma viragem ‘política’ de sentido claramente antidemocrático”. Destaca, também, como o neoliberalismo acarreta um impacto extremamente negativo “sobre a capacidade de os nossos povos comandarem soberanamente o desenvolvimento dos seus próprios países”. Para Luís Fernandes, ao contrário do que ocorre na Europa e nos Estados Unidos, o neoliberalismo se apresenta aqui como inimigo do nacionalismo, destacando que, no Brasil, por exemplo, a direita abandonou a bandeira da “defesa da nação”, deixando-a nas mãos da esquerda, “o que vem provocando surpreendentes rupturas e realinhamentos no âmbito das próprias Forças Armadas, que não encontram mais respaldo político na direita para o seu projeto de conversão do Brasil em ‘potência mundial’”.

Hayek prefere um governo ditatorial com livre mercado a um democrático

Da longa intervenção de Atílio Boron, aproveitaremos igualmente alguns trechos que nos parecem relevantes para a discussão e a crítica do neoliberalismo. Ele aponta uma das enormes vantagens que a ofensiva neoliberal logrou obter para o capital financeiro (e da qual, segundo ele, se fala muito pouco), ou seja, “o pagamento da dívida externa” pelos países da América Latina, que passaram a destinar para esse efeito recursos e propriedades de caráter público antes “intocáveis”. Analisa o papel que organismos como o FMI e o Banco Mundial desempenharam na economia mundial e em que regiões obtiveram menor ou maior sucesso em suas tentativas de intervenção. “Seu poder [do FMI/Banco Mundial] aumentou consideravelmente a partir da década de 80, quando as nações da periferia ou os elos mais fracos do mercado mundial sucumbiram diante do peso combinado da recessão e da crise da dívida. É por isso que a ‘capacidade disciplinadora’ do Banco Mundial e do FMI foi eficaz sobretudo na periferia: na América Latina e na África, muitíssimo menor do que na Ásia, e completamente nula nas economias desenvolvidas”.

Para Boron, essas duas instituições se transformaram num gigantesco thinktank (um centro de especialistas e formuladores) do neoliberalismo.

“Mais de dez mil economistas e umas poucas centenas de cientistas sociais trabalham sob seu manto, reunindo dados e realizando estudos de todo tipo, que logo servem de base para as recomendações e os policy papers de ambas as instituições e, fundamentalmente, para apoiar a pregação neoliberal de seus porta-vozes e cercar com uma aura de autenticidade tecnocrática as pressões que suas autoridades máximas exercem sobre os governos”.

A função ideológica que o FMI e o Banco Mundial visam a cumprir hoje, segundo Boron, resume-se no seguinte:

“a) converter ao neoliberalismo no seu senso comum não já de uma época, mas de toda a humanidade, fora do qual só existe a loucura, o erro ou o mais obcecado dogmatismo, com o qual se coloca em mãos das classes dominantes uma poderosíssima ferramenta de controle político e social; b) converter o capitalismo na culminação da história humana, a ‘última’ e mais elevada forma de organização econômica e social jamais conhecida na história”.

Atílio Boron desmistifica a propaganda neoliberal dessas instituições na América Latina, sobretudo em torno do chamado “milagre chileno”. Segundo ele, “conviria recordar que o crescimento do produto bruto nacional per capita do Chile entre 1980 e 1990 foi de 2,9, isto é, um terço da taxa de crescimento que a China registra anualmente ao longo dessa década e cerca da metade da que tiveram Coréia do Sul, Taiwan, Tailândia, Hong Kong e Cingapura”. Boron chama a atenção para o fato de que “nenhum desses países, cuja performance econômica foi incomparavelmente superior à de qualquer outro da América Latina – incluindo naturalmente o Chile, o México antes do colapso de dezembro de 1994 e a própria Argentina –, aplicou minimamente as recomendações de modelo neoliberal”. E, repetindo observações feitas anteriormente, lembra que o “capitalismo selvagem” que resulta da receita neoliberal tem “afinidades eletivas” com “as formas mais primitivas e despóticas do poder burguês”. Segundo ele, “a lealdade fundamental da nova ortodoxia econômica – e da grande burguesia transnacional que a exibe como sua bandeira – não está depositada na democracia, mas no capitalismo”. Diz Boron: “Tal como o próprio Friedrich von Hayek declarou na célebre entrevista que concedeu ao matutino conservador chileno El Mercurio, se tivesse que escolher entre uma economia de livre mercado com um governo ditatorial ou uma economia com controles e regulações mas com um Estado democrático, escolheria sem dúvida o primeiro”.

“Estamos diante de um capitalismo que reforçou as suas estruturas e práticas oligopólicas”

De certa forma, o que impressiona nas intervenções e nos debates contidos no livro

Pós-neoliberalismo – as políticas sociais e o Estado democrático é a riqueza de observações e de citações de dados relevantes e importantes, combinada com a pobreza e a timidez no momento de definir conceitos e tirar conclusões. Numa das partes mais importantes do livro, após a sucessão de intervenções dos participantes, os organizadores do debate propuseram a eles uma discussão sobre a “própria definição do neoliberalismo e os significados atribuídos a esse conceito” (questão colocada a Perry Anderson, Goran Therborn, Atílio Boron, Emir Sader e Pierre Salama pelos coordenadores do debate, Pablo Gentili e Luís Fernandes).

Goran Therborn, surpreendentemente, começa por afirmar que “como projeto ideológico e político definido de forma estrita”, [?] “o neoliberalismo está esgotado”. Pierre Salama acrescenta: “não sabemos precisar com exatidão o que é o neoliberalismo, que acabou se tornando uma categoria muito difusa”. A tendência de uma parte dos debatedores é a de contrapor o neoliberalismo às políticas dos chamados welfare states, como Emir Sader e Perry Anderson. “Se bem ele nasce de uma crítica antes do mais econômica ao Estado de bem-estar”, diz Emir Sader, “em seguida foi constituído um corpo doutrinário que desemboca num modelo de relações entre classes, em valores ideológicos e num determinado modelo de Estado”. Anderson destaca a atual hegemonia neoliberal para dizer que a tradição keynesiana “está quebrada e desmoralizada”. Atílio Boron tenta ir um pouco além, ao dizer que a categoria do neoliberalismo “é útil porque resume o senso comum da época, o senso comum imposto pelas classes dominantes”. E acrescenta: “O senso comum da época é neoliberal. Gostemos ou não, ele se implantou profundamente nas massas. O mercado é idolatrado, o Estado é ‘demonizado’, a empresa privada é exaltada, e o ‘darwinismo social de mercado’ aparece como algo desejável e eficaz do ponto de vista econômico”. Mas ele não esclarece como se engendrou esse “senso comum”, quais suas particularidades históricas específicas e por que as classes dominantes conseguiram disseminá-lo de forma tão ampla. Goran Therborn confunde ainda mais as coisas ao afirmar que preferiria “falar da emergência de uma ‘nova etapa de capitalismo competitivo’, com um novo papel e uma nova dinâmica para os mercados”, no que é contestado por Atílio Boron, para quem “estamos diante de um capitalismo que reforçou extraordinariamente as suas estruturas e práticas oligopólicas”.

Estamos diante de inimigos jurados do socialismo e da luta democrática dos povos

Gostaria de começar minhas observações a respeito de Hayek e seu livro, O caminho da servidão, que muitos concordam ser um marco referencial central da ideologia neoliberal. Qualquer um que tenha lido o livro de Hayek logo percebe que a “servidão” a que ele se refere é o socialismo. Os alvos centrais de seu livro são o socialismo, a planificação econômica, a União Soviética – tudo numa linguagem às vezes camuflada, como ele mesmo reconheceu mais tarde, pelo fato de o livro ter sido publicado em Londres durante a Segunda Guerra Mundial, num momento de aliança da Inglaterra e dos Estados Unidos com a União Soviética, na luta contra o nazi-fascismo. Referindo-se ao alvo primordial de seu livro, Hayek observou no prefácio à edição norte-americana de 1955:

“Creio que o que existe nele de importante deve ainda prestar seus serviços, embora reconheça que está quase morto no mundo ocidental o socialismo radical contra o qual ele se dirigia primordialmente: aquele movimento estruturado, que visava a uma organização premeditada da vida econômica pelo Estado transformado em principal proprietário dos meios de produção” (2).

Hayek ataca a Alemanha, mas seu alvo é a União Soviética, pois desde o início defende a tese de que nazismo e socialismo têm a mesma matriz e, não por acaso, um dos capítulos de seu livro se intitula “As raízes socialistas do nazismo”. “Poucos estão prontos a admitir”, afirma ele, “que a ascensão do nazismo e do fascismo não foi uma reação contra as tendências socialistas do período precedente, mas o resultado necessário destas mesmas tendências”. E, mais adiante, diz: “seria um erro acreditar que foi o elemento especificamente alemão, e não o elemento socialista, que produziu o totalitarismo”. A própria idéia do título de seu livro foi tirada de uma citação de Alexis de Tocqueville contra o socialismo. O trecho completo de Tocqueville que ele reproduz é este:

“A democracia amplia a esfera da liberdade individual (dizia ele em 1848), o socialismo a restringe. A democracia atribui a cada homem o valor máximo, o socialismo faz de cada homem um mero agente, um simples número. Democracia e socialismo nade têm em comum exceto uma palavra: igualdade. Mas observe-se a diferença: enquanto a democracia procura a igualdade na liberdade, o socialismo procura a igualdade na repressão e na servidão” (3).

Assim, estamos diante de inimigos jurados do socialismo e, no caso específico de Hayek, da Revolução de Outubro e da União Soviética que, naquele momento histórico, experimentava enorme prestígio no plano mundial pelas estratégicas vitórias conseguidas contra os exércitos nazistas, que jogavam praticamente três quartos de seu poderio na chamada Frente Oriental (de vez que, de junho de 1941 a junho de 1944 – quando ocorreu a invasão da Normandia – não havia Frente Ocidental, e o esforço de guerra alemão concentrou-se na campanha para destruir a União Soviética). “Planificação”, “socialização dos meios de produção”, “coletivismo”, são todos termos que Hayek utiliza para definir o que chama de destruição da liberdade e do individualismo – seu valor supremo – e que, para ele, abrem caminho ao totalitarismo. O verdadeiro “Estado de Direito” pode provocar uma desigualdade econômica entre os indivíduos, mas “este é o seu preço”. Para Hayek, “é inegável que o Estado de Direito produz desigualdade econômica”, mas “tudo que se pode afirmar em seu favor é que essa desigualdade não é criada intencionalmente com o objetivo de atingir este ou aquele indivíduo de modo particular”. E, como ponto essencial de sua concepção, defende que nenhum objetivo de igualitarismo econômico justifica a intervenção do Estado, e que “qualquer política consagrada a um ideal substantivo de justiça distributiva leva à destruição do Estado de Direito”. Sua receita final é a submissão “às forças impessoais do mercado” como maneira de se garantir o progresso e a liberdade. “Foi a submissão às forças impessoais do mercado que possibilitou o progresso de uma civilização que, sem isso, não se teria desenvolvido. É, portanto, submetendo-nos que ajudamos dia a dia a construir algo cuja magnitude supera a nossa compreensão”.

Não fosse a disputa entre capitalismo e socialismo, a pregação não teria repercussão

O que se conclui dessas observações é que não é correto dizer que as críticas de Hayek se dirigiam primordialmente à social-democracia, ao chamado “capitalismo regulado” e aos “Estados de bem-estar social”, que nasceram na Europa no pós-guerra. Seus alvos, como já dissemos, eram o “socialismo radical” e a União Soviética, refletindo o medo dos círculos dominantes do Ocidente de o socialismo se espraiar pela humanidade após a derrota da Alemanha nazista. E torna-se também evidente que a defesa de uma tal liberdade para o capital, já naquelas circunstâncias históricas de total hegemonia da oligarquia financeira, a negação de qualquer tipo de intervenção do Estado, a pregação da “submissão às forças impessoais do mercado”, tudo isso significava a defesa de uma liberdade absoluta para o capital financeiro e os monopólios. Saliente-se que somente mais tarde, quando o socialismo entrou em profunda crise e o campo socialista começou a se desagregar, é que Hayek e seus discípulos voltaram-se contra o capitalismo regulado dos Estados de bem-estar social. Segundo Albert O. Hirschman, o ataque explícito de Hayek ao Estado de bem-estar social foi feito no seu livro The constitution of liberty (publicado em 1960, nos Estados Unidos, pela Universidade de Chicago). Nessa obra, ele fala do declínio do socialismo e do nascimento do Estado de bem-estar social, apontando este último como “o novo risco principal para a liberdade (4)”.

No entanto, tudo isso, toda essa pregação desses ultraliberais e ideólogos do capital financeiro, poderia não ter tido a repercussão que mais tarde teve não fosse a evolução histórica concreta, a disputa entre capitalismo e socialismo, a crise do socialismo, a cisão e, posteriormente, a derrocada do campo socialista e a vitória da guerra fria pelo imperialismo capitalista, possibilitando aos Estados Unidos se afirmarem como única superpotência militar do planeta e desenterrando o sonho dos monopólios e do capital financeiro de estabelecerem seu domínio completo em escala mundial. Ou seja, o neoliberalismo não é o resultado de uma conspiração dos ideólogos do imperialismo, como Hayek e Milton Friedman, por mais persistentes e teimosos que tenham sido.

O pressuposto básico para o estabelecimento da ideologia neoliberal, como expressão do triunfalismo imperialista, foi a derrota do socialismo e a desagregação do antigo campo socialista. (Isso não quer dizer que todos os países socialistas tenham sido destruídos, mas o chamado campo socialista – liderado pela União Soviética –, que se contrapunha ao campo imperialista, desagregou-se inteiramente.) A finalização desse processo, ocorrida no final de 1991 com a débâcle da antiga União Soviética, não deixa de ser um marco histórico central. Uma das superpotências desapareceu e a outra, os Estados Unidos, firmou sua supremacia política e militar absoluta. A União Soviética, nascida da grande Revolução Socialista de Outubro de 1917, já não era uma sociedade socialista e revolucionária. Mas, como observa James Petras, há o outro lado da questão. A União Soviética “deu um apoio vital às revoluções da Indochina, Cuba, Angola, Moçambique, Nicarágua e outras sociedades revolucionárias”. Além disso, ela oferecia “uma fonte alternativa de comércio e auxílio aos futuros movimentos pós-revolucionários quando os regimes ocidentais rompiam relações” (5).

Desregular os mercados significa destruir a soberania e projetos de desenvolvimento

Dessa forma, ao mesmo tempo em que o imperialismo capitalista – que estava mergulhado numa enorme crise desde o início dos anos 1970 – recobrou forças com essa importante vitória política, o movimento operário mundial e os países do terceiro mundo também foram violentamente atingidos por ela. O imperialismo, de imediato, incorporou ao seu campo todo o Leste Europeu e a antiga União Soviética, que mergulharam numa restauração capitalista desenfreada e selvagem, sob o patrocínio da oligarquia financeira e do FMI/Banco Mundial. Nas outras regiões, como América Latina e África, o capital financeiro intensificou sua ofensiva numa situação em que a maioria dos países já estava mergulhada na recessão e na paralisia, inclusive devido à crise da dívida externa, desde o início dos anos 1980. E por toda parte as exigências do capital financeiro em sua marcha triunfalista – agora, afirmava sua propaganda, que o socialismo está definitivamente morto e não há nem segunda ou terceira via – eram as mesmas: abertura completa dos mercados nacionais, retirada do Estado da economia, privatização das empresas estatais e uma palavra “mágica” que exprimia tudo isso:

“desregulação”. Isto é, em sua busca por superganhos, o ideal do capital financeiro era estender para o conjunto do planeta o que já conseguira nos chamados “paraísos fiscais”: não estar sujeito a nenhum tipo de regra e de controle, poder entrar e sair quando bem entendesse, acabar com leis de controles de registros, de remessas, de origem etc. Enfim, “desregular” as transações financeiras, estabelecer a mais completa liberdade para o capital. Essa desregulação, obviamente, incluía o comércio de mercadorias e a própria força de trabalho, ameaçando diretamente os direitos dos trabalhadores. E mais do que isso: para viabilizar a “desregulação” de todos os mercados (financeiros, de commodities, da força de trabalho), passou a ser essencial enfraquecer (ou mesmo destruir) a soberania da maioria das nações, acabar com seus projetos de um desenvolvimento soberano e, simultaneamente, golpear e quebrar a espinha dorsal do movimento sindical.

O capital financeiro especula, derruba moedas, quebra países, desencadeia conflitos…

Todo esse movimento já era uma necessidade objetiva da acumulação capitalista na tentativa de superação da crise que se agravou no início da década de 1970, com a combinação de crescimento da inflação, estagnação econômica e diminuição da taxa de lucro das grandes corporações, como destacado nas intervenções de Perry Anderson e outros. A partir dessa época, a economia mundial ingressa num novo ciclo caracterizado, mais do que nunca, pelo crescimento das transações financeiras puramente especulativas e parasitárias, um dos traços essenciais do imperialismo, como já apontara Lênin. Interligaram-se os mercados de câmbio, de ações, de seguros, de títulos da dívida, alimentados inclusive pelos governos dos grandes países imperialistas, com seus bancos centrais inteiramente dominados pela oligarquia financeira. Atualmente há estimativas de que a dívida externa dos países do terceiro mundo tenha atingido cerca de US$ 1,9 trilhão, enquanto as dívidas públicas dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) – os países capitalistas avançados – seriam da ordem de US$ 13 trilhões, sendo que somente a dos Estados Unidos é de 4,9 trilhões de dólares (6).

É em torno desses números astronômicos que o capital financeiro faz sua orgia, especula, derruba moedas, quebra países, desencadeia conflitos, concentra cada vez mais o poder e a riqueza e lança milhões de seres humanos na mais completa miséria. Ao mesmo tempo, dissemina sua ideologia triunfalista em torno da chamada globalização, das excelências da economia de mercado etc., ideologia que, nesta época histórica, se expressa precisamente no ideário neoliberal.

Assim, pode-se dizer que o neoliberalismo é a manifestação atual da ideologia selvagem e agressiva do capital financeiro (ou seja, do imperialismo), em sua busca sem limites por superlucros, após um período relativamente longo de disputa entre o capitalismo e o socialismo, após a derrocada do campo socialista e a incorporação da maior parte dos antigos países socialistas (sobretudo na ex-União Soviética) ao campo imperialista, num quadro de liberdade sem limite para o capital financeiro globalizado, de marginalização social sem precedente para a maior parte da população mundial e de ameaça à soberania das nações que não integram o restrito grupo das potências imperialistas. Tais nações correm o risco de se desintegrar e perder suas identidades nesse processo de regressão histórica, de ameaça às liberdades políticas e aos direitos sociais dos trabalhadores, enfim, de volta à barbárie, na tentativa de o capital financeiro implantar seu mais completo domínio em escala mundial.

Agora houve uma virada. O imperialismo se encontra em plena ofensiva

Na América Latina, o neoliberalismo – impulsionado diretamente pelos Estados Unidos (seu governo, seus bancos e empresas multinacionais), pelos organismos diretamente controlados por esse país (sobretudo o FMI e o Banco Mundial) e pelas elites locais aliadas que antevêem para si uma parte do botim – tem em vista, além dos objetivos gerais do capital financeiro (desregulação do controle dos fluxos financeiros, abertura total dos mercados nacionais, privatização do patrimônio público etc.), objetivos específicos do capital financeiro norte-americano, no sentido de reforçar sua hegemonia absoluta na região, obter superganhos e melhorar sua posição relativa no campo das contradições interimperialistas ( particularmente face à sua disputa com o Japão e a União Européia). Como observou João Amazonas (7), o neoliberalismo expressa a terceira tentativa feita pelo imperialismo, no decorrer deste século, de dominar o mundo. (A primeira tentativa teve início com a guerra de 1914-1918 e, a segunda, com a guerra desencadeada pelas potências nazistas.) A história deu muitas voltas no século XX, cujo início, frustrando todos os planos do imperialismo, foi marcado pela vitória, na antiga Rússia Czarista, da grande Revolução Socialista de Outubro. Agora, no final do século, houve nova virada, e o imperialismo se encontra em plena ofensiva. Se, em duas oportunidades, nos últimos 90 anos, foi possível derrotar o imperialismo, só mesmo os inteiramente céticos ou os que sucumbiram à propaganda burguesa acreditam que a causa do socialismo está perdida. Enquanto houver imperialismo, como alertava Lênin, haverá sempre uma tendência para a dominação, e não para a liberdade.

“Monopólios, oligarquias, tendências para a dominação em vez de tendências para a liberdade, exploração de um número sempre crescente de nações pequenas ou fracas por um punhado de nações ricas ou poderosas: tudo isso originou os traços específicos do imperialismo que permitem caracterizá-lo como um capitalismo parasitário ou em estado de decomposição” (8).

E a força que permitir reverter o atual quadro nasce, antes de tudo, do aguçamento das contradições econômicas sociais e políticas provocadas pelo imperialismo. Mas, também, da análise e da compreensão da presente situação, com o objetivo de estabelecer estratégias adequadas ao momento histórico que vivemos.

* Economista e jornalista. Foi editor de economia dos semanários Opinião e Movimento e membro do Conselho Federal de Economia de 1987 a 1989.

Notas

(1) SADER, Emir e GENTILI, Pablo (organizadores). Pós-neoliberalismo – as políticas sociais e o Estado democrático, com artigos e intervenções de Atílio Boron, Emir Sader, Francisco de Oliveira, Goran Therborn, José Paulo Netto, José Ricardo Ramalho, Kiva Maidanik, Luís Fernandes, Luiz Antonio Machado, Pablo Gentili, Perry Anderson e Pierre Salama. Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1995.
(2) HAYEK, F. A. O caminho da servidão, Instituto Liberal/ Expressão e Cultura, tradução de Leonel Vallandro, 4 edª, Rio de Janeiro, 1987. Todas as citações de Hayek feitas neste artigo referem-se a este livro.
(3) TOCQUEVILLE, Alexis de. “Discours prononcé à l’Assembleé Constituinte le 12ème septembre 1848 sur la question du droit au travail”, citado por F. A. Hayek, op. cit.
(4) HIRSCHMAN, Albert O. Retoricas de la intransigencia. Fondo de Cultura Economica, México, 1991.
(5) PETRAS, James. Ensaios contra a ordem, tradução de Dinah de Abreu Azevedo e Claudia Schilling. Scritta, São Paulo, 1995.
(6) Dados retirados do artigo de Michel Chossudovsky, “The Globalization of Poverty”, reproduzido na Rede Alternex, do Ibase, (Internet), por ocasião do encontro de cúpula do chamado Grupo dos Sete (G-7) realizado em Halifax, Canadá.
(7) (Nota dos Editores) Citação referente a artigo do jornal A Classe Operária, n. 134, de julho de 1995.
(8) LÊNIN, V. I. El imperialismo, etapa superior do capitalismo, Anteo, Buenos Aires, 1972.

EDIÇÃO 38, AGO/SET/OUT, 1995, PÁGINAS 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11