A luta pelo socialismo ganha nova dimensão
A realização desta 8ª Conferência Nacional tem a finalidade de cumprir plenamente a resolução mais importante do 8º Congresso Nacional do Partido de 1922, que determinou a elaboração, discussão e aprovação de um novo Programa partidário, definidor do rumo socialista para o Brasil. Desde então, empreendemos uma persistente atividade para cumprir esse objetivo – de início, com a concretização de uma proposta apresentada pela Comissão do Programa, eleita no 8º Congresso, com esse propósito. Logo após, essa apresentação inicial foi submetida à aprovação do Comitê Central, que a transformou em Projeto de Programa em setembro de 1992, encaminhando-a para apreciação e discussão do conjunto do Partido.
A partir daí, durante quase dois anos, transcorreu amplo debate sobre o Projeto apresentado. A discussão no âmbito partidário se estendeu, um Jornal de Debates foi editado em duas fases, somando um total de 14 edições, e realizaram-se mais de trinta seminários em vários estados, sendo desses uma parte significativa composta também com a participação de expositores provenientes dos meios universitários, estudiosos de temas específicos e membros de outras correntes políticas.
Essas iniciativas contribuíram para forjar os conceitos e objetivos fundamentais, aprofundar a análise sobre a realidade brasileira e mundial, tornando o novo Programa mais próximo de nossas particularidades e mais viável às condições do Brasil. Desse modo, várias opiniões foram consideradas, modificando e precisando determinadas idéias e pontos de vistas expressos no projeto programático. Entretanto, não devemos considerar o Programa, aprovado por esta Conferência, como intocável e encerrado. Apesar de termos conseguido dar grande passo na compreensão teórica, definindo de forma consistente algumas idéias-chave, é possível que lacunas, imprecisões e defeitos ainda subsistam. Ademais, sabemos da necessidade inevitável – comum a todo programa de longo alcance – de confirmação de muitas formulações pela evolução do movimento revolucionário.
Desafio do desenvolvimento teórico
A crise das experiências socialistas mais importantes do nosso tempo e a sobrevida que o capitalismo vem encontrando para a sua reprodução propiciam as condições subjetivas para o ressurgimento das tendências regressivas nos planos, político, ideológico e cultural. Uma vasta onda de retrocesso, não encontrando de imediato maior obstáculo, adiantou-se, desenterrando o que o pensamento mais avançado tinha sepultado. As concepções idealistas, metafisicas, individualistas e obscurantistas ganharam forte alento, parecendo inundar tudo, abrindo trânsito ao oportunismo e às contritas conversões em favor do “novo” liberalismo, com ou sem envoltório social-democrata. As noções de “fim de história”, “pós-marxismo”, bancarrota “definitiva” do socialismo, amplamente divulgadas, constituem o produto ideológico dos pensadores e políticos burgueses, fabricado e glorificado nesse ambiente de regressão, em defesa, em última instância, dos interesses capitalista-imperialistas da fase atual, conhecida como “globalização” da economia.
Em face de tal situação, os comunistas foram jogados diante de um imenso desafio de resistência, análise crítica e autocrítica e renovação. Não bastava, assim, reafirmar a validade e a atualidade de princípios e valores do marxismo-leninismo, ou repetir simplesmente seu legado teórico. Da rica experiência revolucionária transcorrida ao longo desse século, emerge com intensidade e se desenvolve uma visão nova, que procura resgatar a lógica transformadora, radical do marxismo-leninismo, sua essência – “a dialética revolucionária”, a “análise concreta da situação concreta” em um acerto de contas, ao mesmo tempo, com a velha concepção dogmática e reducionista que condicionou um longo período de estagnação teórica. Por conseguinte, a iniciativa mais consequente que nos cabe é descobrir como responder ao extraordinário desafio de desenvolver, retirando lições do passado, a teoria revolucionária, a herança do marxismo-leninismo, elevando-a ao patamar das mutações sócio-econômicas da atualidade, retomando o caminho para novas grandes experiências transformadoras.
Ao analisar o cerne do movimento histórico da luta pelo socialismo na Rússia num contexto mundial em que as teses da II Internacional já se encontravam caducas, Lênin concluía que, para tornar realidade a vitória do proletariado, era imprescindível o desenvolvimento teórico – sem uma grande teoria não pode existir um grande empreendimento revolucionário que supere o capitalismo. Toda a trajetória da Revolução de Outubro demonstrou a justeza dessa noção. As idéias emitidas e as resoluções mais importantes do 8º Congresso do nosso Partido permitiram aumentar a convicção entre nós de que, na atualidade, a perspectiva se reduziria, e seríamos incapazes de contribuir na condução de uma nova torrente histórica no rumo do comunismo, se a doutrina, na sua inteireza, permanecesse fixa, sem um revolvimento que pudesse permitir um avanço à altura de novos desafios da época. Nesse sentido, a prática atual que envolveu o conjunto do Partido na preparação, debate e elaboração do Programa jogou um duplo papel, adequado às necessidades de hoje: despertou energias criadoras, possibilitando amplo esforço de estudo e de crescimento teórico e, simultaneamente, exigiu soluções práticas para inúmeros dilemas e indagações, permitindo traçar um rumo à própria abstração, não se limitando ao simples trabalho de especulação.
A superação do capitalismo ganha nova dimensão
Todo programa partidário tem no seu bojo a definição de um projeto estratégico mais ou menos explícito. O Partido Comunista não tem uma missão histórica conjuntural ou limitada aos marcos da sociedade capitalista. Nessa radicalidade, que se distingue das demais políticas ideológicas contemporâneas, a missão comunista baseada no socialismo científico volta a estar no âmago da nova luta pelos ideais comunistas, na atualização da maneira de alcançar o triunfo da revolução proletária e da sua consolidação. A renitente propaganda das classes dominantes capitalistas, nessa virada de século, tem como linha condutora estimular a profusão de paradigmas anti-socialistas, incitar a dispersão de objetivos entre as classes e as camadas populares, desacreditar e dividir suas organizações de luta e levá-las ao estreito limite do corporativismo, do economicismo e imediatismo.
Ressurge como questão primordial para a explicitação da estratégia revolucionária, atribuição do Partido Comunista, a comprovação, a definição factível de que se pode ir além da sociedade sob o domínio da classe burguesa, superando sua formação econômico-social, indicando um projeto viável.
A luta dos nossos dias pelo socialismo ganha necessariamente nova dimensão e diferente realização, tendo em vista a diversidade de situações, o acúmulo das experiências vividas, a mudança experimentada pela classe operária no seu perfil e na sua composição, o surgimento de novos agentes sociais e o quadro de correlação das forças estratégicas.
Esquematismo dificultou definição do projeto peculiar
O nosso último Programa, aprovado no 7º Congresso de 1988, seguia a linha dos precedentes, moldados por uma etapa de caráter nacional, democrático-revolucionário, ficando a revolução socialista como indicação para uma “segunda etapa”, pouco definida. Apesar da constatação apresentada de que a “burguesia e latifundiários aburguesados” detinham a hegemonia do poder político, da existência de uma classe operária extensa e do predomínio do capitalismo em todo campo, ainda não estávamos liberados para uma “análise concreta da situação concreta”, presos até esse momento a contradições não resolvidas. Assim, concluía-se que as tarefas democráticas e nacionais se “aproximavam” e se “entrelaçavam” com as tarefas socialistas, embora justificando ainda a necessidade de duas etapas revolucionárias de natureza distintas. Até então, estávamos sob a influência de noções abstratas, presos a preceitos esquemáticos, produtos da limitação teórica, que giraram em torno de três eixos: inevitabilidade de duas etapas da revolução nos países dependentes ou semicoloniais; existência de um modelo universal (único) de socialismo; trânsito direto à construção socialista após a conquista do poder político.
Durante certo tempo, em consequência dessas debilidades simplificadoras, nosso pensamento estratégico, refletindo um método vulgar, analisava as duas maiores experiências revolucionárias deste século, a russa e a chinesa, buscando mais as vias de identidade e a semelhança com a nossa realidade, sem, no entanto, alcançar um modo de sistematização que pudesse instruir a construção de um projeto próprio, peculiar. Em períodos passados, produto de uma metodologia dogmática, procurou-se até mesmo entrever um “feudalismo” na formação histórica brasileira, pela incapacidade de apreciar a singularidade do tipo de produção mercantil-capitalista-escravista do Brasil colonial e sua originalidade de desenvolvimento. Da mesma forma, apresentava-se certa impotência em discernir a especificidade da revolução burguesa a partir de 1930, no Brasil, explicitando sua forma de evolução, condicionada que está pela relação entre burguesia, latifúndio e capital estrangeiro, nas condições de um país capitalista dependente e que atingiu um nível de desenvolvimento médio.
A solução teórica e prática encontrada
Diante dos novos fenômenos e da experiência contida em longa trajetória do nosso Partido nas condições do Brasil, fomos impelidos a repensar e rever nossa estratégia revolucionária, moldar um novo Programa. Isso, entretanto, tornou-se possível porque conseguimos singularmente um avanço qualitativo na nossa percepção, que passou a ser mais realista e dialética. Essa evolução, instigada pela derrota histórica contemporânea do socialismo, foi abrindo caminho para a superação de certo abismo teórico (velhos esquemas) e permitiu encarar sob um ângulo concreto as particularidades do processo social brasileiro, levando-nos a considerar que nosso projeto político fundamental tinha restado fixo, incapaz de responder às novas exigências.
Semelhante soldo na nossa compreensão deu-se nas vésperas do rico debate preparatório ao 8º Congresso do Partido (1992), quando concluímos que a sociedade brasileira estava madura para a luta pelo socialismo “desde já”. Não foi possível, naquele momento, concretizar novo Projeto, e por isso nossa elaboração se escoou até esta conferência. O acúmulo do fecundo debate, a partir da preocupação do 8º Congresso, possibilitou, assim, uma transposição nas limitações conceituais e interpretação mais justa das contradições da realidade.
A solução teórica e prática encontrada, que fundamentou a definição da revolução socialista para o Brasil como objetivo estratégico imediato, deveu-se ao avanço na compreensão de conjunto de experiências transformadoras neste século, que se pode concentrar no enunciado: transição do capitalismo ao socialismo – Marx definia todo o período histórico do socialismo como “transição revolucionária” ao comunismo. Cabe a Lênin, nas condições da revolução proletária na Rússia, assentar as bases teóricas do que seria o período de transição preliminar, inicial do capitalismo ao socialismo. Infelizmente, contribuição tão decisiva (maio de 1918 a março de 1923) ficou pouco conhecida e marginalizada da evolução do pensamento revolucionário até recentemente. O significativo trabalho de João Amazonas, Capitalismo de Estado na transição ao socialismo (1993), procurou resgatar entre nós a importância histórica desse notável aporte de Lênin, que eleva a compreensão das leis do desenvolvimento social a novo patamar. Ademais a trajetória da experiência de nosso tempo veio demonstrar que, na situação dos países dependentes e relativamente atrasados, essa transição pode ser mais longa, irregular e acidentada do que se previa.
A nova linha programática
Dessa maneira, a compreensão teórica atingiu patamar mais elevado, possibilitando uma situação consequente e condizente com nossa realidade. De forma sucinta, podemos definir desta maneira: a sociedade brasileira é capitalista, de desenvolvimento médio, com o predomínio do poder político pela grande burguesia. Mas isso não é tudo, por ser um capitalismo de tipo dependente, o que cria deformações estruturais e produz um crescimento heterogêneo, restando ainda importantes tarefas democráticas e nacionais, de cunho capitalista, a serem concretizadas. A classe burguesa tornou-se cada vez mais impotente para concluí-las. Como resolver, então, essa dualidade da nossa realidade? Fixando duas etapas revolucionárias que se “entrelaçam”?
Hoje, nossa conclusão é de que esse conjunto de medidas de feição capitalista, em nosso país, visto na sua evolução, já é parte constitutiva da fase de transição ao socialismo, de vez que, para realizá-las, não é necessário nenhuma etapa particular ou intermediária. A permanência desse período de transição origina-se da existência de leis objetivas. O estágio do desenvolvimento econômico-social mundial e brasileiro e o caráter da frente única em nosso país (proletariado, massas trabalhadoras, classe média urbana rural) configuram um quadro objetivo e subjetivo que vai definir a existência dessa fase, na qual a socialização total é inevitável. Daí ser necessária a realização gradativa das transformações imprescindíveis, num contexto de uma economia ainda heterogênea.
“Transição resulta de ruptura e alia proletariado com toda a sociedade”
Entretanto, esse novo período em transição não surge simplesmente como evolução linear. Ele só pode despontar e progredir como resultado de um processo de ruptura, revolucionário, com a ordem burguesa-imperialista, consequência da mutação na correlação de forças políticas e sociais, em que o proletariado passa a ser a classe mais poderosa e, em aliança com o restante da maioria da sociedade, passa a assegurar a tendência da coletivização e socialização crescentes. Assim, a expressão concentrada para a mudança está no novo poder político da classe mais interessada em superar o capitalismo e construir a nova sociedade.
Nessa fase, a luta de classes continua sob novas condições, não estando definido, em princípio, quem ganha de quem – o socialismo ou o capitalismo. Nossa conclusão, portanto, resume-se na compreensão mais profunda da dimensão histórica e do papel da transição preliminar do capitalismo para o socialismo, sobretudo nos países dependentes. Essa transição pressupõe toda uma fase de desenvolvimento, que se inicia no momento da conquista do poder político pelo proletariado e seus aliados, e requer uma reorganização diversificada das relações de produção, com base na propriedade de todo povo, coexistência de planejamento e mercado, até se galgar a construção plena do socialismo.
O novo Programa
O novo Programa que ora submetemos à aprovação da 8ª Conferência Nacional tem essa linha básica. Ele tem seis capítulos que compõem três partes constitutivas: 1) os fundamentos teóricos baseados no marxismo-leninismo e a realidade estrutural do capitalismo no mundo e em nosso país; 2) o programa socialista para o Brasil; e 3) o caminho para alcançar os objetivos programáticos.
Fundamentos e a realidade
Os fundamentos reafirmam, comprovados na história passada e recente do capitalismo, que o
socialismo não é gestado de fora da luta de lasses, “não é um ideal pelo qual a realidade terá de se regular” (Marx), mas, ao contrário, é produto das contradições objetivas do sistema capitalista-imperialista, corresponde aos interesses objetivos do proletariado – condição real. Mas não surge automática ou espontaneamente. Para torná-lo realidade material, é preciso intensa participação e intervenção consciente das massas operárias e populares guiadas por sua formação de vanguarda – condição decisiva. A relação dialética entre dois fatores – realidade objetiva, direção-decisão –, em um cenário histórico de grandes acontecimentos que possa sacudir o jugo dominante, virando a correlação de forças fundamentais, atingindo o apogeu da crise revolucionária, é que pode gerar o nascimento da nova sociedade. Afirmamos que as modificações da atualidade na sociedade burguesa não alteram qualitativamente o caráter das relações capitalistas de produção. As mudanças operadas na estrutura das forças produtivas com o advento da Terceira Revolução Tecnológica não fizeram desaparecer, nem muito menos atenuaram, a escravidão do trabalho assalariado. Não estamos, assim, diante de novo modo de produção, mas, ao contrário, os fenômenos de hoje estão marcados pela tendência à expansão dos monopólios e ao crescimento do capital financeiro em escala nunca vista, com a reestruturação do mercado mundial único, atingindo os mais recônditos rincões do planeta.
Tal processo expansivo não pode ser contido eternamente nos marcos das relações de produção capitalista. Essa realidade econômico-social em desdobramento produz, no plano mundial, a intensificação das contradições fundamentais, exclusão social crescente e generalizada no âmbito do capitalismo, vasta degenerescência moral e decadência ética e política. Jamais se vivenciou uma crise social com tal dimensão e tão concentrada de dantescos dramas humanos. Esse quadro de exacerbação das contradições em todas as esferas da vida social origina, por outro lado, a contratendência – a resistência e sua intensificação. Desdobram daí a consciência política, o movimento de idéias, as novas formas de luta e organização das grandes massas, que vão reavivar e desenvolver a tendência transformadora.
Apesar da profundidade da crise estrutural capitalista contemporânea, não acreditamos que as análises catastróficas ou meramente propagandísticas quanto à queda rápida desse sistema possam contribuir para uma nova definição e orientação da luta em geral. A visão materialista-dialética própria do marxismo compreende a evolução social do nosso tempo como um processo complexo de leis absolutas, tendências e contratendências dentro do próprio capitalismo, sistema que, dessa forma, se caracteriza essencialmente por tensão permanente e crises evolutivas que podem provocar rupturas e “saltos”. A concepção simplificadora ou unilateral, ao reduzir os pólos das múltiplas contradições dessa estrutura sócio-econômica, avalia sempre subestimando ou superestimando o ritmo ou o momento do desenlace do processo. Nosso esforço deve ser, portanto, no sentido de distinguir na experiência histórica o todo do movimento, o conjunto das relações no âmbito da sociedade, tentando dominar o essencial, a fim de que seja possível avaliar com justeza as condições do curso transformador, dirigindo-o ao objetivo almejado – a nova sociedade socialista.
“Modelo neoliberal: restrição de liberdades, deterioração social e avassalamento”
No Brasil, a crise estrutural exposta pelo Programa tende a um aprofundamento maior das deformações e contrastes provocados pelo capitalismo dependente. O advento do neoliberalismo como manifestação atual da ideologia do capital financeiro impôs às classes dominantes e às elites nacionais seus paradigmas que serviram de base ao modelo de “desregulação-reestruturação” da economia, que passou a ser implantado no Brasil. Esse modelo vem acentuando a tendência ao avassalamento, restringindo as liberdades democráticas e exacerbando sobremaneira a já deteriorada situação social. Desse modo, a tentativa da burguesia de superar a duradoura crise brasileira só tem aguçado mais ainda a subordinação do país, não existindo outra alternativa mais vantajosa aos grandes e mais bem situados capitalistas tradicionais que a de se tornarem sócios-menores do agressivo capital financeiro e das transnacionais.
Restam à maioria da sociedade as agruras das perdas de direitos sociais, de desemprego, da exclusão, das falências e do prejuízo com o sucateamento de parte significativa da estrutura econômica edificada. Torna-se cada vez mais inviável, sob a direção das atuais classes dominantes, o Brasil defender seus interesses geopolíticos como nação soberana no contexto mundial, e cultural para o povo. Um novo caminho se impõe mais do que nunca: um novo projeto das novas classes tendo por base o proletariado, os trabalhadores da cidade e do campo, os setores progressistas da sociedade – projeto socialista para o Brasil.
Objetivo central
Na elaboração do programa socialista para nosso país, concentrou-se grande esforço em responder ao desafio de torná-lo realista e possível nas condições contemporâneas do mundo e do Brasil, reafirmando, ao mesmo tempo, os objetivos históricos dos comunistas. Em nosso século não se verificaram a crise definitiva do sistema capitalista e o êxito do socialismo em escala mundial, como previa o senso comum do movimento revolucionário. Assim, uma nova estratégia voltada para a realidade brasileira tem exigência ainda maior de estar à altura de nosso tempo, não caindo no lugar comum da generalidade, tendo feição própria e sendo viável. O objetivo do Programa atual relaciona-se com os problemas da primeira fase de transição do capitalismo ao socialismo. Em consequência disso, o Programa apresentado não visa à socialização geral. Entretanto, tendo presente o fim que se pretende atingir, conforme o ideal marxista, nossa perspectiva vai além do alcance da estratégia de transição, não se esgota aí. O objetivo superior – o comunismo – depende, para ser alcançado, do êxito da transformação revolucionária, sendo esta realizada pela construção socialista, ao longo do vasto período histórico.
Perseguindo esse rumo, o Programa atual assinala que, no Brasil, esse largo espaço de transformações do capitalismo ao comunismo pode percorrer, grosso modo, "três fases” fundamentais: transição preliminar do capitalismo ao socialismo; socialização plena; construção integral do socialismo e passagem gradual ao comunismo. Essas fases, evidentemente, na sua interação, não estão sujeitas a limites rígidos, podendo apresentar, conforme a variedade do desenvolvimento histórico, diferentes formas de aproximação, duração e desdobramento.
Poder político
Encontra-se na mudança do poder político o ponto de viragem, a inversão da tendência capitalista dependente pela tendência da transição ao socialismo. Para isso, o Programa propõe como essencial a instauração de uma República de trabalhadores e de amplas massas do povo, unindo a população e integrando diversas regiões do país. Essa República tem sua origem em uma frente única – coalizão da classe operária de trabalhadores da cidade e do campo com setores médios da população. Ela está baseada em um Estado que vai sendo construído com a hegemonia do proletariado, o qual procura estreitar a união com os aliados, visando a ganhá-los no rumo da edificação socialista. A viabilização desse processo de unidade requer a constituição de uma organização do poder político de base popular, concretizada em um Estado democrático, mas não liberal, ordenado por “leis estabelecidas pelos órgãos eletivos”, fonte da nova legalidade no curso da transição ao socialismo.
“Um novo regime popular será contrário a todas as desigualdades”
O novo regime popular, como expressão da soberania da maioria da sociedade, é erguido para superar o caráter formal da democracia política da ordem burguesa e edificar a nova ordem jurídico-institucional baseada no interesse do proletariado e dos trabalhadores em geral. Esse regime é contrário à desigualdade de gênero, à discriminação étnica, de raça e de religião. Ademais, pode ser considerado o pluralismo dos partidos e organizações políticas, desde que respeitem a legalidade da nova ordem de transição socialista. Os atributos fundamentais do regime político democrático-popular, diferentemente do regime burguês liberal, resume-se em discussão e eleição de candidatos em assembléias populares; representação especial de entidades populares e profissionais, a fim de garantir proporção que expresse a dimensão dos mesmos na sociedade; conjugação de funções legislativas e executivas no mesmo órgão de poder. Em resumo, o eleitor adquire um poder real, e não formal, e a maioria social passa a ter representação majoritária, e não minoritária.
Construção econômica
É importante considerar que não basta o poder estar nas mãos de novas forças sociais. Tem sido sempre mais difícil consolidar o novo poder do que conquistá-lo. Nas condições históricas em que o capitalismo predomina mundialmente, a nova classe dominante e seus aliados vão estar diante do grande desafio de manter, ampliar e desenvolver forças produtivas e a produtividade média do trabalho a partir do sistema herdado. O trânsito à construção socialista não sucede de maneira direta, simples.
Assim, o Programa define que, em termos gerais, além da forma coletiva de propriedade de todo o povo e de uma parte do povo, “haverá espaço para o desenvolvimento capitalista”, estabelecendo então um sistema econômico diversificado, cujas características fundamentais são as seguintes: a economia socialista é a base principal do desenvolvimento e dirige o processo de crescimento; deve ser constituída inicialmente pelas empresas estratégicas e fundamentais que compõem os meios de produção, o Fundo Nacional Agrário e as áreas exclusivas de exploração do Estado; as nacionalizações atingirão os bancos, visando ao controle do sistema financeiro e de outros setores básicos de circulação de produtos. A componente capitalista assumirá especialmente o formato de capitalismo de Estado. Esse novo sistema de direção da produção social, proposto por Lênin, é essencialmente um capitalismo funcionando sob o controle do Estado proletário, distinto, portanto, do capitalismo de Estado onde a classe dominante é a burguesia. É um modo de propriedade adequado para a fase inicial da construção socialista, nas condições semelhantes às do Brasil, de desenvolvimento retardado, em que o novo poder concebe empreendimentos com empresários particulares, nacionais e estrangeiros, utilizando várias formas como concessão, associação, consociação arredamento, visando, principalmente, ao desenvolvimento tecnológico avançado. Compõem ainda esse sistema econômico diversificado a propriedade privada de pequenas e médias empresas nos vários ramos de atividade, e cooperativização com duplo caráter: socialista e privado.
“Planejamento econômico para dirigir o desenvolvimento no rumo do progresso social”
A reorganização da economia, nesse processo de transição preliminar, tem como objetivos montar as bases do novo sistema econômico e desenvolver amplamente as forças produtivas, utilizando diferentes formas de produção, tendo em vista a predominância do socialismo. Por conseguinte, o planejamento econômico central é imprescindível a fim de se dirigir o desenvolvimento no rumo pretendido. Entretanto, a economia de mercado e a lei do valor ainda estarão funcionando de maneira extensa, sinalizando as exigências dos componentes sociais. São, portanto, importantes indicadores na formação dos preços. Isso acontece porque a diversidade de modos de propriedade e gestão dessa fase vai condicionar a existência de vários agentes econômicos autônomos envolvidos pelos mecanismos de compra e venda.
Esse mercado não terá função reguladora direta da produção, cabendo isso ao plano estabelecido. É preciso ressaltar ainda uma questão essencial: quem comanda o mercado é o Novo Poder Popular. Portanto, o controle e a regulação da economia podem ser realizados em função de um sistema articulado de planejamento e mercado, cuja forma de equilíbrio só a realidade concreta poderá informar.
Organização e desenvolvimento agrário
O Programa atual procura também uma alternativa viável, nessa primeira fase de transição, para a reorganização agrária e seu desenvolvimento, baseada na complexa realidade do campo brasileiro.
A penetração capitalista em nosso país se estendeu por todo o interior, mantendo a antiga estrutura de monopólio da terra e das grandes culturas para exportação. Disso resultou um desenvolvimento diferenciado, com zonas de exploração intensiva da terra ao lado de regiões improdutivas, arcaicas, de grande extensão. A proletarização cresceu amplamente, e se formaram também extensa burguesia e pequena burguesia agrárias, ao lado de propriedades camponesas atrasadas.
Diante dessa realidade acentuadamente contrastante, o processo de coletivização no campo brasileiro, nessa fase, deve levar em conta a união básica do proletariado (assalariados agrícolas como componente do proletariado) com os camponeses pobres (semiproletários), em aliança com a pequena burguesia do campo, a neutralização da camada de empresários agrícolas e o impedimento da existência da propriedade latifundiária. Por isso, o caminho apontado para o Programa estabelece uma orientação geral que se define por uma posição intermediária e transitória. Não haverá nacionalização da terra, pelo menos em determinado período, adotando-se o critério da fixação do teto máximo para as propriedades rurais, segundo as diferentes regiões do país; o excedente desse limite constituirá um Fundo Nacional Agrário, de propriedade de todo o povo, que o Estado poderá utilizar visando ao atendimento das necessidades do amplo desenvolvimento das áreas rurais, e também para garantir acesso à terra a todos os que nela queiram trabalhar.
Na realidade, a alternativa proposta pelo Programa é de uma nacionalização parcial, realizada por meio do sistema de Fundo Agrário, que se formará com o excedente das grandes propriedades do campo. Ao mesmo tempo, será permitida, dentro das condições estabelecidas nesse período, a exploração da propriedade do solo capitalista de médio e grande porte. No caso da grande propriedade territorial de exploração intensiva e contínua, o que sobrepassar do teto máximo não poderá, logicamente, ser desmembrado da propriedade, porém, esse excedente territorial passa a ser patrimônio do Estado (FNA), que poderá arrendá-lo ao proprietário da própria unidade, preservando assim sua continuidade produtiva.
Junto ao objetivo antilatifundiário, mas que não é ainda anticapitalista, o Programa defende meios de proteção e incentivos aos pequenos e médio produtores e, tendo em mente o começo da construção das relações de produção socialista no campo, propugna pelo desenvolvimento do processo de cooperativização e da criação de centros agrícolas de pesquisa e de estudo, além da utilização de tecnologia avançada em empreendimentos-modelo, estatais.
“Os trabalhadores rurais terão apoio estatal. O campo será reorganizado”
Os assalariados agrícolas, além do fortalecimento dos seus sindicatos classistas, poderão ser organizados em cooperativas de prestação de serviço, com pleno apoio estatal, visando a somar e ampliar seus direitos. No quadro conjunto, o que se pretende é reorganizar a estrutura produtiva do campo, na fase de transição inicial, sem uma mudança abrupta, utilizando formas progressistas de socialização, atingindo imediatamente a grande propriedade territorial, impedindo a desordem e a queda da produtividade ou prevenindo qualquer aliança dos setores médios rurais com a contra-revolução.
Finalmente, não se pode perder de vista que o processo produtivo do campo deverá estar subordinado ao plano geral de desenvolvimento econômico, respaldado no interesse da maioria.
Questões fundamentais do desenvolvimento social e geral
O Programa atual se estende na indicação e proposição das questões fundamentais do desenvolvimento social e geral na primeira fase de transição, partindo da situação do país:
– Situa e trata de maneira concisa os problemas do urbanismo e da habitação em uma realidade como a do Brasil, em que os grandes centros urbanos incharam rapidamente, deteriorando o bem-estar da maioria urbana;
– defende o princípio de que todo trabalhador tem direito a uma habitação decente, em ambiente saudável e a baixo custo, utilizando, para isso, a via da nacionalização do solo urbano;
– destaca que, em última instância, “o objetivo primordial da construção socialista” é a elevação permanente do nível das condições de vida material e espiritual do povo trabalhador;
– aponta a necessidade da participação das grandes massas, de maneira independente, no complexo da construção social e defesa ambiental, forjando um espírito de comunidade socialista;
– ressalta que o governo deve garantir a todos os cidadãos condições dignas de vida, acesso universal à assistência, à saúde, à seguridade social;
– destaca como tarefa essencial da transição para o socialismo o desenvolvimento da cultura, da ciência e da tecnologia;
– enfatiza a necessidade de mobilização de grandes esforços para construção de uma nova cultura, em luta contra o obscurantismo e a alienação social, com a participação das massas trabalhadoras;
– propõe a reforma educacional em função das aspirações da maioria, liquidação do analfabetismo, desenvolvimento das artes em todas as modalidades e disseminação cultural entre o povo;
– defende a real democratização dos meios de comunicação, com os quais hoje a classe dominante exerce sua dominação, propagando um pensamento único, impondo senso- comum de idéias e concepções decadentes e reacionárias; propõe inverter essa situação, com o acesso dos trabalhadores e do povo aos meios de ampla comunicação social, através de várias formas de controle dos canais de televisão e das estações de rádio pelo Estado, fundações sociais e culturais, centros de pesquisa, universidades;
“Disseminação das idéias progressistas e novas entre as amplas massas”
– enfatiza a importância da prioridade aos recursos suficientes para formação em larga escala de pessoal técnico-científico de alta qualificação e para criação de instituições sólidas de educação e investigação científica;
– preconiza a difusão da teoria social mais avançada – o marxismo – e do conhecimento científico nos seus vários domínios, a fim de enraizar entre as massas as idéias e concepções progressistas;
– conclui com a defesa do internacionalismo de raiz classista – proletária –, em apoio a todas as lutas dos povos contra a exploração e a opressão capitalista-imperialista, por sua emancipação nacional e social;
– defende o apoio e a solidariedade aos países e nações que mantêm a bandeira da construção da sociedade socialista; e
– termina ressaltando que a luta intransigente em defesa da soberania e da independência constitui uma das grandes tarefas da nossa época, porque é inseparável da luta pela conquista do socialismo; ao mesmo tempo, o internacionalismo proletário, atualmente, é também a defesa da soberania nacional.
O caminho para alcançar os objetivos programáticos
A aplicação deste Programa nos seus pontos fundamentais está subordinada ao êxito do grande empreendimento revolucionário concreto que possa conquistar a república de trabalhadores e de amplas massas populares, a fim de tornar realidade a transição para o socialismo. Mas esse é um “caminho de árdua disputa com as classes retrógradas que dominam o país” (Projeto de Programa). Percorrer esse caminho requer clareza do objetivo traçado, ação decidida e persistente contra as forças inimigas e uma série de procedimentos políticos organizativos com vistas à acumulação de forças do campo progressista revolucionário.
Para isso, o processo viável, demonstrado pela nossa experiência, diz ser indispensável atuar no curso dos acontecimentos políticos cotidianos, partindo do nível da batalha existente, radicalizando com base na ampliação alcançada, tendo presentes nossos objetivos maiores. A compreensão expressa no Programa é de que a conquista do socialismo resulta do amadurecimento das contradições objetivas no Brasil e no mundo. Porém nada disso acontece arbitrária ou espontaneamente. A luta pelo objetivo socialista requer vontade revolucionária, ação consciente da classe mais interessada – o proletariado.
Para a ação se tornar consciente, é imprescindível a formação avançada e organizada da idéia-força (Partido Comunista) que possa conduzir o complexo empreendimento revolucionário. Daí ser, para nós, tarefa histórica de primeiro plano construir incessantemente o Partido, multiplicar a força e a influência do PCdoB, elevar seu nível teórico, habilitá-lo a cumprir o Programa Socialista que apresentamos aos trabalhadores e ao povo.
“Trabalho constante: reunir todos os interessados na real democratização”
Entretanto, a causa do socialismo não pode ser obra somente do proletariado. As condições atuais exigem a construção de uma poderosa frente que expresse os reclamos mais elevados da defesa da soberania e da independência nacional, da democratização ampla e profunda da vida do país e de defesa e ampliação dos direitos sociais. A reunião de todos os partidos, organizações políticas, personalidades, agrupamentos, defensores do Brasil interessados em batalhar por esses objetivos, constitui-se num trabalho constante. Esse sistema articulado nesses três objetivos de luta faz parte da nossa tática geral visando à aglutinação e ao crescimento das forças progressistas e democráticas. Ao mesmo tempo, esses objetivos só serão alcançados com a vitória revolucionária.
“Formas de luta: retirar lições do movimento prático e ir adiante”
Têm grande importância, também as formas de luta necessárias à consecução dos objetivos programáticos. Elas podem assumir variada característica e se desenvolver, conforme o movimento de fluxo e refluxo, em um ritmo de avanços e recuos. O nível de radicalização dos métodos de luta depende da correlação de forças em cada situação. Seria irreal prever a forma definitiva das batalhas futuras. A experiência recente no Brasil demonstra que as grandes campanhas de sentido progressista, como as da anistia, diretas-já, impeachment do presidente da República, obtiveram êxitos significativos e atingiram certa radicalidade, ganharam a maioria da sociedade, colocaram grandes massas em movimento. Portanto, a metodologia correta é retirar as lições do movimento prático, distinguindo a tendência que vai prevalecendo na definição mais atualizada das formas de luta, impedindo, assim, a cópia ou a artificialização. Ainda vivemos em meio a convulsionado panorama teórico e ideológico. A ação constante dos ideólogos da classe dominante burguesia-imperialista procura moldar um senso comum de que é “utopia” substituir o modo de produção capitalista, “científico” seria mantê-lo. Nesse sentido, suas instituições teriam caráter natural, perene. Mas, para nós, comunistas, que assumimos o ponto de vista do proletariado revolucionário, a historicidade do capitalismo e a sua transitoriedade se tornam visíveis, constatação básica da concepção marxista.
Acreditamos que galgar o patamar da elaboração do Programa Socialista para o Brasil seja uma grande vitória, em resposta a muitos desafios históricos a que estamos submetidos. Para os comunistas brasileiros, abre-se uma perspectiva nova, aumenta nossa convicção para a luta. Este é um passo fundamental para a construção do futuro do Brasil, apesar de sabermos que temos muito ainda a fazer nesse sentido. Empunhando a bandeira do socialismo em nosso país, o Partido Comunista do Brasil dá sua parcela de contribuição para a retomada do movimento transformador deste século, e pelo triunfo do ideal comunista.
* Vice-presidente nacional do Partido Comunista do Brasil. Este é o texto de sua intervenção especial na 8ª Conferência Nacional do PCdoB.
EDIÇÃO 39, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15