Qual foi a mudança essencial que ocorreu na sociedade brasileira nas últimas décadas, e que impõe a necessidade de um programa socialista para o país?

Esta intervenção é uma tentativa de responder a essa questão. A frágil democracia brasileira só foi alcançada após a derrocada da ditadura militar de 1964, e está registrada de forma avançada na Constituição de 1988, sob permanente ameaça das classes dominantes desde sua promulgação.
A tese aqui defendida é a de que podemos estar assistindo aos derradeiros embates da revolução burguesa no Brasil, onde as tarefas democrático-burguesas já foram cumpridas e a luta pelo socialismo se impõe como uma necessidade histórica.

O desenvolvimento da revolução burguesa

A revolução burguesa é um processo histórico prolongado, pelo qual o capitalismo se torna hegemônico nas formações econômico-sociais e submete toda a produção material. Ela tem uma fase de longa duração, marcada pelas transformações sociais e econômicas que levam ao capitalismo, e uma fase mais curta, em que a burguesia completa seu domínio com a conquista do poder político.
Em seu desenvolvimento histórico, a revolução burguesa conheceu dois padrões de alianças de classes. O primeiro apareceu nas revoluções clássicas, quando a burguesia dirigiu a luta da plebe urbana contra a aristocracia latifundiária feudal, ação que foi o estopim para a revolução camponesa que liquidou os privilégios feudais.

O segundo padrão de alianças de classes, que Lênin chamou de junker, ou via prussiana, também conhecido como “revolução pelo alto”, anunciou-se depois das revoluções de 1830 e 1848, na Europa, e se consolidou depois da Comuna de Paris, em 1871. Nessa época, a classe operária estreou na política com um programa próprio, independente e autônomo, que sacudia a hegemonia burguesa e disputava com ela a direção política do conjunto da sociedade, principalmente os trabalhadores e camponeses.

Desde então, a burguesia deixou de ser revolucionária. Abandonou a bandeira de liberdade, igualdade e fraternidade. Seus aliados agora eram a aristocracia e os militares, e seu programa fundamental era a defesa da propriedade privada ameaçada pelo sonho socialista dos operários.

Essa mudança essencial no padrão das alianças de classe da burguesia marca a luta pela democracia e pelo socialismo desde então. Este é o tempo da revolução proletária, quando os trabalhadores deixam de ser aliados seguros para os objetivos burgueses. Ao contrário da burguesia, os trabalhadores querem uma democratização real, e não apenas formal.

A revolução burguesa no Brasil

Os passos iniciais da mudança da sociedade brasileira rumo ao modo de produção capitalista e à hegemonia burguesa ocorreram na época em que, nos países dominantes, a burguesia havia abandonado o caminho revolucionário, e estava adiantada na senda conservadora.

Essa realidade mundial teve reflexos importantes em nosso país, onde o capitalismo – juntamente com a burguesia industrial e o proletariado – nasce num quadro internacional dominado pelo imperialismo. Este impõe sua lógica e interesses à divisão internacional do trabalho, englobando de forma subordinada e dependente as nações de passado colonial e favorecendo a pilhagem imperialista dessas nações pelos agentes diretos do exterior ou por seus aliados internos, principalmente a burguesia mercantil e a oligarquia latifundiária, cujos interesses coincidem com os da explosão externa, e que se fortalecem com ela.

No Brasil, o fim da escravidão, em 1888, do Império, em 1889, e da República Velha, em 1930, são marcos dessa revolução burguesa a fogo lento. O fim da escravidão sinalizou o trânsito para um novo modo de produção, baseado teoricamente na liberdade de força de trabalho, e em renumeração particularmente monetária. A República, por sua vez, significou a adoção, pela primeira vez no país, de um sistema jurídico claramente capitalista, embora o novo modo de produção ainda fosse pouco desenvolvido e convivesse com os traços herdados do passado escravista. Eram características de um período de crise e transição entre o escravismo e o capitalismo, situado mais ou menos entre a Guerra do Paraguai (1865-1870) e a Revolução de 1930.

Com a Abolição e a República, a mesma aliança de classes que dominou durante o Império continuou à frente do Estado brasileiro. Sob seu domínio, a economia brasileira esteve – desde o período colonial – profundamente integrada ao mercado mundial, com um lugar definido e subordinado na divisão internacional do trabalho: produzir matérias-primas e alimentos para o mercado mundial.

Setores das classes médias urbanas, principalmente militares (cujo movimento nos anos 1920 ficou conhecido como “tenentismo”), estiveram na oposição à oligarquia desde o começo da República. Aos poucos a classe operária juntou-se a esse coro. Ainda imatura, pequena, mas com uma vanguarda combativa, ela era suscetível à influência dos “pelegos” ligados ao governo ou aos patrões; de anarquistas que a afastavam da luta política; ou de social-democratas que limitavam sua luta ao campo econômico. O campesinato, por sua vez, mourejava sob a carga opressiva da herança escravista.

A consequência da luta democrática desses setores médios deu frutos em 1930, quando foi dado importante passo no desenvolvimento democrático burguês, com o alargamento do pacto político dominante, incorporando esses setores vitoriosos à velha aliança de proprietários que vinha do passado. A burguesia industrial pôde, pela primeira vez, participar de forma direta nos mecanismos de governo. O sistema eleitoral foi moralizado, sendo criados mecanismos para a participação controlada e subordinada dos operários no jogo político, com grandes dificuldades para legalizar seus partidos – particularmente o Partido Comunista do Brasil – e severos obstáculos às liberdades sindical, de reunião, de associação, de livre manifestação do pensamento e de intervenção no debate político.

O padrão de alianças de classes típico da revolução pelo alto, o caminho conservador de transformação burguesa da sociedade, é nítido no processo histórico da burguesia brasileira, no qual os agentes históricos foram os militares descontentes (os “tenentes”), e a participação popular foi limitada e indesejada.

Esses foram os protagonistas da profunda transformação do capitalista vivida pela sociedade brasileira em nosso século. Esse processo, que tornou o modo de produção capitalista hegemônico, completou-se somente após o Estado Novo, consolidando esse status depois da Segunda Grande Guerra.

A conquista de hegemonia capitalista na formação econômico-social brasileira é pressuposto para que a revolução burguesa se complete. Ela ocorreu num quadro em que a burguesia deixou de ser revolucionária, e se acomodou com as forças do passado. Apesar de honrosas exceções, representadas por personalidades avançadas no campo da burguesia, as bandeiras democrático-burguesas passaram para as mãos da classe operária e demais setores populares, que foram paladinos da democracia e da independência nacional.

Mas a ditadura aberta – como a de 1964, que aprofundou o desenvolvimento capitalista dependente e associado do país – é uma situação excepcional, e a burguesia precisa construir formas institucionais que legitimem seu domínio, garantam sua estabilidade e articulem as demandas das diferentes facções em que a classe dominante se divide.

Na crise atual do Estado brasileiro, as principais forças dirigentes da grande burguesia monopolista, como a Federação da Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), por exemplo, organizam o coro daqueles que desejam construir um aparelho governamental adequado ao atendimento de seus interesses de classe. Clamam por um Estado pequeno, barato e eficiente, capaz de implementar políticas favoráveis ao desenvolvimento e aos negócios e assegurar a lógica do desenvolvimento capitalista no país.

Querem também uma legislação partidária e eleitoral adequada para sua hegemonia. Por isso pretendem limitar o número de partidos políticos (criando dificuldades enormes para a organização de partidos ligados ao povo, entre eles o Partido Comunista do Brasil) e introduzir o voto distrital (completo ou misto), capaz de garantir a eleição de seus candidatos e impedir surpresas eleitorais.

Esses são sinais fortes do encerramento da revolução burguesa no Brasil, no momento em que a burguesia esforça-se por completar a subordinação da máquina do Estado aos seus interesses.
É contra esse programa classista da burguesia que a vanguarda da classe operária propõe aos demais trabalhadores assalariados do campo e da cidade, às classes espoliadas pelo grande capital monopolista e pelo imperialismo, seu próprio programa: o Programa Socialista, inspirado no atual nível de desenvolvimento histórico alcançado pelo povo brasileiro.

* Jornalista. Este é o texto de sua intervenção na 8ª Conferência Nacional do PCdoB.

EDIÇÃO 39, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 26, 27