Em 1945, o escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) lançava, no Rio de Janeiro, o seu sexto livro. Era Infância (memórias), sua última obra publicada em vida. Morto aos 60 anos de idade, não veria, infelizmente, o volume impresso de um de seus livros mais significativos, Memórias do cárcere, no qual retrata a sua arbitrária prisão em 1936, e que, junto com Infância, revela, conforme avaliação do crítico Alfredo Bosi, “o trânsito da ficção ao nítido corte biográfico”.

O livro, rememorando a infância nordestina, surge num importante momento político do escritor. Com o final da Segunda Grande Guerra e o fim da ditadura do Estado Novo, Graciliano Ramos entra para o Partido Comunista, afinal legalizado. Já é um autor consagrado por obras fundamentais da prosa brasileira: São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938). Por isso mesmo lembra o professor Antônio Cândido: “À medida que os livros passam, vai-se acentuando a necessidade de abastecer a imaginação no arsenal da memória, a ponto de o autor, a certa altura, largar de todo a ficção em prol das recordações que a vinham invadindo de maneira imperiosa”.

Em linhagem simples, direta e seca, como em seus livros anteriores, Graciliano Ramos vai, em Infância, ao seu baú de memória. Suas histórias transitam pelo universo de criança, quando viveu em Buíque, no Pernambuco, em Viçosa, em Alagoas, e era primogênito de um casal sertanejo que teve quinze filhos. Surgem, assim, personagens que povoam outras obras – o padre Inácio, que aparece nas recordações de Luís em Angústia, ou mesmo Maria das Dores, que ensina um papagaio a falar em São Bernardo. São cenas da vida real aproveitadas no campo ficcional, em seu realismo crítico.
Compõem um mosaico com episódios do mundo visto na infância, e que marcaram profundamente a vida e a obra do escritor. Em “O cinturão”, quarta história do livro ele narra:

“As primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isso era natural”.

Graciliano é, ao meu ver, um dos mais representativos escritores brasileiros de todos os tempos. Anda, porém, meio esquecido do meio acadêmico, como se a queda do muro de Berlim também tivesse derrubado e colocado por terra a secular miséria do país. Ao contrário, em tempos de neoliberalismo, o Sul – sonho de Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos – está se nordestizando a cada dia.

O autor de Infância, sempre pessimista em relação ao homem, era, muitas vezes, premonitório. Assim como previu a ascensão literária de Guimarães Rosa, em 1938, quando foi jurado em um concurso de contos, ele imaginou o país em que vivemos atualmente. O texto está em Linhas tortas, livro que merece ser lido ou relido na íntegra, como toda a sua literatura, “que não tem nada a ver com as modas literárias”. Acompanhe a crônica de 1937 e o autor em fina ironia:

“Os inimigos da vida torcem o nariz e fecham os olhos diante da narrativa crua, a expressão áspera. Querem que se fabrique nos romances um mundo diferente deste, uma confusa humanidade só de almas, cheias de sofrimentos atrapalhados que o leitor comum não entende. Põem essas almas longe da terra, soltas no espaço. Um espiritismo literário excelente como tapeação.(…) A miséria é incômoda. Não toquemos em monturos. (…) É bom não contar que a moenda da usina triturou o rapaz, o tubarão comeu o barqueiro e um sujeito meteu a faca até o cabo na barriga do outro. Isso é desagradável. (…)

Vamos falar mal de todos os romancistas que aludem à fome e à miséria das bagaceiras, das prisões, dos bairros operários, das casas de cômodos. Acabemos tudo isso. E a literatura se purificará, tornar-se-á inofensiva e cor-de-rosa, não provocará o mau-humor de ninguém, não perturbará a digestão dos que podem comer. Amém”.

Já neste ano de 1996 outro grande livro completa cinquenta anos: Sagarana, de João Guimarães Rosa. Publicado pela primeira vez em 1946 pela Universal, editora carioca de curta duração, é um clássico da literatura brasileira. Segundo o próprio autor:
“(Tem por) cenário as paisagens do Centro-Norte de Minas Gerais – zona dos campos, vaqueiros, bois, pastagens e fazendas-de-gado – de onde o autor, valendo-se da observação direta, tanto quanto da infância e adolescência, recria, no plano da arte, e movimenta, com estilo personalíssimo, o espesso mundo de terras, águas, árvores e plantas, bichos, aves, e o homem sertanejo em sua realidade mais autêntica”.

Num país onde o modismo e as novidades têm o mesmo tempo de duração de uma notícia de jornal, ler (ou reler) Infância e Sagarana é mirar-se numa terra chamada Brasil e reconhecer, em cada personagem, o povo brasileiro.