Considero um grande acontecimento na história do movimento operário e progressista do nosso país o lançamento do Programa Socialista, elaborado pelo Partido Comunista do Brasil. Já completamos 73 anos de existência. Desde a fundação do Partido, em 1922, erguemos a bandeira do socialismo científico. Mas não havíamos conseguido dar forma concreta aos objetivos perseguidos.
Em 1954, no 4º Congresso do Partido, aprovamos um Programa que continha sérios erros e teve de ser abandonado. Na Conferência extraordinária de 1962, que reorganizou o Partido, indicamos outro Programa, que definia lucidamente uma orientação revolucionária, mais próxima da realidade brasileira. Carecia, porém, de base teórica sólida e de clara perspectiva estratégica.

Não foi fácil chegar ao Programa Socialista. Este não é uma simples afirmação dos ideais comunistas, nem se baseia em experiência positiva do movimento operário internacional. Suas raízes estão no esforço teórico e ideológico que o PCdoB vem fazendo desde a década de 1950 para assimilar em sua essência a grande doutrina criada por Marx e Engels, desenvolvida por Lênin e outros evolucionários proletários.

Podemos dizer que o nosso Programa é, de certo modo, produto da derrocada do socialismo na União Soviética. Tal afirmação pode parecer incoerente, mas encerra uma grande verdade. O movimento operário no Brasil sempre se enriqueceu com as contribuições teóricas e políticas da Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, com os êxitos incontestáveis da construção do socialismo. Por insuficiências nossas, absorvíamos sem espírito crítico tudo o que vinha da URSS, revelando, com isso, interpretação dogmática da doutrina marxista-leninista.

A vitória da contra-revolução na União Soviética, em 1957, foi o primeiro e decisivo grande choque que nos ajudou a entender a maneira deformada, unilateral de encarar a teoria e a própria edificação do socialismo – de tal modo que rompemos com o oportunismo da direção do PCB e reconstruímos vitoriosamente o PCdoB.

Durante mais de três décadas, fomos combatentes aguerridos contra o revisionismo contemporâneo que pontificou na União Soviética, a começar por Kruschev até Gorbachev, descarado defensor do capitalismo, inimigo dos ideais revolucionários de Lênin e dos bolcheviques.

A derrota final do socialismo na União Soviética, no início dos anos 1990, estremeceu convicções idealistas, não dialéticas, que ainda defendíamos. Começamos a ver que a construção do socialismo não era apenas ato de vontade, impulso revolucionário, mas, fundamentalmente, consciência científica das leis do desenvolvimento histórico, com base nas quais se dão os passos necessários ao avanço da nova sociedade. Querer é uma coisa. Mas é preciso querer aquilo que se ajuste à realidade objetiva. Não se chega aos fins colimados sem que existam, ou tenham sido criadas, as condições imprescindíveis à realização dos nossos anseios do progresso social.

O dogmatismo não foi fenômeno isolado que atingiu tal ou qual partido. Disseminou-se amplamente no movimento operário internacional, tendo fontes geradoras na própria União Soviética, que insistia em apresentar o seu novo modelo de revolução e de construção do socialismo como válido para todos os países. Os que discordaram, como Togliatti e outros, não souberam situar-se corretamente, e caíram em posições oportunistas que negavam a revolução proletária. No exame dos acontecimentos negativos verificados na União Soviética, que culminam com a volta do capitalismo, detivemos-nos particularmente numa questão que julgamos decisiva à compreensão dos erros cometidos na construção do socialismo, e que poderia ter grande importância na elaboração do nosso Programa Socialista. Retificamo-nos ao período de transição. É um tema pouco analisado e pouco estudado criticamente. No entanto, a experiência vai mostrando que aqui reside uma questão-chave para elucidar variados problemas da revolução e da edificação da nova sociedade.

Marx considerava que, entre a sociedade capitalista e a comunista, medeia o período de transformação revolucionária de uma em outra, ao qual correspondia também um período político de transição, em que o Estado é a ditadura revolucionária do proletariado.

Engels assinalou que à vitória da revolução socialista se seguiria um período de transição extremamente complexo e difícil: “A questão das etapas é das mais difíceis de todas as que poderão advir, pois as condições modificam-se constantemente”.

São indicações gerais mas significativas, orientadas para compreender as dificuldades que surgiram com a passagem do poder à classe operária. Não se poderia saber antecipadamente como seria construída em cada país a nova sociedade. Os elementos essenciais à construção decorriam da própria revolução que expropriava a burguesia. Isso não era tudo. A edificação é muito mais complexa: aborda não apenas o setor econômico, ainda que fundamental, mas também os problemas sociais, políticos, culturais e outros que conformam a feição de uma sociedade emergente. Os prazos que comporta cada etapa, os ritmos do desenvolvimento, as especificidades dos diferentes países têm de ser considerados.

Todos esses problemas afloram como desafios a serem enfrentados com a vitória da Revolução na Rússia em 1917. Tanto no campo teórico como no prático, apresentavam-se questões novas, exigindo urgentes soluções. Sem resolvê-las de imediato, surgiram transtornos.

Lênin dizia, no período inicial da Revolução, com espírito autocrítico:
“Cometemos e estamos cometendo muitos erros e sofremos muitos reveses. Nosso comunismo foi apressado, imposto pela guerra e pela impossibilidade de obter mercadorias ou de fazer funcionar as fábricas. (…) Levados pela onda de entusiasmo que havia despertado o povo (…), acreditávamos que podíamos cumprir, apenas por meio desse entusiasmo, tarefas econômicas da mesma magnitude das tarefas políticas e militares realizadas. (…) Supúnhamos possível organizar de forma direta, pela só existência do Estado proletário, a produção estatal e a distribuição estatal de produtos à maneira comunista num país de pequenos camponeses”.

A transição e suas particularidades na Rússia tornaram-se temas de constante preocupação teóricas de Lênin. Não custou muito a proclamar: “Fomos e somos um país de pequenos camponeses, a transição do comunismo é para nós extremamente mais difícil que em outra situação”. Elaborou uma série de medidas que incluíam o desenvolvimento relativo do capitalismo no campo e nas pequenas empresas, a utilização do capitalismo de Estado, a par do reforço da economia socialista, para vencer as dificuldades e avançar rumo ao comunismo. Para ele, a transição envolvia o conjunto da população. Seria um erro limitá-la a determinados setores sociais.

“Nós, a vanguarda, o destacamento avançado do proletariado, estamos passando diretamente ao socialismo; mas o destacamento avançado é só uma pequena parte de todo o proletariado que, por sua vez, é só uma pequena parte de toda a população. E para resolver com êxito o nosso passo imediato ao socialismo, devemos compreender que caminhos, métodos, recursos e instrumentos intermediários são necessários para a passagem das relações pré-capitalistas ao socialismo”.
Mais adiante, Lênin chegava à importante conclusão de que as cooperativas camponesas faziam parte da economia socialista.

São preciosas essas indicações de Lênin sobre o período da transição. Ele insistiu no fato de que a transição do capitalismo ao comunismo exigia toda uma época histórica. “Não sabemos e não podemos saber – enfatizou – quantas etapas de transição ao socialismo haverá”.
Lênin morreu alguns anos depois da Revolução. A União Soviética, sob a direção do partido bolchevique e de Stalin, prosseguiu firme na grande batalha da edificação socialista. E obteve grandes êxitos que mostraram a superioridade desse sistema sobre o capitalismo. De um país atrasado que era, alçou-se à condição de segunda potência industrial do mundo. Os problemas da transição não tiveram, porém, suficiente destaque nas cogitações dos dirigentes soviéticos. Elaborou-se muito sobre o assunto. Parece que a transição dependia unicamente da realização exitosa de dois ou três Planos Quinquenais. Simplificaram-se demais questões de grande complexidade.

No 18º Congresso do PC(b)R, em 1939, às vésperas da Segunda Grande Guerra, emitiram-se opiniões duvidosas acerca da transição. O congresso afirmou categoricamente:
“Terminamos mais outra etapa da Revolução Comunista na URSS. Concluímos no fundamental toda uma época de trabalho construtivo, para entrar em uma época nova, a da passagem gradual do socialismo ao comunismo. (…) O terceiro Plano Quinquenal será uma das etapas na solução desse magno problema: a passagem ao comunismo completo”.
Essa caracterização da nova época revelou-se inteiramente falsa. A própria vida demonstrou que a União Soviética estava ainda, naquele período, muito distante do ingresso na última etapa da transição do capitalismo ao comunismo.

É indiscutível, também, a afirmação desse Congresso de que, com o desaparecimento das classes antagônicas, restavam somente classes amigas e solidárias: os operários, camponeses e intelectualidade. Todavia, emergira, nas condições em que se realizava a construção socialista, extensa camada de classe média, tipicamente pequeno-burguesa, cuja aspiração não podia ser a passagem ao comunismo. É assunto que merece ser pesquisado.

“Não há modelo único de transição. Comunismo apressado é um equívoco”

Indubitavelmente, na União Soviética tinha-se instaurado com êxito o regime socialista. As instituições criadas funcionavam normalmente. Os sovietes cumpriam suas funções. Consolidava-se a base fundamental do regime. Contudo, a transição não se limita a uma instauração recente do sistema socialista – envolve a construção da nova sociedade de forma definitiva, material e espiritual em seus múltiplos aspectos. Vale salientar que o golpe anti-socialista de Kruschev, em 1957, não encontrou resistência, iniciou “pacificamente” a volta ao capitalismo. Evidenciou-se que a sociedade soviética e mesmo a classe operária não tinham assimilado verdadeiramente as idéias e a prática do socialismo científico. Havia muitos vazios a preencher.

Do estudo que vimos fazendo da experiência da União Soviética e países do Leste europeu acerca do período de transição chegamos a algumas conclusões iniciais, que reputamos importantes para a luta revolucionária do nosso povo e para a elaboração do Programa Socialista.

1) É inaceitável o modelo único de transição. As formas de transição devem corresponder à realidade objetiva de cada país, ao nível de seu desenvolvimento, às suas especificidades nacionais e históricas. Mesmo que fosse inteiramente correto, o modelo soviético não serviria a outros países.
2) Os prazos das diversas etapas da transição, dada a complexidade dos problemas que encerram, não podem ser de curta duração. O comunismo apressado é um equívoco. Ainda que o socialismo signifique ritmos de desenvolvimento acelerado, não pode violar as leis da dialética, forçar avanços precipitados, voluntaristas. Procedimentos dessa natureza deixam para trás, irrealizadas, tarefas imprescindíveis à construção da nova sociedade.

“Transição é um longo período de luta de classes com suas características próprias”

3) A transição tem de se apoiar na realidade existente, buscar os elos que permitem pôr em movimento toda a cadeia de desenvolvimento das forças produtivas e do avanço social. A revolução liquida os entraves ao progresso, mas não dá, de imediato, a forma de resolver problemas novos e complicados que exigem soluções adequadas. Lênin, por exemplo, descobriu na NEP e no capitalismo de Estado meios de impulsionar a edificação do socialismo na Rússia de então. 4) A transição não se confunde com o caminho pacífico, a paz das classes. É um prolongado período de luta de classes, que apresenta, no entanto, características particulares. Sempre haverá pessoas ou grupos de pessoas dispostos a criar obstáculos à marcha da construção revolucionária. Faz-se a luta direta contra tais forças. Todavia, a batalha de classes, no sentido histórico, se dará também utilizando formas e instrumentos de grande amplitude, capazes de limitar sempre mais, até liquidar, as possibilidades do desenvolvimento capitalista e de assegurar o avanço continuado e consolidado da construção socialista. Lênin dizia que “a ditadura do proletariado não significa a cessação da luta de classes, senão que sua continuação numa forma nova e com novas armas”.

Armados dessa experiência e do estudo da realidade brasileira, conseguimos redigir o Programa Socialista. As conclusões a que chegamos sobre a transição ajudam a fundamentação teórica do nosso Programa. Afastamo-nos dos modelos “clássicos” conhecidos para solucionar tarefas básicas da revolução. Distanciamo-nos das velhas formulações extremadas vazias de conteúdo, das soluções estereotipadas.

As indicações apontadas respondem ao nível do desenvolvimento do país, às possibilidades reais de implantação segura, por etapas, do sistema socialista. Ajustam-se perfeitamente ao caminho revolucionário. A via direta, radical, nem sempre conduz ao objetivo almejado. É indispensável recorrer, como dizia Lênin, a instrumentos intermediários para suplantar óbices maiores que dificultam o progresso.

Ao pesquisar a maneira como será construída a nova sociedade, tendo em conta peculiaridades do nosso país, concluímos que no Brasil haverá, possivelmente, três fases fundamentais na transição do comunismo: a fase preliminar da transição do capitalismo ao socialismo; a fase da socialização plena; e a fase da construção integral do socialismo, com a passagem gradual ao comunismo.
Na primeira fase, da qual se ocupa o Programa, são abordados problemas iniciais da construção do socialismo. Destacamos a palavra iniciais. De fato, são os primeiros passos nessa direção. É ilusão pensar que a revolução socialista resolve de passagem os intrincados problemas deixados pelo capitalismo. É preciso dar tempo ao tempo bem utilizado, tentar construir, passo a passo, a base fundamental do novo sistema.

O programa apresenta soluções originais visando à construção socialista. É o caso da terra, da reforma urbana, da participação das massas na administração pública, da criação de comunidades socialistas, da estruturação das forças armadas.

A questão essencial é o poder nas mãos das forças progressistas, um poder novo, apoiado pelas amplas massas de trabalhadores e populares, sob a firme direção do Partido Comunista. Cria-se um Estado democrático que assegure as liberdades para o povo, respeite as divergências que não afetem o novo sistema e resguarde a legalidade socialista. Do ponto de vista teórico, o conteúdo da classe desse novo Estado é uma espécie da ditadura da democracia popular.

Enfim, temos um Programa que responde às necessidades do desenvolvimento da história do país. Pensamos que o texto não é perfeito em todos os aspectos. Certamente apresentará incorreções, lacunas, omissões, frutos de nosso conhecimento limitado em questões novas da mais alta relevância. Vamos continuar pesquisando. As indagações teóricas e políticas sobre temas essenciais do Programa não se esgotam com a sua aprovação neste Plenário.

Estamos convencidos de que o Programa representa um grande passo adiante na luta pela transformação revolucionária da sociedade brasileira. Sua aceitação e exata compreensão pelo Partido e pelas massas impulsionarão o movimento socialista e popular no Brasil a um patamar mais elevado.

* Presidente nacional do Partido Comunista do Brasil. Este texto de sua intervenção especial na 8ª Conferência Nacional do PCdoB.

EDIÇÃO 39, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 4, 5, 6, 7