A melhor forma de homenagear os que desapareceram é investigar o significado de sua obra (sua ação e reflexão) para os dias atuais. Trata-se de um clássico, de uma obra perene na história da civilização, ou de obra efêmera, transitória? Da vasta reflexão de Engels quero destacar para exame o tema das sua análises sobre a ciência da natureza e a matemática. Essa escolha carrega, sem dúvida, um viés profissional, mas traz a vantagem de singularizar a contribuição de Engels na vasta obra elaborada em conjunto com Karl Marx, sendo também tema de grande relevância nas sociedades contemporâneas. Ciências da natureza eram preocupação comum entre Marx e Engels, mas era maior a especialização de Engels nessas questões, exceto no caso das matemáticas. Essa singularidade da contribuição de Engels é fato conhecido pelo próprio Marx, que diversas vezes referiu-se em cartas, entre 1873 e 1883, ao valor teórico do projeto de Engels de escrever uma obra sobre a dialética e as ciências naturais (1).

Examino, de início, as motivações que levaram Engels e Marx a dedicarem tanta atenção ao desenvolvimento das matemáticas e das ciências da natureza. A leitura do conjunto dos fragmentos de suas correspondências versando sobre o tema, bem como de suas obras publicadas, nos permite destacar duas motivações, pela sua atualidade. Há, nessa obra, toda uma preocupação com a análise da influência das “visões de mundo” – preocupação expressa nitidamente na Dialética da natureza de Engels. Trata-se claramente de uma preocupação com dimensão filosófica, e também social, das idéias científicas. Note-se que uma preocupação com a dimensão filosófica das inovações científicas atravessou todo o século XX, sendo inclusive uma preocupação academicamente bem definida. Uma preocupação com a dimensão social das idéias científicas esboçou-se nos anos 30 com os trabalhos de marxistas como Hessen e Bernal e de sociólogos não marxistas como Merton e Weber, mas só adquiriu carta de cidadania acadêmica no pós-Segunda Guerra.

A outra motivação, de imensa atualidade, diz respeito à influência das inovações científicas na produção material. Marx preocupa-se especialmente com a influência da química na agricultura e com a possibilidade de transmitir energia elétrica com altas tensões a grandes distâncias. Observa-se também que foi exatamente no curso do século XIX, em especial na segunda metade, que, pela primeira vez na história, teorias científicas foram aplicadas à produção, configurando o que chamamos de tecnologia para distinguir das técnicas onde não há essa aplicação consciente de princípios científicos. As indústrias química e elétrica estão entre as primeiras beneficiadas por essa interação.

Apenas para realçar essa característica inovadora, é bom lembrar que a revolução indústrial, tendo a máquina a vapor como carro chefe, não foi antecedida pela ciência; pelo contrário, o surgimento da disciplina termodinâmica pelas mãos do engenheiro francês Sadi Carnot, no inicio do século XIX, sucedeu ao uso em larga escala da máquina a vapor. Desnecessário frisar, neste final do século XX, a contemporaneidade do papel da ciência na produção dos bens materiais. A luta política em curso no mundo, e nesses dias no Brasil em particular, em torno da questão das patentes, nos diz claramente que ninguém subestima esse papel da ciência. As reflexões engelsianas sobre as ciências da natureza são, portanto, atuais, e por isso clássicas, por se tratarem de reflexões sobre os problemas atuais, contemporâneos. Resta agora examinar o valor intrínseco dessas reflexões. Mas, antes, comento algumas razões mais conjunturais que levaram Engels à sua preocupação com as ciências da natureza.

Marx e Engels buscaram apoio nas novas aquisições científicas nas ciências da natureza para os conceitos e teorias que haviam elaborado sobre o desenvolvimento da sociedade capitalista. Marx, ao ler A origem das espécies, de Darwin, escreveu para Engels: “neste livro se encontra o fundamento histórico-natural de nossa idéia (2). Não se trata, contudo, de uma perspectiva positivista de estender para a sociedade categorias e métodos próprios das ciências da natureza (no sentido da “física social” comteana), mas, sim, de buscar apoio em outras disciplinas científicas para os conceitos sobre a sociedade, já elaborados com metodologia própria. Trata-se de uma busca de implicações filosóficas mais amplas, decorrentes de certos resultados das ciências da natureza. A posição de Engels sobre a relação ciências da natureza e ciências da sociedade está bem expressa na carta de Engels para Marx (3) onde ele analisa a pretensão de Podolinski, darwinista e socialista ucraniano, de extrair lições das ciências da natureza para a luta pelo socialismo. Após analisar o conteúdo concreto dos problemas postos, Engels concluiu:

“Podolinski, partindo desta descoberta muito valiosa, se extraviou por caminhos equivocados porque esteve tratando de encontrar na ciência da natureza uma nova demonstração da verdade do socialismo, e com isto confundiu a economia com a física”.

Outra razão para a atenção devotada às ciências da natureza foi combater a influência, crescente na segunda metade do século XIX, de associação entre ciências da natureza e um materialismo de tipo mecanicista ou mesmo vulgar. Os porta-vozes dessa identificação eram muitas vezes membros atuantes do próprio movimento socialista, como Büchner, ou então acadêmicos que se pretendiam socialistas, mas divergiam em questões essenciais das formulações engelsianas e marxianas, como Dühring. Foi essa motivação propriamente militante que levou Engels a escrever o Anti-Dühring e a iniciar os estudos sobre a pretendida obra Dialética da Natureza, inconclusa devido ao seu envolvimento com a edição de O Capital, após o desaparecimento de Marx, em 1883.

Com isso, considero infundada a tentativa de certos autores de ver nas preocupações de Engels com as ciências da natureza uma influência positivista, como se Engels, e mesmo Marx, buscassem legitimar as conclusões de seu estudo nas sociedades nos êxitos das ciências naturais, transpondo destas últimas conceitos, teorias e métodos para o estudo da sociedade. No desenvolvimento do marxismo, contudo, cristalizaram-se significativas influências positivistas, indo-se ao ponto de ir buscar nas ciências da natureza (especificamente no materialismo dialético) o fundamento para o estudo da sociedade (materialismo histórico) (4). Não se pode, contudo, encontrar, no próprio pensamento de Marx e Engels, raízes teóricas para essa tendência. No Brasil, no início dos anos 80, essa questão foi levantada por Adelmo Genro Filho que, pretextando a crítica a tendências naturalistas no seio do marxismo, em especial no Materialismo dialético e materialismo histórico, de Stalin, considerou Engels o responsável teórico pelo que denominou de “dogmatismo naturalista”, propondo-se a tarefa de escrever o que chamou de Anti-Engels. A ausência de fundamento para uma tese dessa natureza foi muito bem demonstrada em resposta esclarecedora de Caio Navarro de Toledo, intitulada, significativamente, O anti-engelsismo: um compromisso contra o materialismo (5).

Muitos pensadores marxistas têm, ao longo de todo o século XX, valorizado as reflexões de Engels sobre as ciências da natureza como estudos que estabeleceram uma dialética da natureza. Defendem esse estudo engelsiano pelo seu lado ontológico, isto é, pretendem que Engels teria demonstrado que as leis e categorias dialéticas operam na própria natureza, logo operam também na sociedade e no pensamento. Acredito que tais tentativas procuram o valor desses estudos pelo lado errado, ou, pelo menos, pelo seu lado mais controverso, e deixam de lado o valor maior dessas reflexões, que considerou inquestionável. Tal valor está presente na sua dimensão epistemológica, isto é, enquanto análise crítica do conhecimento científico existente. Deter-me-ei, mais adiante, nesse último aspecto, mas quero antes tecer alguns comentários sobre aquela dimensão ontológica.

O projeto de Engels – fundar a dialética na natureza, ou nas ciências da natureza – é um projeto que tem coerência lógica em termos de unidade e economia do pensamento. A dialética hegeliana era consistente porque se tratava de uma dialética do pensamento, dos conceitos, sendo a realidade material (que, para os materialistas, tem existência independente dos conceitos), para Hegel – expressão do idealismo clássico alemão – uma realização do espírito; logo, das idéias. Para se compreender melhor a consistência da formulação de Hegel, é bom lembrar que ele se voltou contra a pretensão universalizante da mecânica newtoniana, por perceber conflitos entre a dialética e certas visões subjacentes àquela disciplina científica. É bem verdade que fez isso sem muito êxito. Quando Marx busca preservar o núcleo racional da dialética hegeliana, mas considerando que “o ideal não é senão material transposto e traduzido no cérebro humano” ( Marx, O Capital, posfácio da segunda edição), fica colocado o problema de evidenciar o núcleo racional hegeliano no material, e não mais no ideal. Marx e Engels resolveram esse problema com êxito, se considerarmos o material como a história, em especial a história das sociedades humanas. Resolver esse mesmo problema considerando natureza e sociedade era algo inscrito na lógica teórica do programa de Marx e Engels.
Foi também, e nunca será demais frisar, uma tarefa que Marx não chegou a enfrentar, e que Engels deixou inacabada. É também tarefa não isenta de problemas, inclusive teóricos.

“Evidenciar os princípios da dialética na natureza ainda é um projeto aberto”

A principal dificuldade, a nosso ver, é que a busca de princípios dialéticos na natureza passa, obviamente, pela investigação desses princípios nas teorias das ciências da natureza. Dificuldades para identificar esses princípios na formulação dessas teorias sempre poderão ser atribuídas ao insuficiente desenvolvimento da própria ciência. É o caso, por exemplo, da lei da dialética da negação da negação, difícil de ser evidenciada, mesmo em teorias bem estabelecidas. Além disso muitos cientistas contemporâneos argumentam que o coroamento de uma teoria física só ocorre quando tais teorias são axiomatizadas, e axiomas não são, seguramente, os melhores meios para evidenciar princípios dialéticos. Observe-se, nesse sentido, posição de Michel Paty em polêmica com Mario Bunge, quando o primeiro argumenta que Bunge procura a dialética no local errado, nas teorias axiomatizadas – e, como não a encontra, refuta a dialética nas ciências da natureza – quando os aspectos dialéticos foram evidenciados no estudo, ainda recente, do processo de produção das novas teorias (6). Nesse sentido a atitude teórica razoável é considerar o projeto engelsiano de evidenciar os princípios da dialética operando na natureza como um problema aberto ainda hoje, bem menos elaborado do que dialética hegeliana e dialética marxista (materialismo histórico). Penso que as leis da dialética, como enunciadas por Engels, na Dialética da natureza, não podem ser tomadas pelos marxistas como obra acabada, mas como simples ponto de partida para o desenvolvimento da própria dialética (7).

“Insights de Engels prenunciaram as teorias do nosso século sobre a natureza”

O valor atual da reflexão de Engels em Dialética da Natureza deve ser buscado na condição de uma reflexão filosófica sobre a natureza como a conhecemos pelas teorias científicas. Logo, é também reflexão sobre as próprias teorias científicas. É, portanto, epistemologia, compreendida esta última como crítica do conhecimento científico existente. Epistemologia não pode ser identificada à gnosiologia enquanto teoria do conhecimento. Essa última é um problema filosófico mais vasto que, contudo, pode ser instruído pela análise crítica das teorias científicas existentes. Nessa direção, a epistemologia compõe com outras disciplinas (metodologia, história, sociologia) um campo interdisciplinar próprio, só constituído no curso deste século, que permite a análise crítica multilateral do fenômeno ciência moderna. A epistemologia é essencial para a história das ciências e só pode ser adequadamente desenvolvida tomando-se por base a ciência em seu processo histórico. Epistemologia e história das ciências são campos abertos, em desenvolvimento, com significativas contribuições externas ao campo marxista. Veja-se, por exemplo, contribuições, entre outras, de Bachelard, Popper e Kuhn.

A história da própria constituição da ciência moderna, no século XVII, tem se revelado profundamente dialética, mas só nos fins do século XIX e início do século XX evidenciou-se que a ciência moderna tem história sem fim, com sucessão de teorias igualmente científicas. O surgimento de novas teorias pode configurar-se como verdadeira revolução científica. A negação das teorias anteriores tem o sentido da negação dialética, não se tratando de destruição da teoria anterior, mas de delimitação da sua validade. Essa característica foi inaugurada na matemática com as geometrias não-euclidianas, e na física com as teorias relativistas e quânticas.

Dos estudos inacabados de Engels sobre as ciências da natureza, a reflexão mais profunda, a meu ver, é a análise crítica da disciplina científica que havia adquirido um elevado grau de acabamento no século XIX, a mecânica clássica, formulada originariamente por Isaac Newton no século XVII, com desenvolvimentos ulteriores de Maupertuis, Euler, D’Alembert, Lagrange, Laplace e Hamilton, entre outros. Tais críticas foram formuladas em período no qual a “sacrossanta” mecânica newtoniana desfrutava o seu apogeu entre os cientistas, e não se acumulavam problemas que indicassem uma possível crise nos fundamentos dessa teoria.

Apoiando-se exclusivamente em considerações filosóficas de ordem dialética, Engels considerou o tipo de determinismo implícito na mecânica clássica como uma forma de fatalismo (8) e, em uma das mais belas páginas literárias da história da ciência (9), defendendo um universo que evolui, desenvolve-se no espaço e no tempo, criticou a mecânica newtoniana pela sua cosmologia (logo, pela sua visão de mundo implícita) estacionária, sem história, sem desenvolvimento, enfim, um mundo dominado por uma descrição fatalista.

O leitor, instruído cientificamente pelas aquisições da física do século XX, verá nesses insights engelsianos um prenúncio das teorias relativistas e quânticas, e da cosmologia do nosso século, admirando-se, portanto, da imensa atualidade das idéias engelsianas nas ciências da natureza e, principalmente, admirando-se do valor, para o desenvolvimento da cultura, da análise crítica dos conhecimentos científicos existentes. No seu esforço de crítica ao que poderíamos chamar de newtonianismo, nem sempre Engels formulou os melhores argumentos (10), mas a fraqueza destes, revelada apenas com o desenvolvimento ulterior da ciência e da história da ciência, não diminui o valor atual dos manuscritos inacabados de Engels enquanto obra crítica, em especial de crítica ao mecanicismo.

Arrisco a conjectura de que se a Dialética da natureza tivesse sido efetivamente publicada em fins do século passado, seu impacto na cultura e na ciência teria sido comparável à influência – suprema ironia para a história do marxismo – da crítica à mecânica desenvolvida por Ernst Mach. Suprema ironia porque, como se sabe, Mach foi um dos principais alvos da crítica de Lênin no Materialismo e empiriocriticismo. A crítica de Lênin dirigia-se, contudo, ao Mach filósofo, e não ao Mach físico, como, aliás, ressaltado por Lênin. A contribuição de Mach a que me refiro prende-se precisamente à sua crítica epistemológica à mecânica newtoniana, e contribui para abalar a confiança ilimitada que se tinha na ciência newtoniana e, desse modo, ainda que indiretamente, para abrir caminho ao surgimento da teoria da relatividade.

Detive-me, até aqui, na consideração das reflexões de Engels sobre as ciências da natureza, deixadas em estado inacabado nos fragmentos da Dialética da Natureza. Elas têm uma inequívoca dimensão filosófica, mas não esgotam a reflexão filosófica própria de Engels, presentes em obras como Anti-Düring e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Não pretendo elaborar sobre essa dimensão mais abrangente da obra de Engels, também objeto de intensas e prolongadas controvérsias na história do marxismo, mas comentar um aspecto que me parece objeto de reiteradas incompreensões. Trata-se do sentido da atitude crítica de Engels face à obra de Kant.

“Engels criticou aspectos da obra de Kant, mas não esqueceu o papel do sujeito consciente”

A crítica de Engels se volta contra o agnosticismo e o apriorismo kantianos, e não contra o papel ativo do sujeito na elaboração do conhecimento (11). Isso não foi bem compreendido por vastos círculos do marxismo do nosso século, que retrocederam, no terreno da teoria do conhecimento, da posição engelsiana para uma posição empirista, a exemplo da consideração da “teoria do reflexo” como um sucedânea para uma teoria do conhecimento. A defesa do materialismo, ou do realismo, face ao idealismo, ou à sua vertente convencionalista, não é incompatível, contudo, com um papel ativo do sujeito. No que pesem imprecisões, ou mesmo insuficiências, nas formulações filosóficas de Engels, Marx e Engels não eram empiristas, nem indutivistas; ao contrário, defendem a história, e não qualquer critério lógico, como garantia de que o conhecimento pode representar o real, pois é dele, em última instância, derivado. Marx sustentou que “a questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática”, na segunda tese das Teses sobre Feuerbach (12). A propósito, observo que a complexidade da elaboração de uma teoria do conhecimento foi melhor compreendida por Lênin não quando da elaboração do Materialismo e empiriocriticismo, em 1908, mas sim a partir de 1914, quando aprofundou seus estudos em filosofia, lendo Hegel e Aristóteles, por exemplo. Entre suas anotações, não desenvolvidas ulteriormente (13), encontramos fragmentos que revelam uma compreensão sobre a questão mais aprofundada que aquela formulada em 1908. A incompreensão, no âmbito do marxismo, que aqui apontamos, revelou-se ainda grave porque toda a ciência do século XX aprofundou a natureza abstrata (ideal) do objeto das ciências, com a matemática adquirindo, no caso das ciências da natureza, verdadeiro papel criador de conhecimentos novos, e não de mero instrumento para expressar idéias concebidas clara e intuitivamente (14).

As formulações de Engels sobre a ciência da natureza são, portanto, de grande significado para a história e a filosofia contemporânea das ciências. São reflexões a serem incorporadas ao patrimônio teórico do marxismo, evitando tendências, presentes no nosso século, seja de reduzir as ciências naturais a meros integrantes das forças produtivas, desconsiderando sua dimensão cultural mais ampla, seja de reduzi-las a meros reflexos ideológicos, equívoco presente no fenômeno, de triste lembrança do lyssenkismo (15). Compreender a relativa autonomia do desenvolvimento científico seria uma aquisição duradoura para o futuro do socialismo. Exemplo prático dessa compreensão, a ser incorporada positivamente ao legado do marxismo, foi a atitude de Lênin face à Academia de Ciências, herdada da época czarista, nos primeiros anos do jovem poder soviético. A manutenção da Academia de Ciências, de sua autonomia e de seus quadros científicos, mesmo nas difíceis condições materiais de uma guerra, revelou compreensão de que a ciência se apóia no tênue fio da continuidade. A sabedoria de Lênin foi mais avançada que a dos revolucionários franceses de 1789, que fecharam a tradicional Academia de Ciências de Paris (16).

Concluo afirmando que Engels é precursor de uma disciplina cujas características ainda não estão plenamente configuradas, que toma por objeto de estudo, para uma análise crítica, a própria existência moderna. Uma crítica marxista à ciência moderna contribuiria para retirar sustentação de correntes irracionalistas (ditas pós-modernas) que se apóiam no sentimento dos que têm presenciado as explosões atômicas e os desastres ecológicos e resvalam para o equívoco da crítica unilateral ao papel das ciências nas sociedades contemporâneas.

* Doutor em História pela USP e professor do Instituto de Física da UFBA. Este artigo é uma versão da exposição feita na PUC/SP no seminário dedicado ao centenário da morte de Engels e na 8ª Conferência Nacional do PCdoB.

Notas

(1) Ver, em especial, Carta de Engels a Marx, 30-05-1873, com o projeto de escrever sobre a dialética nas ciências naturais, e de Marx a W. Liebknecht, 07-10-1876, sobre sua opinião acerca do significado do projeto de Engels. In MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Cartas sobre las ciencias de la natureza y las matematicas. Barcelona: Anagrama, 1975, p. 78-80 e 89. A maior competência de Engels para executar tal projeto está bem evidente, por exemplo, nas discussões sobre o valor da obra de Pierre Trémaux, sobre o papel do mecanismo da evolução; ver nas cartas de Marx e Engels, 07-08-1866, 13-08-1866, 31-1001866; de Engels e Marx, 10-08-1866, 02-10-1866 e 05-10-1866, e Marx a L. Kugelmann, 09-06-1866. In Cartas, p. 48-57.
(2) Carta de Marx a Engels, 19-12-1860. In Cartas, p. 22.
(3) Cartas de Engels a Marx, 19-12-1882, In Cartas, p. 109-112.
(4) Para uma exposição mais desenvolvida de meu pensamento sobre essa questão, ver FREIRE JR., Olival. Sobre “As raízes sociais e econômicas dos “Principia de Newton”, Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, 9, p. 51-64, 1993.
(5) GENRO FILHO, Adelmo, “Introdução á crítica do dogmatismo”, Teoria & Política, 1, 1980, 81-95, e “Sobre Engels e o dogmatismo”, Teoria & Política, 3, 1981, 112-144; TOLEDO, Caio Navarro de . “O antiengelsismo: um compromisso contra o materialismo”. Teoria & política, 2, 1980, 91-116. Agradeço a Duarte Pereira por ter chamado a minha atenção para esse relevante debate.
(6) PATY, Michel. “Note sur la dialectique et l’evaluation des theories”. La Pensée, 188, p. 125-7, 1976.
(7) Um estudo circunstanciado e recente, nessa direção, é o de BRANCO, João Maria de Freitas. Dialética , ciência e natureza – Um estudo sobre a noção de “dialética da natureza”, no quadro do pensamento científico moderno. Lisboa: Editorial Caminho, 1990. Esse interessante estudo ressente-se de uma dificuldade, talvez inevitável, de uma compreensão superficial sobre certos tópicos da história do pensamento científico. É o caso da controvérsia sobre a interpretação da física quântica, onde o autor identifica a posição de Engels face ao problema de determinismo, com as posições de Einstein e Planck. Argumentei, em outro lugar, que a posição de Engels e de Gramsci sobre essa questão seria mais próxima da posição de Niels Bohr e de Paul Langevin. Ver FREIRE JR., Olival. Estudo sobre interpretações (1927-1947) da teoria quântica: epistemologia e física, dissertação de mestrado, USP, 1991, publicado em HAMBURGER, A. I. (org.). Caderno sobre ensaio de conceitos em Física, v. III, USP, 1991; FREIRE JR., Olival. “L’interpretation de la mécanique quantique selon Paul Langevin”, La pensée, 292, 117-134, 1993.
(8) ENGELS, Friedrich. Dialética da natureza. Rio de Janeiro: Paz e terra, 3ª ed, 1979, p. 177-180.
(9) Prefácio da Dialética da natureza.
(10) A exemplo da defesa que faz da hipótese da nebulosa, formulada por Laplace; e da sua dúvida quanto à autoria de Newton na elaboração do cálculo diferencial de forma independente de Leibniz. A análise, no século XX, de manuscritos newtonianos até então desconhecidos nos revelou que aquele Newton criticado por Engels era mais precisamente o Newton que nos foi transmitido pelo século XVIII que uma reconstituição da obra newtoniana. Ver WESTFALL, Richard S. A vida de Isaac Newton. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
(11) Para uma análise mais detalhada desta questão ver DAN, Clara. “Empirismo y realismo de Marx a Piaget”, in GODELIER et alii. Epistemologia y marxismo. Barcelona: Martinez Roca, 1974, p. 180-209.
(12) Escritas por Marx em 1845, mas só publicadas em 1888, após a morte de Marx, por Engels, como apêndice à edição de seu livro Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.
(13) Publicadas postumamente com o título Cadernos filosóficos.
(14) Para uma análise atual dessa questão ver livro de Michel Paty A matéria roubada, São Paul, Edusp, 1995.
(15) Para uma análise desse aspecto ver FREIRE JR., Olival. “Ciência e filosofia na experiência socialista”. Princípios, 21, 1991, p. 70-78.
(16) Ver GRAHAM, Loren. Science in Russia and the Soviet Union. Cambridge University Press, 1993.

EDIÇÃO 39, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 28, 29, 30, 31, 32