A passagem da Coluna Prestes pelos sertões deixou marcas profundas. Decorridos 70 anos, ainda povoa as lembranças dos povos mais antigos. Viajando pelo interior do nordeste, sempre encontrei alguém disposto a contar casos do tempo dos revoltosos (1).

O que foi, para os nordestinos, a Coluna Prestes? Muitos homens barbudos, lutando contra o governo, montados a cavalo, armados, lenço vermelho no pescoço, carentes de banho e roupa limpa, com sotaque esquisito, dispostos a tudo, sempre escapulindo, quebrando o sossego de todos, levando as montarias que encontravam, “requisitando contribuições”, carneando bois e cabras com incrível agilidade para churrascos apressados, dando os maiores prejuízos. Cidades abandonadas às pressas, gente escondendo os seus pertences. Mulheres chorando, pedindo aos santos; crianças excitadas com o reboliço, outras transtornadas com a perda de seu carneiro de estimação… Homens corajosos prometendo resistir, alguns recebendo dinheiro, armas e patentes do governo para combater; homens prudentes, convidando os revoltosos a comer em suas mesas…

O sertão nordestino viveu grandes agitações entre 1925 e 1926. E quando no rastro dos soldados de lenço vermelho vinham os soldados do governo, os legalistas, as atribulações pareciam não ter fim: homens arrogantes, nervosos, violentos, exibindo uma autoridade desregrada, fazendo questão de mostrar tudo que podiam. Era, então, mais difícil evitar roubos, bebedeiras, estupros, desmandos de toda ordem. Muitas vezes, ninguém podia segurar os homens do governo.

Para os letrados do litoral, das grandes capitais, a Coluna foi outra coisa: um dos mais importantes acontecimentos políticos do Brasil republicano. Não um movimento comunista como muitos hoje pensam. Na época Prestes era uma capitão do Exército que nada sabia de comunismo. Nem uma manifestação tenentista como as outras, quarteladas frustradas, sem dia seguinte. Sim, um movimento com um espectro mais variado de figurantes, duração mais prolongada (cerca de dois anos), despertando mais simpatias nos meios urbanos, derramando mais sangue. Um audacioso gesto de rebeldia contra o domínio oligárquico. A tradição literária, a partir da idéia de que o Exército seria “porta-voz” de setores da sociedade civil, consagraria a Coluna como um protesto radical de classes médias urbanas emergentes numa sociedade em confronto cada vez mais acirrado com a ordem estabelecida. Estudos mais recentes, sem negar necessariamente os reflexos dos conflitos sócio-políticos sobre o movimento dos oficiais do Exército, realçariam o seu conteúdo corporativista.

Qualquer que seja o resultado do debate sobre a natureza do tenentismo, cabem poucas dúvidas sobre a importância da marcha dos revoltosos no cenário brasileiro de então. Nenhuma outra manifestação política dos anos 1920 mostrou capacidade de degaste do poder e das instituições como a Coluna. Os revoltosos obrigaram o presidente Arthur Bernardes a governar permanentemente sob estado de sítio e condicionavam a ação do seu sucessor, Washington Luiz. Alimentaram, enfim, as esperanças de alteração de vida do país, ajudando a compor o ambiente para a grande ruptura de 1930.

Um dos aspectos mais notáveis desse movimento foi a sua capacidade de apresentar heróis ao país. No meu entender, aí está a sua consequência maior: os comandantes dessa expedição militar ganharam legenda bastante para influenciar fortemente a dinâmica política nacional por décadas. Da Coluna saiu o mais influente líder de esquerda brasileira do século XX. Da Coluna saíram igualmente lideranças da Revolução de 1930, autoridades de destaque do Estado Novo, golpistas, conservadores dos anos 1950 e ministros da feroz ditadura militar instaurada em 1964. Luis Carlos Prestes, Miguel Costa, Juares Távora, João Alberto, Cordeiro de Farias… Homens com pensamentos e destinos bem diferentes, mas com algo em comum: nenhum dispensou o porte do glorioso título, credencial de firmeza e valentia na defesa de ideais.

Os acontecimentos geradores de heróis são momentos privilegiados, intensos, da eleboração ideológica. Herói é simbolo, e os símbolos são gerados (ou “construídos”, na expressão usada por Lucien Febvre nos anos 1920 e posta em moda, na atualidade, por Derrida) num processo complexo, multifacetário, onde a criatividade humana está potencializada como resultado da agudização de conflitos sociais. No surgimento dos heróis, pouco vale a canhestra e desmoralizada “verdade dos fatos” no sentido em que falam os historiadores tradicionais. Na elaboração dos símbolos, os “fatos” são criados, recriados, selecionados, omitidos, obscurecidos, realçados, enfim, vistos e revistos ao sabor das tendências epistemológicas ou do andamento do embate político-ideológico.

O herói tem obrigatoriamente algo fantástico, de sobrenatural. Assim como seu oposto, o vilão pode e deve ter traços de homem comum, jamais pode ser um homem comum. Do contrário, não cumpre o papel sócio-político a que está destinado: o de galvanizar atenções, portar bandeiras, legitimar ordens estabelecidas, representar causas. Ou ainda de servir de modelo, inspirar comportamentos paradigmáticos a membros de um coletivo. Historicamente, no ocidente, a origem dos heróis confunde-se com o surgimento dos conceitos de puro e impuro, do bem e do mal. Num momento posterior, a figura de herói aparece nas elaborações sobre o falso e o verídico. O herói, tal como os Deuses, sempre serviu como referencial de identificação coletiva. Tribos, nações, classes sociais, exércitos, corporações, seitas, partidos… Que movimento, grupo social ou entidade pode dispensá-lo?
Heróis e vilões fascinam e metem medo. Encantam uns, apavoram outros, provocando controvérsias sem fim. Forjar suas imagens, reafirmá-las, desconstruí-las ou retocá-las sempre constituiu, conscientemente ou não, atitude geradora de consequências políticas importantes e doloridas: não apenas ensejam revisão e ideários, mas interferem no delicado campo da afetividade. Os homens amam seus heróis, e a emocionalidade é dificilmente reprimida quando suas imagens são levadas a exame. O admirador do herói está sempre pronto a ver como iconoclastia qualquer comentário sobre o seu ídolo que não seja louvaminheiro.

Produtora de heróis, a Coluna tem sua história necessariamente envolvida em versões fantásticas. Mas não foi por sortilégios que o movimento viveu os seus momentos mais espetaculares no sertão nordestino. Para o Brasil letrado, urbano, litorâneo, o interior do Nordeste foi sempre terreno fértil de lendas. Aos seus olhos, essas paragens ermas e exóticas constituem o ambiente onde tudo poderia acontecer. Muitas fontes ensinaram isso ao Brasil letrado; os relatos de naturalistas estrangeiros horrorizados, como Spix e Martius; as páginas emocionantes de Euclides da Cunha, tão primorosas no estilo quanto carregadas de positivismo e racismo, dando conta de “retardatários da civilização” ou de “refratários à racionalidade”. Os romances, reportagens e filmes sobre paisagens escaldantes, impróprias à vida humana, cangaceiros desalmados, beatos ensandecidos, padres milagreiros… Nesse ambiente, a Coluna consolidou sua marca mais nobre, a do punhado de heróis morrendo e matando para o bem do Brasil (2).

A verdadeira ameaça à Coluna eram os jagunços. Tensão e tiroteios aumentam no Ceará

Em terras do Sul, para onde se dirigiram após as insurreições tenentistas de 1924, os revoltosos não chamariam tanta atenção. Estavam num meio marcado, de longa data, por refregas de tropas, regulares ou não. Pouco se distinguiram dos elementos de instinto separatista, perturbadores da idéia de nação, ameaçadores da ordem republicana, sem ideais maiores. Confundir-se-iam com chimangos e maragatos. Não se destacariam facilmente dos dispositivos de caudilho que não sabiam viver sem lutar, sempre empolgados por motivos pequenos, disputas pelo poder local, rixas, brigas de terra, tudo entremeado com roubos de gado, crimes pessoais (ou de honra) e degolas sinistras. Tanto mais que esses dispositivos, no Rio Grande do Sul, haviam tomado parte efetiva nas insurreições que deram origem à Coluna.

Subindo rumo ao Norte, desde a Foz do Iguaçu, de onde iniciou o seu trajeto atravessando o imenso vazio que era o Brasil central, cortando as matas de Goiás, escapando da perseguição, das tropas do eficiente coronel Bertoldo Klinger, com as quais haviam gastado muita munição preciosa, os revoltosos mostrariam a todo o país que não se prendiam a conflitos localizados. Intrigariam uma opinião urbana acostumada a rebeldias de curta duração. Mas, na marcha ousada, ainda percorriam um imenso vazio demográfico, descobrindo antigas trilhas de bandeirantes. Nessas selvas onde o telégrafo e a estrada de ferro não haviam chegado, não encontrariam obstáculos maiores. Nem provocaria desdobramentos políticos relevantes.

Pelejando no Nordeste, tudo seria diferente. Aí, nos exóticos sertões do semi-árido brasileiro, os revoltosos, que nunca tiveram no Exército e nas políticas militares adversários à altura (ou com efetiva disposição de lutar), enfrentariam os seus mais temíveis contendores, os vaqueiros-camponeses-guerreiros, a que a visão preconceituosa estigmatizou como jagunços. Como a sociologia está em débito com essa figura! Foram esses os homens que efetivamente ameaçaram a expedição rebelde. Aí também receberiam as únicas adesões mencionáveis de todo o trajeto, percorreriam as maiores distâncias e viveriam os momentos de maior privação. Enfim, experimentariam e exibiriam, à fartura, situações repletas de ingredientes com que os homens têm fabricado heróis ao longo da história: sangue e sofrimento, perigo e coragem, força e obstinação, astúcia e destreza, honra e traição.

As etapas maranhense e piauiense do percurso dos revoltosos não teriam todos esses elementos. Aí houve pouca luta, pouco sangue, quase nenhuma privação. Na época esses estados eram refrigérios, área de refúgio, obrigando a população desfalida pela crise pecuária extensiva do Nordeste Ocidental interminavelmente prolongada, que ganhou o nome de “seca”. A decantada pobreza não significava, ainda, falta de comida. Ninguém passou sem carne, leite, mel, e os cajueiros e umbuzeiros estavam carregados.

É no lado cearense da Ibiapaba que surgem mais dificuldades: sede, pouca comida, hostilidades, tiroteios fatais. E também a tensão, a expectativa de combate (não confirmada) contra homens de Floro Bartolomeu e do Padre Cícero – entre eles, Lampião, que não era homem do Padre, mas não lhe faltava em consideração.

Revoltosos percorreram mais de vinte mil quilômetros, número impressionante até hoje

No trecho que se inicia na descida da ladeira dos Miuns, serra do Pereiro, fronteira do Ceará com o Rio Grande do Norte, começam efetivamente os grandes transtornos. Muita fome muita sede, povoados vazios, emboscadas traiçoeiras, franco-atiradores infalíveis, como no tempo de Canudos. Sertanejos caíam sobre os revoltosos com o mesmo ímpeto e desassombro com que, anos antes, enfrentaram a “fraqueza do governo”. Perseguições implacáveis, comandadas por chefes experimentados, pagos pelo governo. Homens conhecedores do terreno e do jeito da população, ladinos, mestres da dissimilação, como Horácio Matos, Franklin Albuquerque, Abílio Wolney. Últimos herdeiros das melhores tradições de guerra do sertão pecuarista, assumiram, na literatura, lugar de destaque na lista de vilões. O cortejo de padiolas aumenta sem parar, exigindo esforços sobre-humanos para evitar o gesto indigno: largá-las no caminho,. E, pior, insuportável, o que deixa a luta sem perspectiva e levanta dúvidas sobre o valor do sacrifício: a confirmação do fracasso dos esperados levantes militares urbanos.

É nesse pedaço semi-árido, em guerras do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e sobretudo Bahia, que os revoltosos empreenderiam manobras táticas geniais e mostrariam obstinação para nenhum aedo reclamar. Prestes à frente, guiando tudo, pavimentando sua trajetória de mito. Os revoltosos desdobraram-se em antológicos gestos de astúcia, audácia, grandeza, firmando em definitivo a condição de heróis que carregariam pelo resto de suas vidas. Plantaram lendas no ritmo com que percorreram mais de 20 mil quilômetros. Só a distância vencida bastaria para impressionar. Uma das mais extensas marchas militares da história da humanidade! Aníbal, Bolívar, Mao Tsetung teriam concorrentes entre os jovens oficiais do Exército Brasileiro.

A relativa tranquilidade do trecho maranhense-piauiense, não seria, entretanto, impeditivo à fabricação de lendas. Ao contrário, foi um dos momentos em que a imaginação ficou mais acerba. Governo e revoltosos, elite e povo, literatos e analfabetos tudo fantasiaram. Ou quase tudo. A começar pelo famoso combate do Uruçuí, nas margens do Parnaíba, que nunca aconteceu. Nessa cidade, assim como em Benedito Leite, do lado maranhense, mil soldados governistas (Exército e polícias militares de diversos estados), fortemente armados e entrincheirados, tendo à frente o chefe de polícia do Piauí, Jacob Manuel Gaioso Almendra, aguardavam os revoltosos (3).

Autoridades posaram até o fim de seus dias de defensores e heróis da população angustiada

Para esse ponto do rio Parnaíba o comando da Coluna encaminharia um destacamento de 200 homens, precariamente armado e municiado, comandado por Djalma Dutra. Aproximando-se de Benedito Leite ao anoitecer do dia 7 de dezembro de 1925, esse comandante revoltoso desloca uma pequena patrulha de observação que é recebida pelos governistas entrincheirados. Mal os observadores iniciaram uma resposta, os governistas entraram em pânico, fugindo em desabalada carreira. Ao amanhecer do dia 8, não havia mais nem sombra da força legalista que, para alegria dos revoltosos, deixara armas, munição, montarias, mantimentos e vergonha.

Posteriormente, o comandante Gaioso Almendra (fascinado pelas tradições medievais da Espanha, esse oficial mudara o nome para Gayoso y Almendra) tentaria explicar-se, salientando a superioridade e a ferocidade dos rebeldes. Mas, de fato, não houve combate. Morreram mais homens na fuga alucinada, afogados no rio Parnaíba ou perdidos entre as cascavéis no areial das chapadas do Sul do estado, que de tiros dos revoltosos. O episódio serviria à pena de Lourenço Moreira Lima, o secretário de Estado da Coluna, que tudo descreveu usando de mordaz ironia, sem deixar de comparar a derrota de Gaioso ao monumental fiasco de Moreira Cesar em Canudos…

Fantasiado foi também o famoso “cerco de Teresina” nos últimos dias de dezembro de 1925. Matias Olímpio, o governador, insistiu até o final de seus dias em posar de defensor de sua capital, que os revoltosos queriam invadir. O alarmado general João Gomes que, de São Luís, comandava a festa governista, havia transformado Teresina numa praça de guerra com 4.000 soldados, muito armamento e munição. Quilômetros de trincheiras defendiam a capital do Piauí. Inseguro, o general chegou a propor às autoridades federais a evacuação da população civil. Matias Olímpio não concordou. Nas trincheiras, mal anoitecia, sodados apavorados gastavam toneladas de munição contra um inimigo distante, invisível. A população, impressionada com os preparativos bélicos das autoridades e com o tiroteio infernal, viveu apenas de terríveis angústias, muitas famílias fugindo desesperadas, carregando apressadamente os seus pertences, rio abaixo, em balsas improvisadas.

Muitas ameaças de invasão não passaram de blefes para despistar os governistas e prosseguir

Ora, os revoltosos nunca cercaram Teresina, nunca planejaram a sua invasão e, menos ainda, reuniam condições operacionais para a proeza. Ao iniciar o seu trajeto piauiense, a Coluna já era uma tropa experimentada em muitos combates, tinha um efetivo estabilizado em torno de 1.100 homens e uma estratégia definida. Nessa estratégia, o que importava era o deslocamento permanente, não a conquista de posições. A Coluna não procurava o confronto, sobretudo com fortes concentrações de forças legalistas. O seu objetivo era prolongar ao máximo a duração do protesto armado, na esperança da eclosão de rebeliões militares nos centros urbanos. Como resumiu Cordeiro de Farias, um dos mais destacados comandantes revoltosos: “nossa estratégia era durar” (4).

Os rebeldes já haviam abandonado a ilusão de garantir o controle de um território como base operacional. A rigor, nunca haviam pensado seriamente no assunto. A última vez em que levantaram a possibilidade tinha sido no Maranhão, único estado onde a Coluna foi de fato “bem recebida”.

Passaram em áreas distantes de São Luís, onde o poder estadual mal se fazia presente. Aí foram recebidos com manifestações de simpatia de chefes do interior, homens que não pensavam em reformar o país, mas que desejavam derrubar o governo do estado, como Manuel Bernardino, que durante alguns dias esteve do lado dos revoltosos acompanhado por 200 homens armados de rifles…

O cerco a Teresina seria o abandono da tática da Coluna, que era de evitar confrontos, sobretudo com forças superiores. Na verdade, ainda no Maranhão, o comando rebelde havia deliberado chegar o mais rápido possível ao Ceará, onde militares e familiares de Juarez Távora acenavam com possibilidades de uma insurreição em Fortaleza. O Piauí, portanto, nada mais era para os revoltosos que o caminho para chegar ao Ceará. Conversei com Prestes sobre o “cerco” de Teresina. Ele, enfático:

“Essa pretensão não existiu. Só nos aproximamos da capital do estado porque foi onde o Gaioso parou. Ele veio correndo desde Uruçuí, nós viemos atrás dele. Quando estávamos ainda a 40, 50 quilômetros de Teresina, ouvimos o tiroteio. Os companheiros, como João Alberto e Siqueira Campos, faziam troça até: ‘estão gastando a nossa munição’. (…) Não atacamos: fomos até as primeiras trincheiras, mas logo em seguida nos retiramos. (…) Foi muito pequena a demora aqui, só o tempo necessário para que a tropa que estava no Maranhão passasse, atravessasse o rio, pudesse reunir com a outra e reorganizássemos a marcha em direção ao Ceará” (5).

A propalada tentativa de invasão de Teresina não passou de uma manobra diversionista, um blefe bem sucedido, como dezenas de outros concebidos por Prestes, para que as tropas governistas ficassem concentradas em determinado ponto, deixando sem defesa os locais onde os rebeldes pretendiam efetivamente passar. Enviando alguns soldados às trincheiras de Teresina, Prestes fez com que o interior do Piauí e boa parte do Ceará ficassem desguarnecidos. Mas o governador Matias Olímpio e o bravo general João Gomes jamais admitiriam o logro. Depois de fazer a população passar por tantos vexames? Depois de espalhar pelo país a notícia de suas corajosas posturas em defesa da população e da ordem?

As versões fantasiosas também serviam aos revoltosos. Espalhariam imagem de força e luta

A situação do bispo D. Severino de Melo também ficara delicada. Numa atitude de desprendimento por todos enaltecida, o prelado havia procurado o inimigo para pedir que abandonasse o “cerco” de Teresina! Dois dias antes da visita de D. Severino, o destacamento encarregado de fazer demonstrações nas trincheiras da cidade, sob comando de João Alberto, já havia recebido ordens de retirar-se rumo ao Ceará. Como ficaria o bispo se todos soubessem que sua intervenção nada teve de “decisiva”, e que, na verdade, perdeu seu tempo? E, mais grave ainda, que os inimigos o utilizaram como instrumento de manobra, mandando através dele recado, segundo o qual a cidade ainda poderia ser vítima de alguns ataques, tendo em vista que não havia como enviar, em tempo hábil, uma contraordem ao comandante João Alberto?

Melhor seria que a história registrasse a inexcedível bravura e o desprendimento com que se houveram, em transe tão doloroso, o governador, o general e o bispo. Ficasse, pois, consignado: os revoltosos “cercaram” Teresina e a invasão da cidade foi corajosamente repelida. A versão também não faria mal aos revoltosos: Brasil afora correria a notícia não só de seu arrojo, como de sua força, capaz de cercar uma capital defendida por mais de 4.000 soldados fortemente armados e entrincheirados! Não poderia haver melhor desmentido às insistentes afirmações de autoridades federais, dando conta de que os rebeldes estavam nas últimas, isolados, famintos, frustrados.

Os acadêmicos, ao escreverem sobre a Coluna, também criam suas histórias. Com suas teses e pesquisas, desfazem algumas lendas, criam ou reforçam outras, não abdicando da parte que lhes cabe na fabricação de mitos. Alguns resolveram alçar os revoltosos à condição de guerrilheiros! Os revoltosos, que o tempo todo faziam questão de manter, às vezes com caricaturas grotescas, a fisionomia, a estrutura, os princípios hierárquicos e a prática de um exército regular! Que não tiravam os distintivos do Exército Brasileiro! Eles, que nunca pretenderam, como sói acontecer aos guerrilheiros, destruir um exército intruso a serviço de um opressor! Que não conheciam o cenário da luta e que jamais buscaram ganhar a adesão do povo porque confiavam na apregoada índole libertária, democrática e popular de sua corporação, a corporação dos apóstolos da pátria, a única capaz de garantir um belo destino ao Brasil (6)!

Na concepção moderna, guerrilha tem apoio do povo e é braço armado do movimento político

A Coluna, sem dúvida, empregou algumas táticas usuais na luta de guerrilha: fustigar e fugir, armar-se com o suprimento do inimigo etc. Na chamada “guerra de movimento”, Prestes mostrou que havia assimilado a experiência das contendas entre chimangos e maragatos. Daí a ser considerada movimento guerrilheiro, cuja forma organizacional difere radicalmente do exército regular, é ou desaviso ou licensiosidade própria dos criadores de mito. Guerrilha, na acepção moderna, é braço armado de movimento político, vive do apoio do povo, exprime um sentimento enraizado na população e disso tira a sua força. Leva a vantagem do conhecimento pormenorizado do terreno. Guerrilheiro age sempre politicamente, objetivando ampliar a adesão popular. Do ponto de vista militar, é movimento essencialmente defensivo. Quando chega ao ponto de querer destituir o governo, deixa de ser guerrilha, ganha dimensão e formato de exército regular. Que movimento político, que partido teve a Coluna como braço armado? O movimento tenentista, o partido militar. Quanto ao “povo” que, sensibilizado pelas idéias liberais de voto secreto e liberdade de imprensa, batia palmas para a Coluna, não estava nos sertões devastados pelos revoltosos.

Interessante é verificar que, na época, os militares insurretos proclamavam-se “revolucionários” ou “conspiradores”, não fazendo nítida distinção entre os dois termos. Aceitavam ainda a expressão popular revoltosos. Ninguém se lembrou de batizá-los de guerrilheiros. Décadas depois, a guerrilha popularizada no continente como movimento de libertação nacional e democrático e os militares de carreira como o seu contrário, alguns apresentam a Coluna como movimento guerrilheiro. Mas essa lenda da “Coluna Guerrilheira” é apoiada em outra, a da adesão popular. Pesquisadores e revoltosos afirmam que isso ocorreu pelo menos em dois estados, Maranhão e Piauí. Já fiz referência à adesão que os revoltosos conseguiram na Maranhão. Quanto à adesão de piauienses, indaguei a Prestes, e o velho comandante esclareceu:

“Tivemos a ilusão, que também teve o companheiro Guevara alguns anos mais tarde, de que, nessa região, teríamos adesões. Mas não tivemos. Aqui, simplesmente fomos recebidos de maneira cordial pela população. Noutros estados a população fugia, alertada pela propaganda que o governo fazia. Essa foi a diferença. Aqui (no Piauí) tivemos algumas adesões de crianças, jovens de 12, 14 anos”.
Na lembrança de Prestes, a acolhida “cordial” dos piauienses. Na memória popular, as atribulações infernais de uma guerra que não compreendiam…

Não penso que Prestes, referindo-se à “cordialidade” dos piauienses, estivesse conscientemente alimentando a mitologia em torno da Coluna. O que tinha presente, muito provavelmente, era a grande diferença encontrada pelos revoltosos entre o percurso piauiense e o trecho iniciado na serra do Pereiro. No Piauí, os tiros não incomodaram os revoltosos tanto quanto o mosquito transmissor da malária. Era época de chuva, e o vale do Parnaíba estava infestado. Mais da metade dos rebeldes foi contaminada.

Guevara sempre visou ao levante de massas mobilizadas pelo exemplo dos homens que o seguiam

Já na comparação com Guevara e na afirmação de que a fuga da população era decorrente da “propaganda que o governo fazia”, Prestes usa a imaginação. As “ilusões” dos revoltosos nada tinham a ver com as “ilusões” de Guevara, que nunca teve em mira manifestações de quartel, mas levantes de massas mobilizadas pelo exemplo do punhado de homens que o seguia. Na Bolívia, Che frustrou-se porque a população não o acompanhou. No Brasil, os homens da Coluna frustraram-se outras razões, já que não tomavam a ação de massas como força capaz de derrubar o governo e impor reformas.

Poucos e limitados foram os seus gestos para atrair a simpatia das populações. Aliás, estavam apressados, não teriam tempo para isso. A derrubada do governo seria tarefa da parte “sadia” do Exército. Os revoltosos encerraram sua marcha, no início de 1927, quando sentiram que os quartéis não se pronunciaram. Quanto à fuga da população, essa tinha motivos mais sérios do que a “propaganda que o governo fazia”, num tempo sem rádio nem, televisão. Vale lembrar, os sertanejos nordestinos não tinham motivo para acreditar no governo, e menos de três décadas separavam Canudos da Coluna. O povo fugia por conta das informações recebidas das áreas visitadas pelos revoltosos, onde era difícil sobrar cavalo, boi, carneiro, galinha e milho nos paióis. E também porque não adiantava lutar contra soldados de corpo fechado.

“Torcendo os fatos”, Prestes foi desonesto? Não vejo assim. Recorrer à investigação da moralidade dos líderes nunca ajudou a compreensão dos processos políticos. A interpretação de um episódio como a Coluna não cabe no colete cambiante dos critérios morais. Em política, noções sobre o certo e o errado sempre foram movediças, variando conforme a época, o lugar, a cultura, as circunstâncias e, sobretudo, as forças em disputa. Sintetizando a experiência milenar e, em particular, o espetáculo da transformação de valores ensejado pela ascensão da burguesia, quando tudo o que era sólido desmanchava-se no ar, Marx já dizia, no Manifesto Comunista, que quem doutrina dita o certo e o errado para o conjunto da sociedade. E os que não têm o poder, mas almejam alcançá-lo, devem rever os conceitos estabelecidos.

Prestes apresentava os fatos de um ângulo particular, diferente do ângulo do governador, do general e do bispo, das forças que se opunham à quebra das regras institucionais da Primeira República. O seu jeito de ver os feitos dos revoltosos era, em essência, o mesmo dos comunistas e de praticamente toda a mais destacada intelectualidade nacional, de Jorge Amado a Carlos Scliar, de Niemeyer a Raul Bopp. Todos, ao longo de décadas, mesmo admitindo as “limitações políticas” dos revoltosos, ou, mais complacentemente, vendo o seu protesto como “arroubo juvenil”, exaltaram as suas proezas em prosa, verso, panfleto e desenho. Agiram desonestamente? Estavam iludidos? E o chileno Neruda, autor do mais belo canto ao herói Prestes, que razão teria para engodar seus admiradores brasileiros? Ora, tomavam posição política concreta diante de circunstâncias definidas, defendendo, a seu modo, o ideal de mudança no país. Tinham como referencial um conjunto narrativo unificado que guardava sua coerência própria: a mitologia da Coluna. E mitologia, usando as palavras de Vernant, que há décadas trata do assunto, é “um sistema de pensamento original, tão complexo e rigoroso como, a seu modo, pode sê-lo” (7).

Os interessados em descobrir falhas de caráter em Prestes não devem procurá-las em suas declarações sobre a Coluna. O chefe do estado-maior dos revoltosos agiu politicamente, cumprindo o papel que detinha – da personificação do mito. Heróis que se prezam agem responsavelmente, não agridem as suas próprias lendas. Isso seria ruim para a pátria e para o povo, que deles tanto precisam, como acreditava o comunista Jorge Amado nos anos 1940, n’O cavaleiro da esperança, biografia de Prestes, livro que impressionou muitas gerações, inclusive a minha:

“Herói, que coisa tão simples, tão grande e tão difícil! Herói, que palavra mais linda! Só o povo concebe, alimenta e cria o herói. Nasce das entranhas do povo, que são as suas necessidades. Nasce do povo, é o próprio povo no máximo das suas qualidades. Como o poeta, vai na frente do povo. O poeta e o herói constroem os povos, dão-lhes personalidade, dignidade e vida. São momentos supremos na vida de uma nação e na vida de um povo. Tão necessários como o ar que se respira, a comida que se come, a mulher que se ama” (8).

Na época em que Jorge Amado escreveu O cavaleiro da esperança, a intelectualidade brasileira ainda se prendia a autores como Carlyle, Lavisse e Ranke, que valorizavam o papel dos “grandes homens”, dos “gênios”, atribuindo-lhes excepcional responsabilidade na movimentação das engrenagens sociais e na definição dos processos históricos. Poucos, dominando o alemão, tomavam conhecimento das idéias de Weber sobre o “líder carismático” como indutor de mudanças. Auguste Comte ainda era sofregamente absorvido e adaptado para consumo nacional. Sua teoria não entrava em choque com o culto aos grandes homens. Pelo contrário, a ritualística da Religião da humanidade proporcionava-lhe lugar de destaque no glorioso altar da pátria e no esforço de construção da ordem e do progresso.

Freud, Jung, Eliade e outros tomavam a mitologia como modo de expressão conceitual

Na Europa, entretanto, já surgiam teorias capazes de questionar inovadoramente a personificação dos processos históricos. Era um período de intensa produção de estudos sobre símbolos, mitos, ritos. Disciplinas como a filosofia de conhecimento, a psicologia, a psicanálise, a etnologia, a sociologia, a história das religiões e a linguística passavam a tomar a mitologia como dimensão irrecusável da experiência humana. Intelectuais como Freud, Jung, Eliade, Malinowski, Mauss, Dumézil agregavam ao estudo do indivíduo e das coletividades importantes reflexões sobre a atividade imaginativa, tomando a mitologia como modo de expressão diferente do pensamento conceitual, investigando os mecanismos formadores do jeito coletivo de pensar, de guardar experiências vividas e manifestar memórias ocultas.

Tratando da formação das idéias, da elaboração do pensamento, conceitos e valores, enriqueceram a realidade mostrando em definitivo que a imaginação dos homens dela faz parte. A um só tempo, revitalizariam e fragilizariam as ciências humanas: ampliariam as possibilidades de apreensão do global, com a proposição de novos problemas e novas abordagens, preparando o fim do primado do mecanicismo positivista, mas também abririam caminho aos corifeus da desilusão e da irracionalidade que hoje ocupam livrarias, imprensa e salas de aula.

Marx fez um arcabouço teórico com base em contribuições de renhidos anti-revolucionários

Em prejuízo de sua própria causa, os militares comunistas desconheceram, menosprezaram ou repeliram levianamente as suas contribuições. Não aproveitaram o exemplo de Marx, que montou o arcabouço de sua teoria baseado nas contribuições geniais dos mais renhidos anti-revolucionários, Hegel em destaque, e viveu de olhos abertos às novidades. Deixaram o espaço franqueado à proliferação de modismos enfarentos, onde a permissividade sem limites tornou-se a regra: ensaios sobre sociedades nos quais se abstrai a geografia, a história, a economia, os conflitos sociais e todo um aparato conceitual arduamente construído ao longo dos séculos; tentativas de levar figuras notáveis e coletivos inteiros ao divã de psicanalistas dispostos a fazer sumir noções de tempo, espaço, interesses de classe, tudo embrulhado em linguagem hermética, adequada à fraqueza de conteúdo e à ausência de sentido.

É possível que Jorge Amado não tenha lido os teóricos da época. Artistas não carecem de teses circunspectas para produzir suas obras. Camões não precisou disso quando descreveu as batalhas sanguinolentas de D. Sebastião na África, consolidando, num poema, a auto-identificação dos portugueses. Nem José Pacheco, que em versos maravilhosos ressaltou o grande confronto ocorrido na porta do céu entre Lampião e São Pedro, ajudando Virgulino a obter a legenda de bandido-herói e, com isso, resgatando alguma dignidade para os milhares de potenciais candidatos a cangaceiros espalhados pelo sertão.

Mas não tenho dúvida de que as idéias de um militante como Jorge Amado sobre o papel do herói exemplificam uma assimilação confusa de teorias antagônicas. Inspirado em Marx, Jorge Amado diz, poeticamente, como convém a quem narra epopéias, que o herói “nasce do povo, é o próprio povo no máximo de suas qualidades”. Sem respirar, abandona Marx e assume os seus adversários teóricos, notadamente, Carlyle: “O poeta e o herói constroem os povos, dão-lhes personalidade, dignidade e vida”.

Marx, que não negou a importância do herói-símbolo enquanto referencial de agrupamentos humanos, nem descurou o estudo das personalidades históricas, nunca os cobriu de mantos sagrados, nem lhes conferiu o papel de taumaturgos, super-homens construtores de povos e nações. Censuraria rudemente Victor Hugo por conta de sua apreciação do segundo 18 Brumário, dizendo que o famoso romancista não via no acontecimento “mais que um ato de força de um só indivíduo”. Pela mesma razão, atacou Proudhon. Acreditando na força dos coletivos sociais, viu o grande personagem como produto, não como criador; um instrumento na luta de interesses sociais conflitantes, jamais o motor ou a razão de ser desses interesses. Outro poeta-militante famoso, Brecht, versificaria mais fielmente a sua teoria escrevendo: “Infeliz da pátria que precisa de heróis” (9).

Comunistas não fugiram ao fascínio dos heróis: muito se disse sobre grandeza, e nada sobre os erros

O militante Jorge Amado, em seu embaralhamento teórico, não conflitava com a prática do movimento comunista no século XX. Os comunistas não escaparam ao fascínio dos heróis. Interessados em mobilizar grandes massas, compreenderam a importância dos símbolos, signos, legendas e ritos, utilizando-os intensamente. Em suas práticas, como pesou o enaltecimento dos grandes líderes! Longas análises sobre contradições sociais e dinâmica política; eloquentes proclamações de fé na força de massas conscientes de seus interesses eram peremptoriamente negadas pelo realce do papel de grandes homens nos acontecimentos históricos. Pilhas de análises de revoluções, coleções de biografias escritas por intelectuais militantes, sempre enfatizando a inteligência, a grandeza moral, a coragem, a firmeza de atitudes e o sofrimento dos grandes líderes revolucionários. Nenhuma linha sobre os seus erros, vacilações fragilidades, idiossincrasias – atributos generosamente reservados aos inimigos, os vilões. Uma literatura que convidava à crença em clarividentes maravilhosos conduzindo lutas políticas e a construção de novas sociedades (…).

A identificação de um homem ou, bem mais raramente, de uma mulher que sintetize as melhores qualidades do povo e força de grandes coletivos revolucionários mostrou valia na mobilização de contingentes. Mas exigiu contrapartida: descartou o homem comum das formulações sobre o seu próprio destino. Frente ao herói o homem comum torna-se pequeno, cabendo-lhe, no máximo, assimilar exemplos, seguindo conformadamente as idéias do maior. Hoje, quando os revolucionários, ainda estupefatos com os caminhos tomados pela fantástica experiência da construção do socialismo, buscam explicações para a letargia na elaboração teórica da revolução, devem ficar atentos às fragilidades da filosofia da história que lhes orientou os passos. É ingênuo tributar apenas ao Estado repressor as causas da ausência da criatividade na produção intelectual. A liberdade, fundamental à criação, não é frustrada apenas pela ação policial. A prática do culto ao herói também joga o seu papel.

Se a realidade era pouco digna dos heróis, que seu lugar fosse ocupado pelas lendas

A crença segundo a qual o herói é um fator decisivo para os grandes projetos sócio-políticos tem complicado terrivelmente a interpretação histórica ao longo dos séculos. Faz com que a história se amolde aos heróis. Tucídides, talvez o primeiro ocidental a pretender separar, no discurso histórico, o maravilhoso da realidade observável, ficou longe de seu intento. Políbio três séculos depois, polemizando com Philarco, criticá-lo-ia com veemência: “O historiador não deve oferecer uma história que produza emoções através do fantástico” (10).

Platão, que tanto buscou a verdade e a justiça, procurando ver além das trevas, não deixou de censurar os que apresentavam o lado “frágil”, ou humano, dos heróis gregos. Bons tempos em que heróis eram abertamente tidos como deuses! O grande reformador queria salvar a sua pátria ameaçada. Não conseguiu, convém lembrar. Já então, considerava os heróis imprescindíveis. O que desabonasse suas imagens deveria ser suprimido. Se a realidade era indigna dos heróis, que a lenda tomasse o seu lugar!

As preocupações dos gregos antigos atravessam os tempos. Estão vivas em tudo, ou quase tudo o que se tem dito ou escrito sobre a peleja dos revoltosos nos sertões, confirmando a frase famosa, escrita bem antes do surgimento da psicanálise: “A tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um grande pesadelo”.

É o que eu sinto, quando, pelos sertões, converso sobre os revoltosos, vasculho papéis velhos, repasso exemplares da literatura revolucionária do século XX ou leio respeitáveis teses acadêmicas.

* Doutor em História pela Universidade de Paris, professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade Federal do Ceará.

Notas

(1) Esse artigo resume alguns elementos de um estudo mais pormenorizado. A peleja dos revoltosos nos sertões, escrito em 1994, que obteve o primeiro lugar num concurso promovido pelo Centro de Estudo Sociais Luis Carlos Prestes e pela Universidade da Paraíba. A publicação desse texto está sob responsabilidade dos promotores do concurso.

(2) A Coluna Prestes originou-se da junção de tropas paulistas remanescentes da revolução de julho de 1924 e tropas gaúchas levantadas em outubro do mesmo ano. Diante do fracasso dessas tentativas insurrecionais, uma reunião em Foz do iguaçu (abril de 1925) deliberou pela resistência armada itinerante. A primeira penetração armada no território hoje considerado como nordeste ocorreu em agosto de 1925, quando atingiram o noroeste de Minas e o sudoeste da Bahia. Em seguida retornaram a Goiás e demandando o Norte, chegam ao Maranhão em meados de novembro. Deixam o nordeste em 20 de agosto de 1926, depois de terem percorrido terras do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Bahia e Minas. Em 03 de fevereiro de 1927, os revoltosos encerram a sua marcha internando-se na Bolívia. Eram, na ocasião, 620 homens, muitos deles feridos, todos mal vestidos, mal armados, fisicamente exaustos, mas perfeitamente em ordem e considerando-se vitoriosos.

(3) É relativamente vasta a literatura sobre a Coluna. Entre os principais textos estão as memórias e biografias de participantes como: Cordeiro de Farias, João Alberto, Juares Távora e Italo Landicci. A obra referencial, inclusive para a reconstituição cronológica da expedição, é de Lourenço Moreira Lima, Coluna Prestes, marchas e combates, São Paulo: Alfa-Ômega, 1979. Os textos acadêmicos mais conhecidos são de Neil Macaulay, A Coluna Prestes, revolução no Brasil, Rio/SP: Difel, 1977; e de Anita Leocádia Prestes, A Coluna Prestes, São Paulo: Brasiliense, 1990.
(4) Farias, Oswaldo Cordeiro de, Meio século de combate: diálogo com Cordeiro de Farias, Aspásia Camargo, e Walter Goes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 103.
(5) As fitas de depoimento de Prestes, gravadas em 11-04-1995 estão hoje no arquivo público do Piauí. Reproduzo a íntegra de suas declarações no trabalho já mencionado. A Peleja dos Revoltosos nos Sertões.
(6) Entre os que tratam a Coluna como movimento guerrilheiro está João Quartim de Moraes, em A esquerda militar no Brasil, São Paulo: Siciliano, 1991, que a considerou uma “guerrilha rural de esquerda militar”. Anita Leocádia Prestes, em sua tese de doutoramento apresentada à UFF, endossa o termo e vai mais longe classificando-o como “um exército com características populares” (op. cit., 297-298).
(7) Vernant, J. P. Mythe et societé en Gréce Ancienne.Partis: La Découverte, 1974, p. 207.
(8) Amado, Jorge. O Cavaleiro da Esperança. Rio de Janeiro: Record, 1982, p. 09.
(9) As observações de Marx estão no prefácio à 2ª edição de O 18 do Brumário de Luis Bonaparte, 1869.
(10) Vernant, na obra já citada, considera que Políbio permanece até hoje o melhor crítico de Tucídides.

EDIÇÃO 40, FEV/MAR/ABR, 1996, PÁGINAS 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67