No final de 1995, os acontecimentos políticos na Rússia voltaram a surpreender e abalar o mundo. Escassos quatro anos após a dissolução da União Soviética, e mesmo enfrentando uma intensa campanha de perseguição, discriminação, intimidação e difamação por parte do governo russo, os comunistas emergiram como os grandes vencedores das eleições para a Câmara Baixa (Duma) do Parlamento. Num quadro partidário altamente fragmentado, o Partido Comunista de Federação Russa (PCFR) obteve 15 milhões de votos (pouco mais de 22% dos votos válidos), o dobro da votação do segundo colocado (o Partido Liberal-Democrático, comandado pelo ultranacionalista de direita Vladimir Jirinovski). Com esse desempenho eleitoral, o PCFR conquistou 158 das 450 cadeiras da Duma.

Que significado tem esse resultado? Que perspectivas ele aponta para o desenvolvimento russo e mundial? O que pensam e o que pretendem fazer os comunistas na Rússia? Esta edição da Princípios publica um documento fundamental para responder a essas (e a outras) indagações – o Programa do Partido Comunista da Federação Russa, aprovado no seu último Congresso no início de 1995. Antes de destacar alguns pontos relevantes (e polêmicos) desse Programa, vamos primeiro examinar, de forma resumida, a evolução histórica do PCFR e o resultado das recentes eleições na Rússia.

Breve histórico do PC da Federação Russa

O PC da Federação Russa tem suas origens no antigo Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Na sequência da revolução soviética, após a formação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) no final de 1922, o Partido Comunista da Rússia (bolchevique), fundado e liderado por Lênin, se transformou, no âmbito da República Russa, em Partido Comunista (bolchevique) da URSS.

Enquanto nas demais repúblicas da União a estrutura republicana dos Partidos Comunistas foi mantida, na Rússia passou a existir unicamente a estrutura do PC de toda a União (o PCUS). Essa situação se manteve até 1990, quando as estruturas da URSS começaram a se desintegrar em meio à crise de hegemonia que marcou o período final da perestroika (1). Nos marcos dessa crise, setores do PCUS descontentes com a política de Gorbachev formaram, em maio de 1990, o Partido Comunista da Federação Socialista Soviética Russa. O próprio PCUS já havia, então, deixado de ser um partido unificado, fragmentando-se numa série de plataformas concorrentes que abrangiam um amplo espectro político ideológico. Ieltsin, por exemplo, era dirigente de uma das correntes no Partido, chamada Plataforma Democrática.

Após deslocar Gorbachev do poder na sequência do golpe/contragolpe de agosto de 1991, o presidente russo Bóris Ieltsin baniu o PCUS e o PC russo, e proibiu a publicação de jornais comunistas como o Pravda não só na Rússia como em toda a União. Em 1992, vários Partidos Comunistas foram reorganizados na Rússia, em geral a partir de remanescentes de diferentes plataformas de esquerda do antigo PCUS. Entre esses, o Partido Comunista dos Operários de Victor Anpilov (que jogou importante papel nas mobilizações de rua em defesa do Parlamento sitiado e bombardeado por Ieltsin em 1993), a União dos Comunistas do antigo dirigente da Plataforma Marxista no seio do PCUS, Andrei Prigarin, e o Partido Comunista dos Bolcheviques da União Soviética de Nina Andreieva. Em novembro daquele ano, a Corte Constitucional julgou ilegal o banimento do PC russo, que foi restabelecido em fevereiro de 1993 com o nome de Partido Comunista da Federação Russa (já que esta havia deixado de ser socialista e soviética). Este se tornou, de imediato, o maior Partido Comunista em atuação na Rússia, mas os demais continuaram existindo. Foi formada uma coordenação comum de todos esses partidos, visando à reconstrução voluntária do Estado Soviético Federal e à unificação em torno de um Partido Comunista único.

Após o bombardeio e fechamento do Parlamento russo pelo presidente Bóris Ieltsin, em outubro de 1993, os partidos comunistas voltaram a ser banidos, e sua imprensa, fechada. O PC da Federação Russa foi legalizado, uma vez mais, às vésperas das eleições para a nova Duma em dezembro de 1993, enquanto os outros partidos permaneciam interditados. O PCFR obteve 11% dos votos nesse pleito, elegendo 45 deputados e consolidando-se como principal força política da oposição ao regime comandado por Ieltsin.

Um balanço sucinto das eleições de 1995

As eleições parlamentares de 1995 foram realizadas nos marcos da nova Constituição imposta à Rússia após o esmagamento do antigo Parlamento em outubro de 1993. Nos marcos dessa Constituição, o poder legislativo perdeu praticamente todos os seus poderes, que foram centralizados no executivo nacional. Em outras palavras instituiu-se oficialmente uma espécie de cesarismo presidencial (com todo o apoio dos dirigentes do “mundo livre” no Ocidente…). Além de despido de seus poderes anteriores, o legislativo foi dividido em duas Câmaras: a Câmara Alta (o Conselho da Federação), uma espécie de Senado dominado por cargos nomeados pelo poder executivo; e a Câmara Baixa (a Duma), que compõe a representação parlamentar propriamente dita.

O triunfo dos comunistas na eleição é ainda mais importante em vista dos artifícios do governo

As eleições de dezembro de 1995 foram para a Câmara Baixa. A Constituição de Ieltsin impôs um sistema distrital misto de representação na Duma. Dos seus 450 integrantes, 225 são eleitos individualmente em distritos uninominais, e os outros 225 eleitos com base na representação proporcional da votação das listas partidárias. Para os partidos ou coligações que concorrem no sistema proporcional, foi instituída, ainda, uma cláusula de barreira de 5% – o partido ou coligação que não alcançar 5% da votação nacional fica excluído da representação proporcional (embora ainda possa eleger deputados no sistema distrital). Em suma, o regime de Ieltsin se valeu de todo um elenco de artifícios e subterfúgios legal-institucionais para tentar manietar o poder legislativo russo e cassar as vozes dos que se opõem à sua política de restauração capitalista neoliberal. Isso torna ainda mais significativo o triunfo dos comunistas nas recentes eleições. A Tabela 1 reúne os resultados do pleito, segundo a Comissão Eleitoral Central.

Tabela 1 (p. 28)

O que esses resultados indicam? Em primeiro lugar, cabe ressaltar que as eleições galvanizaram e mobilizaram efetivamente a sociedade russa, revertendo um quadro anterior de apatia e desinteresse generalizados. O comparecimento às urnas subiu 50% nas eleições de 1993 para 62% em 1995 (Observação: o voto na Rússia não é obrigatório). A esquerda emergiu como uma grande vitoriosa do pleito, com destaque para o desempenho do PCFR, que mais do que triplicou sua bancada na Duma (passando de 45 para 158). Os comunistas e seus aliados de esquerda mais próximos (o Partido Agrário e a organização Mulheres na Rússia) tiveram juntos, mais de 35% dos votos no sistema proporcional (o que equivale a 45% dos votos conferidos a listas partidárias, nos dados fornecidos pela Comissão Eleitoral). Ao todo, esse bloco de esquerda aumentou sua representação na Duma de 123 para 182. Houve um importante realinhamento de forças no interior do bloco. Os comunistas que antes representavam pouco mais de um terço da bancada de esquerda, convertem-se, agora, na força amplamente majoritária no seu interior.

O PCFR foi o partido mais votado em 70 e 89 territórios da Federação Russa, tendo ficado em segundo em outros 13. Seus piores resultados foram em Moscou e São Petersburgo, onde venceram as forças governamentais, mas mesmo aí o Partido dobrou a sua votação. As áreas populares e operárias em torno das duas cidades votaram maciçamente nos comunistas, formando uma espécie de “cinturão vermelho” em torno de ambas as cidades. Cabe registrar, ainda, que o PCFR não foi o único Partido Comunista a disputar as eleições russas. Três outros partidos menores (o Partido Comunista dos Operários Russos, o Partido Comunista Russo e o Partido Russo dos Comunistas) formaram a lista conjunta “Comunistas-Rússia Trabalhadora” que, por muito pouco, não ultrapassou a barreira dos 5% (alcançou 4,52% dos votos). Essa lista ainda conseguiu eleger um deputado pelo sistema distrital em São Petersburgo (antiga Leningrado). Isolado e sem expressão política, o Partido Comunista dos Bolcheviques da URSS, de Nina Andreieva, optou pelo boicote às eleições.

Nossa Casa não chegou a um décimo dos votos, ficando atrás dos liberais e dos comunistas

O regime de Ieltsin sofreu uma derrota fragorosa nas urnas. A lista aberta e oficialmente identificada com o governo (a Nossa Casa Rússia) não chegou a alcançar 10% dos votos, ficando atrás tanto dos comunistas quanto do Partido Liberal Democrático da Rússia. Mesmo se esses forem somados aos de outras forças que, de maneira geral, respaldam as reformas neoliberais na Rússia (o Iabloco e a Escolha Democrática da Rússia), a votação total do bloco governista não ultrapassou os 21%, materializada numa bancada de pouco mais de cem deputados na Duma.

Entre o bloco de esquerda e o bloco governista encontram-se diferentes organizações políticas que também se identificam como forças de oposição a Ieltsin. Elas podem ser agrupadas em dois pólos principais. O primeiro é o Partido Liberal Democrático, do polêmico e folclórico líder nacionalista Vladimir Jirinovski. Este, na verdade, perdeu força, caindo da posição de mais votado e maior bancada da Duma em 1993 para a de segundo partido mais votado e terceira bancada da Duma em 1995 (esse descompasso entre votação e bancada reflete o péssimo desempenho do Partido no sistema distrital).

O segundo pólo é mais heterogêneo e abarca diferentes formações “centristas”, como os nacionalistas mais moderados do Congresso das Comunidades Russas e forças de centro-esquerda como o Partido de Autogestão dos Trabalhadores. Apesar de terem recebido, ao todo, mais de 10% dos votos no pleito, a representação dessas formações na Duma é diminuta (não deve passar de 20 deputados), em razão de as listas partidárias isoladas não terem ultrapassado a barreira dos 5% e de seu desempenho no sistema distrital ter sido fraco. Para completar o quadro da composição da Câmara Baixa do Parlamento russo, há que registrar, ainda, a eleição de 77 candidatos independentes pelo sistema distrital.

A população russa quer alternativa socialista para a crise sistêmica que o país atravessa

O resultado das eleições indica, assim, a clara repulsa do eleitorado à política neoliberal imposto à Rússia por Bóris Ieltsin na sequência dos seus golpes de Estado em 1991 e 1993. O pleito se transformou num plebiscito de condenação do presidente. Ao mesmo tempo, registrou a opção de amplas camadas da população por uma alternativa socialista para a crise sistêmica engendrada no país pelo processo de restauração capitalista (2). Os dados arrolados acima indicam que, mesmo sem ter alcançado maioria absoluta, o bloco de esquerda comandado pelo PCFR tem ampla margem de manobra e condições favoráveis para aprovar sua política na Duma. Mas isso é insuficiente para mudar a rota do país, devido ao processo de esvaziamento dos poderes do legislativo a favor do executivo, que acompanhou a escalada golpista de Ieltsin. Por isso, todas as atenções (e tensões) se voltam, agora, para as eleições presidenciais marcadas para junho desse ano (1996). As mudanças promovidas por Ieltsin no seu gabinete imediatamente após o pleito fazem parte da movimentação para disputa das eleições presidenciais. Se a virada política verificada nas eleições legislativas for confirmada no pleito de junho, haverá uma alteração fundamental no curso do desenvolvimento russo, com amplas e profundas consequências tanto do ponto de vista interno quanto internacional. Mas que novos caminhos os comunistas propõem para a Rússia?

O programa da virada

Princípios publica nesta edição os trechos principais do documento que fundamenta e sintetiza a orientação estratégica do PC da Federação Russa – o programa aprovado no terceiro Congresso do Partido, em janeiro de 1995. A importância desse documento é evidente. Não quero, aqui, me adiantar à sua leitura pelo público da revista, mas tão somente destacar alguns pontos que me parecem particularmente relevantes e/ou polêmicos. O leitor certamente formará a sua própria opinião ao examinar o Programa.

A corrente burguesa transformou o PCUS num partido de “traição nacional” da URSS

O documento contém análises importantes sobre o processo que culminou no colapso do socialismo da URSS. Tratando-se de informações provenientes “de dentro” da própria URSS, por quadros que ocuparam funções dirigentes importantes, fornecem-nos um ângulo privilegiado para o exame crítico do desenvolvimento socialista soviético. Do ponto de vista político-ideológico, destaco a identificação, pelo PCFR, de uma contínua luta de tendências (proletária pequeno-burguesa, democrática burocrática) no seio do PCUS, ao longo da sua história, e a autocrítica do Partido por ter convivido por tanto tempo com a corrente pequeno-burguesa (que foi ganhando espaço e poder até se transformar, através de Gorbachev, Iakovlev, Shevardnadze e Ieltsin, num “partido de traição nacional” que destruiu a URSS e afundou a Rússia para formar aceleradamente uma nova burguesia nos escombros do socialismo). Do ponto de vista econômico, o PCFR faz observações interessantes sobre o enquadramento do socialismo soviético no formato de um “regime de mobilização” que teria perdido sua razão de ser no desenvolvimento do pós-guerra. Como consequência, o princípio socialista da remuneração segundo o trabalho foi deformado, resultando na generalização de fenômenos sociais, profundamente negativos, como a perda do sentido da propriedade social, o parasitismo, a indiferença, a passividade etc.

As etapas para o socialismo na Rússia

Apoiado nessas reflexões críticas, o PCFR formula uma estratégia para um “desenvolvimento socialista ótimo” que não representa uma simples volta ao passado. As reflexões do Partido sobre essa questão parecem, de fato, bastante maduras. Elas se orientam para um processo prolongado de transição ao socialismo na Rússia, marcado pelo encadeamento de três etapas básicas. A primeira seria caracterizada pela formação de um governo de salvação nacional voltado para a defesa o e restabelecimento da economia nacional russa devastada pela sanha neoliberal de Ieltsin. Essa fase seria dominada por uma política ativa de proteção e desenvolvimento do mercado nacional e das empresas russas estruturadas sobre múltiplas formas de propriedade. A segunda etapa seria marcada pelo restabelecimento das estruturas políticas dos sovietes e pela consolidação do papel dirigente das formas socialistas na evolução econômica social. Já a terceira se caracteriza pela consolidação da supremacia das formas de propriedade social na base econômica, completando a passagem da sociedade russa para um “desenvolvimento socialista ótimo”.

A questão nacional e o nacionalismo

Subjacente às reflexões acima e a todo o programa está uma formulação teórica bastante polêmica sobre a fusão da luta pelos “interesses nacionais estatais da Rússia” com a luta pelo socialismo. Em razão da perda de posição internacionais com Gorbachev e Ieltsin, e da devastação econômica, social, política e espiritual produzida pela tempestade neoliberal, o PCFR identifica que a outrora poderosa Rússia está sendo transformada numa espécie de “apêndice semicolonial” dos países capitalistas centrais, confinada ao papel de fornecedor de matéria-prima barata para o Ocidente. A presente resistência do povo russo assumiria, portanto, o caráter de uma “luta de libertação nacional”. Por mais que essa imagem possa ser exagerada, a perda de posições e soberania da Rússia no mundo é mais do que evidente, e qualquer partido de esquerda sério, atuando nessas condições, teria de incorporar as contradições desse processo à sua reflexão estratégica e à definição da sua política de alianças. O problema é que as reflexões programáticas do PCRF dão um passo além e identificam o próprio socialismo como uma realização da “cultura e tradição moral comunal-coletiva da Rússia”, com a essência do pensamento russo”. Nessa base, a luta em defesa do Estado nacional russo é confundida com a luta pelo socialismo. O reconhecimento de que a URSS foi “herdeira geopolítica do Império Russo” (que me parece válido) transforma-se na identificação da Revolução de Outubro de 1917 como “movimento de autopreservação estatal nacional da Rússia” (que me parece altamente problemática).

De projeto universal baseado nas relações de trabalho do mundo moderno, que deve buscar raízes e formas nacionais para se realizar, o socialismo se torna, assim, expressão de uma suposta “vocação nacional” particular, incapaz, por isso mesmo, de se universalizar (a não ser na forma de chauvinismo).

Os riscos dessa abordagem, além de evidentes, não são alheios à trajetória histórica da Rússia e da própria URSS. Como reagirão, por exemplo, os Estados vizinhos com significativas minorias nacionais russas, à disposição expressa no programa de combinar a “defesa da integridade estatal da Rússia” com a “reunião nacional do povo russo?

De todo modo, o que se destaca no Programa do PCRF é o fato de – quer pelo ângulo da retomada do socialismo, quer pelo resgate da defesa da Nação Russa – o Partido ter uma alternativa efetiva a apresentar para o desenvolvimento do país. Desse ponto de vista, a vitória eleitoral dos comunistas russos tem significado e impacto diferentes da sequência de triunfos eleitorais de herdeiros dos antigos partidos socialistas governantes na Lituânia, Látvia, Ucrânia, Bielorrússia, Bulgária, Hungria e Polônia. Nestes, o triunfo eleitoral da esquerda representou uma clara condenação das políticas restauracionistas de corte neoliberal adotados a partir de 1989-90, mas as coalizões eleitorais vitoriosas não tinham (têm) um projeto de desenvolvimento alternativo substancialmente diferente. Na Rússia esse projeto existe, e o seu triunfo pode alterar significativamente a correlação de forças do mundo, desafiando a arrogância imperialista dos dirigentes dos países capitalistas centrais e marcando o fim do período geral de defensiva em que ainda se encontram as lutas democráticas e populares diante da ofensiva neoliberal. Quem viver, verá…

* Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, autor do livro URSS – ascensão e queda, São Paulo: Anita Garibaldi, 1991.

Notas
(1) Para uma análise mais detalhada desse período, ver meu artigo “A luta de classes na Rússia (1991-1993)”, publicado em Princípios n. 31, novembro de 1993 a janeiro de 1994.
(2) O processo de restauração capitalista em curso na Rússia conseguiu provocar mais destruição e retrocesso econômico-social do que a própria invasão nazista na Segunda Guerra. O PIB russo está reduzido à metade do valor que tinha em 1991, enquanto mais da metade da população vive oficialmente abaixo da linha de pobreza.

Falsificação eleitoral com base na lei

A eleição parlamentar russa de dezembro de 1995 foi um excelente exercício das virtudes malsãs do voto distrital misto, tão benquisto por amplos setores das elites brasileiras.
Os resultados parciais divulgados pela imprensa brasileira até o dia 27 de dezembro de 1995 mostravam a enorme distorção na representação política provocada por esse sistema. Pelo sistema distrital misto vigente na Rússia, metade do Parlamento eleita através do voto proporcional, e metade através do voto distrital.
No sistema proporcional em vigor no Brasil de hoje, a divisão dos lugares no Parlamento entre os partidos é feita proporcionalmente ao percentual de votos obtidos por partido. Se tiver 5% dos votos, terá 5% dos deputados.
No sistema distrital, que esteve em vigor no Brasil até a República Velha e foi abandonado em consequência das conquistas democráticas dos anos seguintes, os parlamentares disputavam por distrito, e ganha aquele que tiver mais votos. Os votos dados aos partidos que foram derrotados são simplesmente desprezados, ignorados, ficando tais partidos sem representação no distrito e no Parlamento. Se a disputa for entre dois partidos e um deles tiver 51% dos votos, fica com a vaga dos distrito, e o que teve 49% dos votos fica sem anda. É como se aqueles eleitores todos, seus candidatos e partidos não existissem!
Os apologistas da elite dizem que o voto distrital misto corrige essa distorção. Corrige mesmo?
Os resultados da eleição russa mostram que não. Lá, no sistema proporcional, que escolhe metade do Parlamento, o Partido Comunista tinha, até 27 de dezembro último, 22% dos votos, elegendo cerca de 100 deputados. No sistema distrital, os comunistas tinham apenas 58 deputados, fazendo um total de 158 deputados nesse sistema misto.
Se os comunistas elegeram cem deputados na eleição de uma das metades do Parlamento, pode-se supor que elegeriam duzentos se o sistema proporcional valesse para todo o Parlamento, e não 158,como conseguiram n sistema distrital misto.
A conclusão que se impõe, portanto, é que, longe de corrigir as distorções do sistema distrital puro, o sistema praticado na Rússia, e que muita gente quer importar para o Brasil, falsifica, com base na lei, a chamada verdade eleitoral.
E falsifica beneficiando o governo, as elites, os que estão em posição de mando. Ieltsin e seus aliados foram beneficiados por esse sistema, que amenizou seu fiasco eleitoral e enviou para o Parlamento apenas parte da condenação popular a seu governo. Condenação veemente que, antes da abertura das urnas, já se exprimia numa pesquisa de opinião (publicada por The Economist, 16-12-1995), onde dois terços das pessoas ouvidas diziam que os principais problemas da Rússia são crise econômica (25%), perda da qualidade de vida (15%), paz (8%), liderança política (7%), preços altos (6%) e desemprego (4%).

José Carlos Ruy

EDIÇÃO 40, FEV/MAR/ABR, 1996, PÁGINAS 27, 28, 29, 30, 31