Globalização e bloco regional: o que é e para onde vai o Mercosul
Os mercados sub-regionais representam um momento da globalização a caminho de uma nova repartição do mundo entre as maiores potências? Parece positiva a resposta, quando a globalização é aceita como uma nova etapa do capitalismo produzida pela nova forma de acumulação que vem se impondo desde os anos 70. Quando se concorda que esse processo compreende e produz uma combinação de mudanças profundas no comércio mundial, nas esferas produtiva e financeira, e é simultaneamente conseqüência dessa combinação, reforça-se a resposta positiva. Os fatos têm efetivamente demonstrado que a esfera financeira passa por uma significativa expansão, resgatando uma crescente autonomia quanto às exigências de transações do resto da economia, na medida em que escapa cada vez mais da regulação de governos e organismos internacionais.
Certamente, uma das contradições mais atuais está no duplo movimento que orienta o processo de globalização, favorecido pela expansão financeira e pela generalização dos processos de regionalização – representados pela integração ou congregação comercial de grupos de países e sustentados no intercâmbio mais intenso entre os que formam cada agrupamento.
Além disso, as variáveis econômicas mundiais tendem a se concentrar crescentemente em poder das maiores empresas transnacionais, que influem no perfil das economias nacionais. Isso indica mudanças no movimento do capital em escala mundial, fazendo com que, além do capital financeiro internacional, comandado pelas empresas transnacionais, e do capital nativo, que se vincula com o mundo de algum modo ou associado com tais empresas, internacionalize-se o conjunto do capital, vinculado direta ou indiretamente com o exterior.
Desse modo, a fragmentação é uma marca do processo em curso. Sem o surgimento de um espaço homogêneo de valor mundial, toma impulso a formação de mercados sub regionais, que tendem a recriar internamente proteções e relações de intercâmbio de valor mais homogêneo sem eliminar o problema do intercâmbio desigual entre países, regiões ou setores, mesmo reformulando-o. Generalizas contradições, desenvolvendo no seu interior periferias integradas nos centros desenvolvidos e centros desenvolvidos nos países periféricos.
Marcha por aí a disputa entre as potências e mercados mais desenvolvidos pelo domínio das economias e mercados mais frágeis. É o que ocorre no caso da relação entre a América do Norte (NAFTA) e o Cone Sul (Mercosul), que parece mostrar indícios de uma nova etapa da globalização.
E necessário compreender o Mercosul desse modo, como um ensaio de mercado sub-regional enjaulado numa fase de transição que mostra um laboratório de políticas pós-fim da bipolaridade.
Globalização e divisão do trabalho: ornamento de um Tratado
Por outro lado, a estruturação do Mercado Comum do Sul (que reúne Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile) ocorre numa fase histórica de crise das economias mais industrializadas do mundo. Conjuntaralmente menos intensa que a dos anos 30, essa crise é, no entanto, mais duradoura e sem perspectiva de uma saída à vista. As maiores potências capitalistas (entre as quais Estados Unidos, Japão e Alemanha, em especial) apresentam problemas que não admitem conjecturas acerca da reversão dessa tendência ou de retomada de um ciclo expansivo.
As condições em que se desenvolve tal processo coincidem com a ofensiva neoliberal do início dos anos 90 e com a acelerada incorporação de trabalho morto na rota da ''terceira revolução industrial" (ou tecnológica). Esta, em pleno curso, marginaliza e submete gradualmente os países periféricos. Isso vem se dando com o aumento do fosso entre esses países e as maiores potências, e não acontece sem profundas ,conseqüências na vida dos trabalhadores. E significativo o aumento do desemprego em todo o mundo, no ritmo da evasão do capital aplicado produtivamente para a atividade especulativa.
Esses traços são marcantes do movimento do capital no exame da inserção do Mercosul num mercado mundial tendencialmente globalizado. Cumpre sublinhar também que, na atual fase (caracterizada por aspectos inexistentes na fase clássica da produção marxista), a célere produção de mercadorias e serviços passa a exigir elevados investimentos em pesquisa científica e tecnológica E isso se põe como um dilema para os países que comprometem a formação de suas reservas com o equilíbrio de suas contas externas e internas. Na América Latina, além disso, o capital internacional traça sua estratégia para um amplo domínio sobre patentes industriais e sobre a vida – um dos pilares da política exterior norte-americana
Esse movimento encontra ainda um cenário crítico no crescimento vertiginoso da dependência, acompanhando as seqüelas da globalização. O montante da dívida externa da América Latina evoluiu para o atual volume a partir de US$ 40 bilhões em 1973, quando a taxa de juros internacionais girava em torno de 1 %. Essa dívida é estimada em 533 bilhões de dólares em 1994, mesmo pagando-se U$ 418 bilhões de juros e amortizações desde 84, quando a dívida chegou aos US$ 220 bilhões. A dívida externa global do conjunto dos países periféricos atingiu, em 94, US$1,6 trilhão, mais que duplicando em dez anos. O gigantesco salto ocorre com a instituição do sistema de juros flutuantes. No crepúsculo dos anos 70, a sistemática do controle dos meios de pagamento nos Estados Unidos foi alterada pelo seu banco central, o Federal Reserve Board, e a taxa de juros cresceu sucessivamente para 3%,9%, 12%,20010, atingindo os 21,5% em janeiro de 1981. A respeito, é reveladora uma declaração de Henry Kissinger: "Desde fins de 1982 até 1988, a América Latina pagou aproximadamente US$ 235 bilhões de juros. ( … ) Uma região subdesenvolvida, converteu-se em exportadora de capital, o que constitui uma situação injusta e insustentável".
A interdependência desigual
Duas proposições são discutidas para o continente numa situação assim posta: (1) os países latino-americanos, iguais pela dependência, necessitam de uma relação mais estreita com seus desiguais, os donos do mundo, e especialmente com os Estados Unidos, onde são maiores os mercados para suas matérias-primas e manufaturas; (2) a integração entre iguais é um ato de defesa das economias periféricas diante dos desafios colocados pela globalização na forma da questão da dívida e da taxação crônica dessas economias mais frágeis pelas mais sólidas e dominantes. No segundo caso, a integração dos iguais pode consistir também num pacto de expansionismo e dominação entre grandes potências, visando à afirmação de uma ordem mundial que consagra uma nova divisão internacional do trabalho. Ou seja: cabe a hegemonia dos mercados aos que arbitram os papéis produtivos no mundo, fazendo com que, por exemplo, a uns caiba a exportação de matérias-primas e manufaturas, e a outros, a fabricação e venda de computadores e bens de capital. Nisso consiste a interdependência da desigualdade que oferece lastro à globalização.
A posição dos Estados Unidos acerca do Mercosul – exposta numa mesa-redonda, realizada em novembro de 1991 sobre a "Iniciativa para as Américas", que precedeu o NAFTA -, repõe uma face do dilema, quando seus representantes declaram: "De nenhuma maneira os Estados Unidos assinariam um tratado de livre comércio com o Mercosul". Essa posição foi reafirmada, juntamente com a restrição ao reconhecimento "imediato" do acordo do Mercosul em reunião do GATT (Acordo Geral de Preços e Tarifas) realizada em julho de 1992. O instrumento para a aprovação do acordo seria a "cláusula de habilitação" (Enabling Clause- Tratado do GATT), que admite "um tratamento diferencial e mais favorável aos países subdesenvolvidos". Assim, os acordos celebrados entre países dependentes seriam simplesmente notificados ao Comitê de Comércio e Desenvolvimento para sua aprovação, evitando a análise e oposição dos demais signatários do GATT. Isso não impediu os Estados Unidos (com o apoio do Canadá, Suíça, Austrália e outros países nórdicos) de ignorar a "cláusula" e pedir a análise sem ocultar sua oposição: O argumento formal é o de que a dimensão e a importância potencial do Mercosul, com uma população de 200 milhões e um PIB combinado de US$ 500 bilhões naquele ano, exigiam um exame detalhado pelo GATT, impedindo a aprovação do acordo – que não ocorreu até hoje. O sentido real da manobra foi re,velado por um funcionário do Itamaraty: "E implicância mesmo, para limitar o alcance do mercado à sua esfera de influência".
A objeção à aplicação da "cláusula" não possuía a dimensão do argumento: o Mercosul representava em 92 apenas 2,77% da soma dos PIBs dos três principais blocos econômicos do mundo, significando, em relação a cada um, 7% da riqueza gerada no âmbito do NAFTA, 8% em relação à União Européia e I I % quanto aos "tigres asiáticos". As negociações do Mercosul com mercados hegemonizados pelo Japão, Alemanha e outras potências mais industrializadas constituem motivo de inquietação para os Estados Unidos. A anunciada aproximação entre Mercosul e União Européia, estabelecendo uma ZLC (Zona de Livre Comércio) para o ano 2005, é um fato a ser considerado com o mesmo sentido que confere preocupações relativas à emergência da China e do Japão enquanto parceiros comerciais para a América Latina. O Chile, "barrado no baile" do NAFTA, ingressou no Mercosul, reforçando-o enquanto bloco.
O acontecimento reforça a tese de que a formação de blocos regionais entre países dependentes decorre contraditoriamente de uma estratégia de defesa. A postura norte-americana, aliás, obedece à tradição histórica da "Aliança para o Progresso" – instrumento pelo qual o presidente John Kennedy promoveu os objetivos dos Estados Unidos, através de relações bilaterais, para que o governo "pudesse estabelecer vínculos e obrigações com o país destinatário da ajuda recebida"(l). Hoje, o temor dos Estados Unidos diz respeito ao advento de um bloco econômico no figurino europeu e numa região de sua influência direta, frustrando a pretensão da "Iniciativa para as Américas" de George Bush, em 1990, para a criação de uma zona de livre comércio (ZLC) na região.
Mercado Comum entre "iguais" ou NAFTA?
A polêmica se estabelece modernamente para a região quando o ingresso no Tratado de Livre Comércio (NAFTA – North American Free Agreement, celebrado entre Estados Unidos, Canadá e México) é posto para o Brasil e Argentina como alternativa ao Mercosul, e quando os Estados Unidos propõem a assinatura do acordo "Quatro Mais Um", no qual passariam a manter relações bilaterais com cada um dos países do Cone Sul. O dilema seria, na verdade, o seguinte: ou prosseguir com o Mercosul ("a unidade de quatro" que os Estados Unidos se negaram a reconhecer como bloco), ou estabelecer relações bilaterais com os Estados Unidos, absorvendo a concepção da "Iniciativa para as Américas" e reafirmando uma tendência de pactos entre países absolutamente desiguais. Estratégias diferentes, portanto, separavam pela forma, conteúdo e grau de integração duas perspectivas de estruturação de mercados.
O México (sempre ele!) foi o palco pioneiro da experiência nos dias que precederam a assinatura do Tratado. O elevado grau de expropriação do país pelos Estados Unidos já inspirou no passado o seguinte lamento de um de seus mandatários, Porfirio Diaz, deposto pela insurreição popular de 1910: "Pobre México, tão longe de Deus e tão próximo dos Estados Unidos"
Essa relação histórica conduziu à rejeição pelo governo mexicano da "promoção de um mercado comum, porque envolveria aspectos institucionais que afetavam a soberania". Isso se deu a partir de uma reação das classes dominantes locais, que estamparam na grande imprensa mexicana a manchete de seus interesses: "Zona de Livre Comércio sim, Mercado Comum não". Foi estabelecido o pacto da ZLC (2), mas, por não ser essa a questão essencial, o México não conseguiu evitar a quebradeira na metade dos anos 90. Foi seu pioneirismo na implementação de políticas neoliberais o principal óbice para sua economia. De resto, a nociva vizinhança que lhe foi legada histórica e geograficamente.
A visita do Presidente FHC ao México em fevereiro de 96 trouxe novo alento à polêmica acerca da formação, desempenho e consolidação dos blocos regionais. A iniciativa do Presidente mexicano, Ernesto Zedillo, que propôs uma aliança estratégica com o Brasil de olho no Mercosul, projeta a confluência de problemas derivados da implementação do receituário neoliberal e da implantação do mercado sub-regional entre países de desenvolvimento díspar e com distintos graus de riqueza. Essa relação entre desiguais, que não implica fusão dos mercados de capital e trabalho, se evidencia.
O NAFTA provocou desequilíbrios em vários setores da economia mexicana e ampliou significativamente a dependência do México em relação aos Estados Unidos. Hoje, 80% do fluxo comercial externo mexicano é efetuado com os Estados Unidos, o que torna a economia do país muito sensível a pequenas mudanças na taxa de câmbio ou nos juros norte-americanos. Para os Estados Unidos, a rentabilidade do comércio exterior é outra: segundo Bill Clinton, numa entrevista ao Estado de S. Paulo (03/3/96), suas exportações elevaram-se em 4% em 1993; 10% em 1994 e 14% em 1995. (O comércio dos Estados Unidos com a América do Sul cresceu 15% no mesmo ano.) Instituído em janeiro de 94, o NAFTA arrasou com os setores mais frágeis da indústria mexicana (através das crescentes importações), mas também contribuiu para a descompensação de preços internacionais que resultou na crise mexicana de dezembro de 1994. E a opinião do economista mexicano Andrés Flores (Folha de S. Paulo ,20/02/96): "O país não estava pronto para competir em pé de igualdade com a indústria norte-americana Tudo foi feito rápido demais".
O acordo serviu também para estimular a entrada do capital volátil dos investidores internacionais. Cerca de US$ 90 bilhões que entraram no país em 94 saíram quando eclodiu a crise, que veio acompanhada de uma fuga maciça de capitais e da desvalorização em 55% do peso em relação ao dólar. Para Flores, a proposição do México de integrar-se ao Mercosul é uma tentativa de diversificar seus parceiros comerciais, reduzindo seu grau de dependência em relação aos Estados Unidos. "Seria muito positivo para a economia mexicana", diz o economista, acrescentando que isso poderia representar um risco para o Brasil e Argentina Atualmente, as moedas desses dois países estão supervalorizadas, e a moeda mexicana continua abaixo de seu valor no mercado internacional.
conclusão: taxas e preferências comerciais entre México e Mercosul poderiam gerar um boom de exportações para Brasil e Argentina, especialmente, pelo próprio câmbio favorável
Salvaguarda dos dependentes ou "submarino” do grande capital?
Para o grande empresariado dos países do Cone Sul, a opção do Mercosul por uma zona de livre comércio entre países dependentes rumo ao mercado comum em 2006 abre a possibilidade de relações mais diversificadas com um leque mais amplo de parceiros, e ajuda a driblar o protecionismo das potências hegemônicas. Os prazos previstos na Ata de Buenos Aires e no Tratado de Assunção para instalação da União Aduaneira como segunda etapa (estabelecidos pouco depois do lançamento da "'Iniciativa para as Américas") coincidiram com os do NAFTA: dezembro de 1994. Desse modo. não é simplesmente a noção de MC (ou da fusão entre capital e trabalho) que prevalece formalmente sobre a ZLC (ou o limite do enfoque à circulação vantajosa de mercadorias). Nesse sentido, a opção pelo MC em perspectiva é, sem dúvida, uma formulação que busca associar países integrando algo além do comércio, e o desenho de uma estratégia formulada pelos interesses hegemônicos no Cone Sul diante da globalização. Trata-se, no momento, de uma saída que responde à presença objetiva do grande capital internacional, desenvolvendo uma acumulação que admite, mesmo em desvantagem, a persistência dos maiores empreendimentos locais. E uma unidade que se daria sem que as maiores potências acedessem à fusão dos mercados, mantendo sua presença através das gigantescas corporações transnacionais.
É necessário compreender o Mercado Comum do Sul nas origens do debate em curso e em seu viés mais contraditório: gestado num momento de avanço do neoliberalismo no Brasil (em 1990, Collor era o presidente), parece representar uma salvaguarda diante do expansionismo do grande capital, notadamente norte-americano. Mas poderia cumprir também o papel de emissário desses interesses e testa-de- ferro das pretensões reconhecidamente hegemonistas das maiores potências, na exata medida em que as classes dominantes no Brasil dão livre curso ao seu projeto de submissão ao capital forâneo, comprometendo com políticas de corte neoliberal a independência do país, especialmente através dos programas de privatização. Situação semelhante, com traços particulares, viveram e vivem os povos da Argentina, Uruguai e Paraguai. Reflete-se igualmente nesse ângulo a situação histórica do Chile e dos países que compõem o Pacto Andino, percorridos pelo líder libertário Simon Bolívar: Venezuela, Equador, Bolívia, Peru e Colômbia.
Brasil: a supremacia do global trader
A economia brasileira apresenta um desempenho compatível com seu maior porte. De 1990 (véspera da instalação do Mercosul) a 1994, o comércio brasileiro com os três países cresceu de 4,2% para 13,6%, enquanto as transações com os mercados da Asia, União Européia, NAFTA e demais países decresciam no mesmo período. E flagrante a superioridade. No levantamento anual da Gazeta Mercantil para 1943, das 500 maiores empresas do Mercosul (já incluindo o Chile), 372 são brasileiras ou com sede no Brasil, as primeiras em faturamento (77,9%), patrimônio (81,2%) e lucro (73,2%) líquidos no conjunto. O maior volume em patrimônio é devido sobretudo às estatais, que ocupam, nesse aspecto, 18 posições entre as 20 primeiras – das quais apenas duas já aparecem privatizadas.
A Petrobrás é campeã nos três conceitos, e faturou U$ 19 bilhões em 94, já descontados os impostos sobre vendas. A Petrobrás Distribuidora fica na 3a posição, e a argentina YPF (Yacimentos Petrolíferos Fiscales, privatizada) é a 15º em patrimônio líquido depois de 14 brasileiras, ininterruptamente, quase todas estatais. A Argentina, com uma economia de porte inferior, mostra o preço do sucateamento do seu parque industrial com frágeis 8,9% no total em patrimônio (dez vezes inferior ao das empresas brasileiras), suas vendas ficam em 15,6% e os lucros em 14,3%. O Chile, que sofreu também o ciclone das privatizações e ficou apenas com a mineradora estatal Codelco (a única de razoável desempenho), detém 9,1% do patrimônio, 5,9% das vendas e 12% dos lucros.
Somente as estatais de petróleo e telecomunicações do Uruguai e Paraguai asseguram a presença constante desses dois países entre as 500 maiores. São esses, mais o setor elétrico, aliás, os mais freqüentes entre as maiores empresas de cada um dos países reconhecidos na pesquisa, atestando que compensa manter a soberania sobre suas explorações. Sem o domínio desses ramos, as três maiores multinacionais mostram o seguinte desempenho: a ex -fulgurante Autolatina Brasil é 2° lugar em faturamento, teve o 3° lucro líquido, mas seu patrimônio ocupa a 44a posição; a Fiat que é a 5º em receita e lucro líquido, apresenta o distante 130° lugar em patrimônio; a Souza Cruz, na 46º posição em faturamento e com um patrimônio que lhe garante o 45o lugar, fica em 67° lugar em lucro líquido. No ramo de distribuição do petróleo, a Shell, que é a 8a em receita e a 24a em lucro, ocupa o 65º lugar em patrimônio. Reside aí a essência da questão da soberania, que agiganta sua defesa no desempenho das estatais brasileiras: a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) ocupa o 14° lugar em receita, mas garante o 4° lugar em patrimônio e lucro líquido. E um excelente e cobiçado negócio.
A "harmonização" num panorama contraditório
O Tratado de Assunção estabeleceu a formação de uma Zona de Livre Comércio até 31/12/94, de uma União Aduaneira na sub região a partir de 01/0 1/95, e, enfim, o MC, a ser instalado em 2005. O objetivo explícito é o de "criar meios para ampliar as atuais dimensões dos mercados nacionais, condição fundamental para acelerar o processo de desenvolvimento econômico com justiça social".
Formalmente, o cumprimento das metas estabeleci das para a primeira etapa, a remoção dos obstáculos tarifários e não-tarifários à livre circulação de mercadorias, capitais e trabalho, além dos "elementos incompatíveis" com o processo de integração, constituídos na fase de industrialização substitutiva, são prioridades na pauta de implementação. Foi pensado um programa de liberalização. comercial com reduções tarifárias progressivas (tarifa zero em 31/12/94) e eliminação de restrições não-tarifárias (quotas, restrições fitossanitárias) ou "medidas de efeito equivalente", além de "outros fatores limitantes" ao comércio entre os quatro países.
O lastro para a consecução dos objetivos repousa na "coordenação e compatibilização das políticas macroeconômicas", que se daria de modo gradual e convergente com os programas de desgravação tarifária e eliminação de restrições não-tarifárias. Visaria "assegurar condições de concorrência entre os países participantes, evitando distorções capazes de favorecer ou prejudicar cada um deles". A tarifa externa comum (TEC) incentivaria a competitividade externa entre os Estados promovendo "economias de escala eficientes".
São metas que, além da vontade política formal, passam pelas dificuldades típicas da harmonização entre nações num panorama contraditório, relacionadas aos distintos estágios na implementação do projeto neoliberal, além das diferenças particulares no processo de desenvolvimento material na história das formações econômicas e sociais do Cone Sul. Um documento do IPEA aborda de outro ângulo a crítica da "harmonização", submetendo-a ao papel hegemônico do Brasil nos efeitos sub-regionais da globalização:
"O fato de a coordenação de políticas econômicas ser possível não garante, porém, que seja simples, nem sequer factível: a literatura é rica em apontar obstáculos à coordenação, alguns dos quais têm relevância para o caso do Mercosul. A assimetria no tamanho das quatro economias, bem como a importância diferenciada dos mercados intra e extra-regional para cada um dos parceiros, são dois dos mais importantes. A demanda por coordenação é, sob essa ótica, muito maior nas duas economias pequenas, Uruguai e Paraguai, do que no caso do Brasil e, em menor grau, da Argentina. A definição do Brasil como sendo um global trader já embute essa distinção, revelando a existência de claras restrições para a subordinação dos instrumentos de política econômica em favor de uma estratégia baseada prioritariamente em considerações regionais"(4).
É previsto um tratamento diferenciado para Uruguai e Paraguai, quando são tratadas particularmente as listas de exceções para os chamados "produtos sensíveis" (indústria química, bens de capital e informática) do programa de liberalização comercial, que seriam reduzidas. em 20% anuais até o final de 1994. A classificação decorre da diversidade das estruturas produtivas dos quatro países, especialmente em relação ao Brasil.
Segundo os gestores, "em 01/01/95, implantou-se a União Aduaneira, com uma Tarifa Externa Comum definida para todo o universo tarifário". Desse modo, os produtos importados de outros países ou blocos comerciais passam a pagar a TEC quando de seu aporte no Mercosul. A "total liberalização comercial", com a instalação definitiva do MC, está prevista para um prazo de dez anos.
Limites e fronteiras para o trabalho
Um documento elaborado em dezembro de 1994 por centrais sindicais dos quatro países manifesta preocupações quanto à ênfase comercial na concepção do Tratado, e propõe uma "hierarquização dos problemas dos setores produtivos", sugerindo um tratamento semelhante para os problemas agrícolas, industriais e de serviços: "A modernização e tecnificação desses setores no marco de uma crescente complementariedade regional é fundamental para garantir o crescimento econômico, a manutenção dos postos de trabalho e a melhoria dos níveis de renda".
As centrais propõem também a constituição de um Fórum Econômico e Social com a participação de trabalhadores, empresários e outras camadas da sociedade civil, para permitir o acesso à informação e propostas acerca dos diversos temas. Outras idéias são apresentadas no sentido de fortalecer a Comissão Parlamentar Conjunta para assegurar a ratificação parlamentar das resoluções pendentes pelos países membros, "reforçando os vínculos dos organismos do Mercosul com os parlamentos nacionais, permitindo simultaneamente um maior envolvimento dos poderes legislativos no processo"; e de "avançar na definição de instâncias para assegurar instrumentos de solução de controvérsias e obter a interpretação uniforme e o controle da legalidade das decisões adotadas".
Essa última preocupação é um das questões cruciais do sucesso ou fracasso do Mercosul manifestada com regularidade por seus críticos. A eliminação das diferenças fundamentais entre as legislações dos quatro países é condição essencial para a celebração de diversos instrumentos relevantes diante dos objetivos anunciados pela junção de mercados de capital e trabalho. Nesse caso em particular, os imensos dilemas que pressupõem a livre circulação de trabalhadores projetam preocupações como a do tratamento relativo a um contrato básico de trabalho que discipline as relações selvagens de exploração da mão-de-obra em curso.
Em todos os casos, as centrais sindicais têm constatado problemas recorrentes e dificuldades de entendimento concreto com as instâncias oficiais do Mercosul. Prevalece a (des)ordem neoliberal
É inexeqüível o exame da implantação do Mercosul dissociado das conseqüências determinadas pela g1oba1ização e pela adoção dos postulados neoliberais nos diversos países. As políticas de corte neoliberal e de abertura irrestrita nos países dependentes têm acrescentado variáveis que, em seu conjunto, determinam substanciais mudanças no Cone Sul, aprofundando desigualdades sociais e nas estruturas produtivas. A ênfase na liberalização comercial que caracteriza o desenvolvimento do Tratado e a União Aduaneira, em especial, corresponde à exclusão de outros propósitos. Desse modo, regiões inteiras são atingidas pela queda de preços dos produtos agrícolas em tomo dos quais organizam suas atividades econômicas.
O impacto das desregulamentaçães econômicas e dos mercados, somado às medidas peculiares ao modelo determinam a quebradeira de pequenas e médias empresas nas fronteiras, inicialmente, e a integração da produção em oligopólios agroindustriais de magnitude e capacidade cada vez maior para determinar as estratégias e vocações produtivas do setor agrícola.
O Estado, em processo de minimalização, tende a não mais praticar sua tímida interferência para regulação da produção, preços e acesso ao mercado nas contendas entre pequenos e grandes empresários. As conseqüências são certamente sombrias para mais de cinco milhões de pequenos produtores no âmbito do Mercosul, além de seis milhões de famílias que necessitam de terras para o trabalho. O universo da pequena produção familiar é atingido em cheio, comprometendo a viabilidade das regiões que têm suas economias marginalizadas, envolvendo 60% dos produtores agrícolas na
Argentina; 72% no Brasil; 81 % no Paraguai; e 51 % no Uruguai. O ingresso do Chile amplia esse universo.
As conseqüências práticas já acentuam o despreparo para enfrentá-las pelos mecanismos existentes, pela própria eliminação dos mais frágeis em cada ramo econômico. A iniciativa, gestada em pleno curso da ofensiva neoliberal no continente pelas classes dominantes dos países hegemônicos na organização (Brasil e Argentina), deve ocupar espaço nas preocupações das forças democráticas e progressistas do Brasil e demais países, visto que causa mais desajustes e revela uma concepção acerca do papel do trabalho no processo de desenvolvimento em tempos de globalização e no quadro da dominação periférica.
O processo em curso atribui nova dimensão às lutas nacionais num espectro continental, revolucionando a geopolítica da opressão e da libertação dos povos da América Latina. Surgem no horizonte problemas de vulto previsíveis – para os trabalhadores, maiorias sociais desses países. Há, contudo, uma possibilidade fantástica em perspectiva para os democratas do continente na busca de rupturas estruturais.
Existe, em oposição ao colonialismo reciclado e sua posição de credor e agiota, a tradição libertária e revolucionária simbolizada por Bolívar, José Martí, Tiradentes, Zumbi, Camillo Torres, entre muitos outros. Seu resgate ocorre modernamente no interior de um processo de desenvolvimento mais geral, que tende a cristalizar e aprofundar a divisão social do trabalho, formulada historicamente na América Latina, atribuindo a cada um dos países papéis produtivos de acordo com a complementariedade das economias nacionais entre si e em relação às potências hegemônicas, associados à abertura crescente e indiscriminada de mercados. É nesse cenário que o Mercosul traça seu perfil.
Notas
(1) Daniel A. Lipovetzky e Víctor H. Colare. Restrições dos Estados Unidos ao Mercosul. Buenos Aires: Associação de Advogados de Buenos Aires, março de 1993.
(2) Com a ZLC, são eliminadas as barreiras comerciais formais, mas são excluídos os estilos supranacionais de organização, e cada país mantém política comercial própria em relação a terceiros. O MC pressupõe, além da eliminação de barreiras comerciais, a junção de mercados de capital e força de trabalho, a formulação de políticas macroeconômicas comuns, a compatibilização das legislações sobre temas essenciais, entre outras características mais relevantes.
(3) "Maiores do Mercosul" (Balanço Anual 95/96). Gazeta mercantil. São Paulo: GM, Ano XIX, nº 19, outubro de 1995. .
(4) "As perspectivas do Mercosul: configuração da estrutura produtiva e convergência macroeconômica", in Perspectivas da economia brasileira. Honório Kume e Ricardo Andrés Markwald. p. 217. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (lPEA), 1994.
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